Provocar uma guerra nuclear através dos media
John Pilger 07.Nov.16
Um
homem acusado do pior dos crimes (genocídio) foi declarado inocente. O
assunto não fez manchetes. Nem a BBC nem a CNN deram cobertura ao caso. O
The Guardian permitiu um breve comentário. Um reconhecimento oficial
raro, como este, foi enterrado ou suprimido, compreensivelmente.
Explicaria muito bem como governam os governantes do mundo.
O Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (TPIAJ), em Haia, absolveu discretamente o malogrado presidente sérvio, Slobodan Milosevic, dos crimes de guerra cometidos durante a guerra da Bósnia de 1992-1995, incluindo o massacre de Srebrenica.
Longe de ter conspirado com o líder bósnio-sérvio condenado Radovan Karadzic, na verdade Milosevic “condenou a limpeza étnica”, opôs-se a Karadzic e tentou impedir a guerra que desmembrou a Jugoslávia. Escondida quase no fim de um veredicto de 2 590 páginas sobre Karadzic em Fevereiro passado, esta evidência destrói a propaganda que justificou o massacre ilegal da NATO na Sérvia em 1999.
Milosevic morreu de ataque cardíaco em 2006, sozinho na sua cela em Haia, durante o que se revelou um julgamento fantoche num “tribunal internacional” inventado pelos americanos. Foi-lhe negada uma cirurgia cardíaca que poderia ter-lhe salvo a vida, a sua condição deteriorou-se e foi monitorizada e mantida sem segredo por oficiais dos EUA, como o Wikileaks revelou.
Milosevic foi vítima da propaganda de guerra que hoje corre pelos nossos ecrãs e jornais como uma torrente e representa grande perigo para todos nós. Ele era o protótipo do demónio, vilipendiado pelos media ocidentais como o “carniceiro dos Balcãs” responsável pelo “genocídio”, especialmente na província separatista do Kosovo. Afirmou-o o Primeiro-ministro Tony Blair, que invocou o Holocausto e instou à tomada de medidas contra “este novo Hitler”. David Scheffer, o embaixador itinerante dos EUA para os crimes de guerra [sic], declarou que cerca de “225 000 homens de etnia albanesa”, com idades entre os 14 e os 59” poderão ter sido assassinados pelas forças de Milosevic.
Foi esta a justificação para o bombardeamento da NATO, liderado por Bill Clinton e Tony Blair, que matou centenas de civis em hospitais, escolas, igrejas, parques e estúdios de televisão e destruiu a infra-estrutura económica da Sérvia. A motivação foi claramente ideológica; numa célebre “conferência pela paz” em Rambouillet, Milosevic foi confrontado por Madeleine Albright, a Secretária de Estado norte-americana, que observou, de forma infame, que as mortes de meio milhão de crianças iraquianas valeram “a pena”.
Albright fez chegar a Milosevic uma “oferta” que nenhum líder nacional poderia aceitar. A não ser que aceitasse a ocupação militar estrangeira do seu país, com as forças de ocupação “fora do processo legal”, e a imposição de um “mercado livre” neoliberal, a Sérvia seria bombardeada. Esta informação constava dum “Apêndice B”, que os media não leram ou suprimiram. O objectivo era esmagar o último estado independente “socialista” da Europa.
Quando a NATO começou o bombardeamento, houve uma debandada de refugiados kosovares “fugindo de um holocausto”. Quando acabou, equipas internacionais de polícias foram ao Kosovo exumar as vítimas do “holocausto”. O FBI não conseguiu encontrar uma única vala comum e retirou-se. A equipa forense espanhola fez o mesmo, com o seu chefe denunciando, irritado, “uma pirueta semântica por parte das máquinas de propaganda de guerra”. A contagem final dos mortos no Kosovo foi de 2 788. Este número incluiu combatentes de ambos os lados e sérvios e Roma assassinados pela Frente Nacional do Kosovo, que era pró-NATO. Não houve genocídio. O ataque da NATO foi uma fraude e um crime de guerra.
Apenas uma fracção dos apregoados misseis de “precisão” dos EUA atingiu alvos militares e não civis, incluindo os estúdios noticiosos da Rádio Televisão Sérvia, em Belgrado. Dezasseis pessoas foram assassinadas, incluindo operadores de câmara, produtores e uma maquilhadora. Blair descreveu os mortos, de modo obsceno, como parte do “comando e controlo” da Sérvia. Em 2008, o procurador do TPIAJ, Carla Del Ponte, revelou que tinha sido pressionada para não investigar os crimes da NATO.
Foi este o modelo de Washington para as subsequentes invasões do Afeganistão, Iraque, Líbia, e, de modo oculto, a Síria. Todas são “crimes maiores”, de acordo com os padrões de Nuremberga. Todas dependem da propaganda mediática. Enquanto o jornalismo dos tablóides desempenhava o seu papel tradicional, o jornalismo mais eficaz era o jornalismo liberal sério e credível; a promoção evangélica de Blair e das suas guerras pelo The Guardian, as mentiras incessantes sobre as não existentes armas de destruição maciça no Observer e no New York Times, e os persistentes tambores da propaganda governamental da BBC no silêncio das suas omissões.
No momento mais intenso do bombardeamento, Kirsty Wark, da BBC, entrevistou o General Wesley Clark, comandante da NATO. A cidade sérvia de Nis acabara de ser varrida com bombas de fragmentação norte-americanas, matando mulheres, velhos e crianças numa feira e num hospital. Wark não fez uma única pergunta sobre isto, ou sobre quaisquer outras mortes de civis. Outros foram mais descarados. Em Fevereiro de 2003, um dia depois de Blair e Bush terem posto o Iraque em chamas, Andrew Marr, o editor de política da BBC, estava em Downing Street e proferiu praticamente um discurso de vitória. Disse entusiasticamente aos espectadores que Blair “afirmara que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que, no fim, os iraquianos iriam celebrar. E em ambos os casos ele está comprovadamente certo.” Hoje, depois de um milhão de mortos e com uma sociedade em ruínas, as entrevistas da BBC com Marr são recomendadas pela embaixada dos EUA em Londres. Os colegas de Marr prontificaram-se a perdoar Blair. O correspondente da BBC em Washington, Matt Frei, afirmou “Não há dúvida de que o desejo de trazer o bem, levar os valores americanos ao resto do mundo, e em especial ao Médio Oriente … está agora cada vez mais ligado ao poder militar.”
Esta reverência aos EUA e seus colaboradores como uma força benigna que “traz o bem” está profundamente enraizada no jornalismo mainstream ocidental. Ela garante que a responsabilidade da actual catástrofe na Síria é atribuída exclusivamente a Bashar al-Assad, que o Ocidente e Israel há muito conspiram para derrubar, não por quaisquer preocupações humanitárias, mas para consolidar o poder agressivo de Israel na região. As forças jihadistas aproveitadas e armadas pelos EUA, a Inglaterra, a França, a Turquia, e os representantes de “coligação” servem este objectivo. São eles que distribuem a propaganda e os vídeos que se tornam notícia nos EUA e na Europa e dão acesso a jornalistas e garantem uma “cobertura” unilateral dos acontecimentos na “Síria”.
A cidade de Alepo está nas notícias. A maior parte dos leitores e espectadores não saberão que a maioria da população de Alepo vive na parte ocidental da cidade controlada pelo governo. Que sofrem bombardeamentos diários de artilharia da al-Qaida, patrocinada pelo Ocidente, não vem nas notícias. A 21 de Julho, bombardeiros norte-americanos e franceses atacaram uma aldeia governamental na província de Alepo, matando cerca de 125 civis. Isto foi relatado na página 22 do The Guardian; sem fotografias.
Tendo criado e mantido o jihadismo no Afeganistão nos anos 1980 como a Operação Ciclone (uma arma para destruir a União Soviética), os EUA estão a fazer algo semelhante na Síria. Como os mujahidins afegãos, os “rebeldes” sírios são os soldados rasos dos EUA e da Inglaterra. Muitos lutam pela al-Qaida e pelas suas variantes; alguns, como a Frente Nusra, reviram a sua imagem para não ferir susceptibilidades nos EUA por causa do 11 de Setembro. A CIA vai governando-os com dificuldade, tal como governa jihadistas em todo o mundo.
O objectivo imediato é destruir o governo em Damasco, que, de acordo com a sondagem mais credível (YouGov Siraj), a maioria dos sírios apoia, ou pelo menos procura por protecção, apesar das barbaridades por que é responsável. O objectivo de longo prazo é negar à Rússia um aliado fundamental no Médio Oriente como parte de uma guerra de desgaste contra a Federação Russa que eventualmente a destrua.
O risco nuclear é óbvio, apesar de suprimido pelos media em todo o “mundo livre”. Os editores do Washington Post, tendo promovido a ficção das armas de destruição maciça, pedem a Obama que ataque a Síria. Hillary Clinton, que publicamente exultou com o seu papel de carrasco durante a destruição da Líbia, repetiu que, como presidente, irá “mais longe” que Obama.
Gareth Porter, um jornalista clandestino a trabalhar em Washington, revelou recentemente os nomes de pessoas que provavelmente integrariam um gabinete de Clinton, que planeiam um ataque à Síria. Todas têm histórias beligerantes durante a guerra-fria; o antigo director da CIA, Leon Panetta, afirma que “o próximo presidente terá de considerar acrescentar mais forças especiais no terreno”.
O que é mais notável acerca da propaganda de guerra actual é o óbvio absurdo e a familiaridade. Tenho visto imagens de arquivo de Washington nos anos 1950, quando diplomatas, funcionários públicos e jornalistas foram alvo de uma caça às bruxas e arruinados pelo Senador Joe McCarthy, por desafiar as mentiras e paranóia sobre a União Soviética e a China. Como um tumor em recidiva, o culto anti-Rússia voltou.
Em Inglaterra, Luke Harding, do The Guardian, dirige os opositores à Rússia do seu jornal numa série de paródias jornalísticas que atribuem a Vladimir Putin todas as iniquidades à face da Terra. Quando a fuga de informação dos Panama Papers foi publicada, a primeira página referia Putin, e publicou uma fotografia de Putin; pouco importa o facto de Putin não ter sido mencionado em parte alguma nos documentos.
Tal como Milosevic, Putin é o demónio número um. Foi Putin quem abateu um avião malaio que sobrevoava a Ucrânia. Manchete: “Tanto quanto me diz respeito, Putin assassinou o meu filho.” Sem provas. Foi atribuído a Putin o derrube, pelo qual Washington foi responsável (e pelo qual pagou), como está documentado, do governo eleito em Kiev, em 2014. A subsequente campanha de terror por milícias fascistas contra a população russa de fala ucraniana foi o resultado da “agressão de Putin”. Impedir a Crimeia de se tornar uma base de mísseis da NATO e proteger a população maioritariamente russa que votou num referendo voltar a juntar-se à Rússia (da qual a Crimeia fora anexada) foram mais exemplos da “agressão” de Putin. A difamação mediática transforma-se inevitavelmente em guerra mediática. Se a guerra com a Rússia rebentar, planificada ou por acidente, os jornalistas terão muita responsabilidade.
Nos EUA, a campanha anti-Rússia foi elevada a realidade virtual. O colunista do New York Times Paul Krugman, um economista com o Prémio Nobel, chamou a Donald Trump o “candidato siberiano” porque Trump é, afirma, o homem de Putin. Trump atrevera-se a sugerir, num raro momento de lucidez, que a guerra com a Rússia poderia ser uma má ideia. De facto, ele foi mais longe e retirou carregamentos de armas norte-americanas para a Ucrânia da plataforma republicana. “Seria óptimo se nos entendêssemos com a Rússia”, afirmou.
É por esta razão que o establishment liberal beligerante o odeia. O racismo de Trump e os seus devaneios demagogos nada têm que ver com isso. O racismo e o extremismo de Bill e Hillary Clinton vão muito mais longe que os de Trump. (Esta semana assinala o 20º aniversário da “reforma” da segurança social de Clinton, que lançou uma guerra contra os afro-americanos). Quanto a Obama, enquanto a polícia dos EUA dispara sobre os seus congéneres afro-americanos, esta grande esperança da Casa Branca nada fez para os proteger, nada para aliviar o seu empobrecimento, enquanto travava quatro guerras de rapina e uma campanha de assassinatos sem precedentes.
A CIA exigiu que Trump não seja eleito. Os generais do Pentágono exigiram que ele não seja eleito. O belicista New York Times, fazendo uma pausa na sua contínua campanha contra Putin, exige que ele não seja eleito. Alguma coisa se passa. Estes tribunos da “guerra perpétua” estão cheios de medo de que o negócio da guerra de muitos biliões de dólares, através do qual os EUA mantêm o seu domínio, seja ameaçados se Trump fizer um acordo com Putin, e depois com Xi Jinping, da China. O seu pânico perante a possibilidade, mesmo que altamente improvável, da grande potência mundial discutir a paz, seria a mais negra das farsas, se o assunto em causa não fosse tão preocupante.
“Trump teria adorado Stalin!”, vociferou o vice-presidente Joe Biden num comício por Hillary Clinton. Com Clinton acenando com a cabeça, gritou, “Nós nunca nos curvamos. Nunca nos dobramos. Nunca ajoelhamos. Não pedimos. A meta é nossa. É isso que somos. Somos a América!”
Na Inglaterra, Jeremy Corbyn foi também alvo de histeria dos belicistas no Labour Party e duns media que se dedicam a destruí-lo. Lord West, antigo almirante e ministro do trabalho, pôs bem a questão. Corbyn tomou uma “escandalosa” posição antiguerra “porque isso faz as massas não pensantes votarem nele”.
Pressionado para dizer se autorizaria a guerra contra a Rússia “se tivesse de o fazer”, Corbyn respondeu: “não quero a guerra; o que quero é que possamos ter um mundo em que não precisemos de nos envolver em guerras.”
O tipo de perguntas deve muito à ascensão dos belicistas liberais ingleses. O Partido Trabalhista e os media há muito que lhes oferecem oportunidades de carreira. Durante um tempo. Durante algum tempo, o tsunami moral do grande crime iraquiano deixou-os em dificuldades, as suas distorções da verdade deixaram-nos temporariamente embaraçados. Apesar de Chilcot e da montanha de factos incriminadores, Blair permanece a sua inspiração, porque foi um “vencedor”.
O jornalismo e a investigação independentes têm sido sistematicamente banidos ou apropriados, e as ideias democráticas esvaziadas e preenchidas com “políticas de identidade” que confundem género com feminismo e o protesto público com libertação e ignoram deliberadamente a violência de estado e o negócio das armas que destrói vidas incontáveis em locais distantes como o Iémen e a Síria e acenam à guerra nuclear na Europa e em todo o mundo.
A agitação de pessoas de todas as idades em torno da espectacular ascensão de Jeremy Corbyn contraria este aspecto até certo ponto. Ele passou a sua vida a chamar a atenção para os horrores da guerra. O problema para Corbyn e os seus apoiantes é o Partido Trabalhista. Nos EUA, o problema para os milhares de apoiantes de Bernie Sanders era o Partido Democrático, para não mencionar a sua maior traição, da sua grande esperança branca. Nos EUA, pátria dos grandes movimentos pelos direitos civis e antiguerra, são movimentos como o Black Lives Matter e o Codepink que criam as raízes duma versão moderna.
Porque apenas um movimento que se afirme em cada rua e além-fronteiras e que não desiste pode parar os belicistas. No próximo ano, fará um século desde que Wilfred Owen escreveu estes versos. Todos os jornalistas deveriam lê-los e lembrar-se deles…
Se puderes ouvir, em cada abalo, o sangue
Gargarejando dos pulmões em espuma,
Canceroso, acre e regurgitado,
De feridas torpes, incuráveis, em línguas inocentes,
Meu amigo, não dirias com esse entusiasmo,
A crianças que ardem por uma glória desesperada,
A velha mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori [1]
[1] Nota do tradutor: versos do poeta latino Horácio: “Doce e glorioso é morrer pela pátria”.
Tradução de André Rodrigues
in ODiario.info
O Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (TPIAJ), em Haia, absolveu discretamente o malogrado presidente sérvio, Slobodan Milosevic, dos crimes de guerra cometidos durante a guerra da Bósnia de 1992-1995, incluindo o massacre de Srebrenica.
Longe de ter conspirado com o líder bósnio-sérvio condenado Radovan Karadzic, na verdade Milosevic “condenou a limpeza étnica”, opôs-se a Karadzic e tentou impedir a guerra que desmembrou a Jugoslávia. Escondida quase no fim de um veredicto de 2 590 páginas sobre Karadzic em Fevereiro passado, esta evidência destrói a propaganda que justificou o massacre ilegal da NATO na Sérvia em 1999.
Milosevic morreu de ataque cardíaco em 2006, sozinho na sua cela em Haia, durante o que se revelou um julgamento fantoche num “tribunal internacional” inventado pelos americanos. Foi-lhe negada uma cirurgia cardíaca que poderia ter-lhe salvo a vida, a sua condição deteriorou-se e foi monitorizada e mantida sem segredo por oficiais dos EUA, como o Wikileaks revelou.
Milosevic foi vítima da propaganda de guerra que hoje corre pelos nossos ecrãs e jornais como uma torrente e representa grande perigo para todos nós. Ele era o protótipo do demónio, vilipendiado pelos media ocidentais como o “carniceiro dos Balcãs” responsável pelo “genocídio”, especialmente na província separatista do Kosovo. Afirmou-o o Primeiro-ministro Tony Blair, que invocou o Holocausto e instou à tomada de medidas contra “este novo Hitler”. David Scheffer, o embaixador itinerante dos EUA para os crimes de guerra [sic], declarou que cerca de “225 000 homens de etnia albanesa”, com idades entre os 14 e os 59” poderão ter sido assassinados pelas forças de Milosevic.
Foi esta a justificação para o bombardeamento da NATO, liderado por Bill Clinton e Tony Blair, que matou centenas de civis em hospitais, escolas, igrejas, parques e estúdios de televisão e destruiu a infra-estrutura económica da Sérvia. A motivação foi claramente ideológica; numa célebre “conferência pela paz” em Rambouillet, Milosevic foi confrontado por Madeleine Albright, a Secretária de Estado norte-americana, que observou, de forma infame, que as mortes de meio milhão de crianças iraquianas valeram “a pena”.
Albright fez chegar a Milosevic uma “oferta” que nenhum líder nacional poderia aceitar. A não ser que aceitasse a ocupação militar estrangeira do seu país, com as forças de ocupação “fora do processo legal”, e a imposição de um “mercado livre” neoliberal, a Sérvia seria bombardeada. Esta informação constava dum “Apêndice B”, que os media não leram ou suprimiram. O objectivo era esmagar o último estado independente “socialista” da Europa.
Quando a NATO começou o bombardeamento, houve uma debandada de refugiados kosovares “fugindo de um holocausto”. Quando acabou, equipas internacionais de polícias foram ao Kosovo exumar as vítimas do “holocausto”. O FBI não conseguiu encontrar uma única vala comum e retirou-se. A equipa forense espanhola fez o mesmo, com o seu chefe denunciando, irritado, “uma pirueta semântica por parte das máquinas de propaganda de guerra”. A contagem final dos mortos no Kosovo foi de 2 788. Este número incluiu combatentes de ambos os lados e sérvios e Roma assassinados pela Frente Nacional do Kosovo, que era pró-NATO. Não houve genocídio. O ataque da NATO foi uma fraude e um crime de guerra.
Apenas uma fracção dos apregoados misseis de “precisão” dos EUA atingiu alvos militares e não civis, incluindo os estúdios noticiosos da Rádio Televisão Sérvia, em Belgrado. Dezasseis pessoas foram assassinadas, incluindo operadores de câmara, produtores e uma maquilhadora. Blair descreveu os mortos, de modo obsceno, como parte do “comando e controlo” da Sérvia. Em 2008, o procurador do TPIAJ, Carla Del Ponte, revelou que tinha sido pressionada para não investigar os crimes da NATO.
Foi este o modelo de Washington para as subsequentes invasões do Afeganistão, Iraque, Líbia, e, de modo oculto, a Síria. Todas são “crimes maiores”, de acordo com os padrões de Nuremberga. Todas dependem da propaganda mediática. Enquanto o jornalismo dos tablóides desempenhava o seu papel tradicional, o jornalismo mais eficaz era o jornalismo liberal sério e credível; a promoção evangélica de Blair e das suas guerras pelo The Guardian, as mentiras incessantes sobre as não existentes armas de destruição maciça no Observer e no New York Times, e os persistentes tambores da propaganda governamental da BBC no silêncio das suas omissões.
No momento mais intenso do bombardeamento, Kirsty Wark, da BBC, entrevistou o General Wesley Clark, comandante da NATO. A cidade sérvia de Nis acabara de ser varrida com bombas de fragmentação norte-americanas, matando mulheres, velhos e crianças numa feira e num hospital. Wark não fez uma única pergunta sobre isto, ou sobre quaisquer outras mortes de civis. Outros foram mais descarados. Em Fevereiro de 2003, um dia depois de Blair e Bush terem posto o Iraque em chamas, Andrew Marr, o editor de política da BBC, estava em Downing Street e proferiu praticamente um discurso de vitória. Disse entusiasticamente aos espectadores que Blair “afirmara que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que, no fim, os iraquianos iriam celebrar. E em ambos os casos ele está comprovadamente certo.” Hoje, depois de um milhão de mortos e com uma sociedade em ruínas, as entrevistas da BBC com Marr são recomendadas pela embaixada dos EUA em Londres. Os colegas de Marr prontificaram-se a perdoar Blair. O correspondente da BBC em Washington, Matt Frei, afirmou “Não há dúvida de que o desejo de trazer o bem, levar os valores americanos ao resto do mundo, e em especial ao Médio Oriente … está agora cada vez mais ligado ao poder militar.”
Esta reverência aos EUA e seus colaboradores como uma força benigna que “traz o bem” está profundamente enraizada no jornalismo mainstream ocidental. Ela garante que a responsabilidade da actual catástrofe na Síria é atribuída exclusivamente a Bashar al-Assad, que o Ocidente e Israel há muito conspiram para derrubar, não por quaisquer preocupações humanitárias, mas para consolidar o poder agressivo de Israel na região. As forças jihadistas aproveitadas e armadas pelos EUA, a Inglaterra, a França, a Turquia, e os representantes de “coligação” servem este objectivo. São eles que distribuem a propaganda e os vídeos que se tornam notícia nos EUA e na Europa e dão acesso a jornalistas e garantem uma “cobertura” unilateral dos acontecimentos na “Síria”.
A cidade de Alepo está nas notícias. A maior parte dos leitores e espectadores não saberão que a maioria da população de Alepo vive na parte ocidental da cidade controlada pelo governo. Que sofrem bombardeamentos diários de artilharia da al-Qaida, patrocinada pelo Ocidente, não vem nas notícias. A 21 de Julho, bombardeiros norte-americanos e franceses atacaram uma aldeia governamental na província de Alepo, matando cerca de 125 civis. Isto foi relatado na página 22 do The Guardian; sem fotografias.
Tendo criado e mantido o jihadismo no Afeganistão nos anos 1980 como a Operação Ciclone (uma arma para destruir a União Soviética), os EUA estão a fazer algo semelhante na Síria. Como os mujahidins afegãos, os “rebeldes” sírios são os soldados rasos dos EUA e da Inglaterra. Muitos lutam pela al-Qaida e pelas suas variantes; alguns, como a Frente Nusra, reviram a sua imagem para não ferir susceptibilidades nos EUA por causa do 11 de Setembro. A CIA vai governando-os com dificuldade, tal como governa jihadistas em todo o mundo.
O objectivo imediato é destruir o governo em Damasco, que, de acordo com a sondagem mais credível (YouGov Siraj), a maioria dos sírios apoia, ou pelo menos procura por protecção, apesar das barbaridades por que é responsável. O objectivo de longo prazo é negar à Rússia um aliado fundamental no Médio Oriente como parte de uma guerra de desgaste contra a Federação Russa que eventualmente a destrua.
O risco nuclear é óbvio, apesar de suprimido pelos media em todo o “mundo livre”. Os editores do Washington Post, tendo promovido a ficção das armas de destruição maciça, pedem a Obama que ataque a Síria. Hillary Clinton, que publicamente exultou com o seu papel de carrasco durante a destruição da Líbia, repetiu que, como presidente, irá “mais longe” que Obama.
Gareth Porter, um jornalista clandestino a trabalhar em Washington, revelou recentemente os nomes de pessoas que provavelmente integrariam um gabinete de Clinton, que planeiam um ataque à Síria. Todas têm histórias beligerantes durante a guerra-fria; o antigo director da CIA, Leon Panetta, afirma que “o próximo presidente terá de considerar acrescentar mais forças especiais no terreno”.
O que é mais notável acerca da propaganda de guerra actual é o óbvio absurdo e a familiaridade. Tenho visto imagens de arquivo de Washington nos anos 1950, quando diplomatas, funcionários públicos e jornalistas foram alvo de uma caça às bruxas e arruinados pelo Senador Joe McCarthy, por desafiar as mentiras e paranóia sobre a União Soviética e a China. Como um tumor em recidiva, o culto anti-Rússia voltou.
Em Inglaterra, Luke Harding, do The Guardian, dirige os opositores à Rússia do seu jornal numa série de paródias jornalísticas que atribuem a Vladimir Putin todas as iniquidades à face da Terra. Quando a fuga de informação dos Panama Papers foi publicada, a primeira página referia Putin, e publicou uma fotografia de Putin; pouco importa o facto de Putin não ter sido mencionado em parte alguma nos documentos.
Tal como Milosevic, Putin é o demónio número um. Foi Putin quem abateu um avião malaio que sobrevoava a Ucrânia. Manchete: “Tanto quanto me diz respeito, Putin assassinou o meu filho.” Sem provas. Foi atribuído a Putin o derrube, pelo qual Washington foi responsável (e pelo qual pagou), como está documentado, do governo eleito em Kiev, em 2014. A subsequente campanha de terror por milícias fascistas contra a população russa de fala ucraniana foi o resultado da “agressão de Putin”. Impedir a Crimeia de se tornar uma base de mísseis da NATO e proteger a população maioritariamente russa que votou num referendo voltar a juntar-se à Rússia (da qual a Crimeia fora anexada) foram mais exemplos da “agressão” de Putin. A difamação mediática transforma-se inevitavelmente em guerra mediática. Se a guerra com a Rússia rebentar, planificada ou por acidente, os jornalistas terão muita responsabilidade.
Nos EUA, a campanha anti-Rússia foi elevada a realidade virtual. O colunista do New York Times Paul Krugman, um economista com o Prémio Nobel, chamou a Donald Trump o “candidato siberiano” porque Trump é, afirma, o homem de Putin. Trump atrevera-se a sugerir, num raro momento de lucidez, que a guerra com a Rússia poderia ser uma má ideia. De facto, ele foi mais longe e retirou carregamentos de armas norte-americanas para a Ucrânia da plataforma republicana. “Seria óptimo se nos entendêssemos com a Rússia”, afirmou.
É por esta razão que o establishment liberal beligerante o odeia. O racismo de Trump e os seus devaneios demagogos nada têm que ver com isso. O racismo e o extremismo de Bill e Hillary Clinton vão muito mais longe que os de Trump. (Esta semana assinala o 20º aniversário da “reforma” da segurança social de Clinton, que lançou uma guerra contra os afro-americanos). Quanto a Obama, enquanto a polícia dos EUA dispara sobre os seus congéneres afro-americanos, esta grande esperança da Casa Branca nada fez para os proteger, nada para aliviar o seu empobrecimento, enquanto travava quatro guerras de rapina e uma campanha de assassinatos sem precedentes.
A CIA exigiu que Trump não seja eleito. Os generais do Pentágono exigiram que ele não seja eleito. O belicista New York Times, fazendo uma pausa na sua contínua campanha contra Putin, exige que ele não seja eleito. Alguma coisa se passa. Estes tribunos da “guerra perpétua” estão cheios de medo de que o negócio da guerra de muitos biliões de dólares, através do qual os EUA mantêm o seu domínio, seja ameaçados se Trump fizer um acordo com Putin, e depois com Xi Jinping, da China. O seu pânico perante a possibilidade, mesmo que altamente improvável, da grande potência mundial discutir a paz, seria a mais negra das farsas, se o assunto em causa não fosse tão preocupante.
“Trump teria adorado Stalin!”, vociferou o vice-presidente Joe Biden num comício por Hillary Clinton. Com Clinton acenando com a cabeça, gritou, “Nós nunca nos curvamos. Nunca nos dobramos. Nunca ajoelhamos. Não pedimos. A meta é nossa. É isso que somos. Somos a América!”
Na Inglaterra, Jeremy Corbyn foi também alvo de histeria dos belicistas no Labour Party e duns media que se dedicam a destruí-lo. Lord West, antigo almirante e ministro do trabalho, pôs bem a questão. Corbyn tomou uma “escandalosa” posição antiguerra “porque isso faz as massas não pensantes votarem nele”.
Pressionado para dizer se autorizaria a guerra contra a Rússia “se tivesse de o fazer”, Corbyn respondeu: “não quero a guerra; o que quero é que possamos ter um mundo em que não precisemos de nos envolver em guerras.”
O tipo de perguntas deve muito à ascensão dos belicistas liberais ingleses. O Partido Trabalhista e os media há muito que lhes oferecem oportunidades de carreira. Durante um tempo. Durante algum tempo, o tsunami moral do grande crime iraquiano deixou-os em dificuldades, as suas distorções da verdade deixaram-nos temporariamente embaraçados. Apesar de Chilcot e da montanha de factos incriminadores, Blair permanece a sua inspiração, porque foi um “vencedor”.
O jornalismo e a investigação independentes têm sido sistematicamente banidos ou apropriados, e as ideias democráticas esvaziadas e preenchidas com “políticas de identidade” que confundem género com feminismo e o protesto público com libertação e ignoram deliberadamente a violência de estado e o negócio das armas que destrói vidas incontáveis em locais distantes como o Iémen e a Síria e acenam à guerra nuclear na Europa e em todo o mundo.
A agitação de pessoas de todas as idades em torno da espectacular ascensão de Jeremy Corbyn contraria este aspecto até certo ponto. Ele passou a sua vida a chamar a atenção para os horrores da guerra. O problema para Corbyn e os seus apoiantes é o Partido Trabalhista. Nos EUA, o problema para os milhares de apoiantes de Bernie Sanders era o Partido Democrático, para não mencionar a sua maior traição, da sua grande esperança branca. Nos EUA, pátria dos grandes movimentos pelos direitos civis e antiguerra, são movimentos como o Black Lives Matter e o Codepink que criam as raízes duma versão moderna.
Porque apenas um movimento que se afirme em cada rua e além-fronteiras e que não desiste pode parar os belicistas. No próximo ano, fará um século desde que Wilfred Owen escreveu estes versos. Todos os jornalistas deveriam lê-los e lembrar-se deles…
Se puderes ouvir, em cada abalo, o sangue
Gargarejando dos pulmões em espuma,
Canceroso, acre e regurgitado,
De feridas torpes, incuráveis, em línguas inocentes,
Meu amigo, não dirias com esse entusiasmo,
A crianças que ardem por uma glória desesperada,
A velha mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori [1]
[1] Nota do tradutor: versos do poeta latino Horácio: “Doce e glorioso é morrer pela pátria”.
Tradução de André Rodrigues
in ODiario.info
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