O
inesperado sucesso de Jeremy Corbyn e do Labour Party nas urnas
inglesas deixou vermelha de vergonha a sabedoria cínica predominante
entre os pretensos especialistas políticos. Até mesmo aqueles que se
diziam simpatizar com Corbyn, mas que se esquivavam com a desculpa de
que “Sim, eu votaria nele, mas a realidade é que ele é inelegível, o
povo está muito manipulado e amedrontado, o momento ainda não é ideal
para um lance tão radical.”
Lembremos
da alegação de Tony Blair de que com Corbyn o Labour Party estaria
irreparavelmente marginalizado, e não seria mais um partido potencial
para efetivamente disputar o governo. A hipocrisia de afirmações como
essas é que elas mascaram sua própria posição política como um insight resignado sobre o estado objetivo das coisas.
Há,
é claro, problemas e dúvidas que persistem. É preciso evidentemente
confrontar as limitações do programa de Corbyn: será que ele vai além do
velho welfare state?
O possível governo do Labour sobreviveria às investidas do capital
global? Mas, além disso, num nível mais radical, é preciso não ter medo
de levantar a questão chave: a vitória eleitoral ainda é o momento
decisivo de uma mudança social radical? Afinal, não estamos
testemunhando a crescente irrelevância de nossos processos eleitorais?
Mas
o que importa, para além do resultado propriamente dito, é o
significado mais profundo da (relativa) vitória do Labour Party. Esse
sucesso implica uma importante mudança ética e política, um movimento
importante contra a vulgarização de nossos discursos públicos. O
problema aqui está naquilo que Hegel chamou de Sittlichkeit:
os costumes, o denso pano de fundo de regras (tácitas) da vida social, a
grossa e impenetrável substância ética que nos diz o que podemos e o
que não podemos fazer.
Essas
regras estão desintegrando hoje: o que era simplesmente indizível em um
debate público algumas décadas atrás, pode agora ser enunciado
impunemente. Trump pode falar das flatulências de Melania e afirmar que a
“tortura funciona”, Netanyahu pode alegar que os palestinos provocaram o
Holocausto, populistas europeus podem dizer que o influxo de refugiados
é orquestrado por judeus, e por aí vai…
Mas
por que falar de educação e de conduta pública numa hora dessas, em que
estamos diante de problemas prementes, aparentemente muito mais
“reais”? Ao fazer isso, não estaríamos regredindo ao nível da famosa
ironia de Thomas De Quincey sobre o simples ato de assassinato: “Quantas
pessoas não começaram promovendo terror e catástrofes econômicas e no
final acabaram se comportando mal em uma festa?” Mas os modos importam
sim – em situações tensas, eles são uma questão de vida ou morte, a
linha divisória sutil que separa a civilização da barbárie.
Nos
anos 1960, vulgaridades ocasionais eram associadas à esquerda política:
revolucionários estudantis geralmente usavam linguagem corriqueira para
enfatizar sua distância em relação à política oficial, com seu jargão
polido. Hoje, a linguagem vulgar é praticamente uma prerrogativa
exclusiva da direita radical, de forma que é a esquerda que se vê na
posição surpreendente de ter que defender a decência e os modos
públicos.
Infelizmente,
o espaço público esquerdista-liberal está também cada vez mais dominado
pelas regras da “cultura de twitter”: saturado de sacadas curtas,
réplicas pontuais, comentários sarcásticos ou indignados, mas com cada
vez menos espaço para as etapas múltiplas de uma linha de argumentação
mais substancial. Reage-se a meros recortes de um texto (uma passagem,
uma frase, ou às vezes nem isso). A postura que sustenta essas respostas
de cunho de “tweet” agrega um certo farisaísmo dono da verdade, um
moralismo politicamente correto e um sarcasmo brutal: assim que qualquer
coisa soar problemática, ela é imediatamente detectada provocando uma
resposta automática, geralmente um lugar comum do glossário
politicamente correto.
Embora
muito dos críticos gostem de enfatizar sua rejeição à normatividade (à
“norma heterossexual imposta”, por exemplo), sua posição é muitas vezes a
de uma implacável normatividade, denunciando cada mínimo desvio do
dogma politicamente correto como “fascismo” ou qualquer coisa que o
valha. Essa “cultura de twitter”, ao combinar uma tolerância ao discurso
oficial com uma abertura à intolerância extrema contra pontos de vista
realmente diferentes, representa um entrave ao pensamento crítico. Ela é
o espelho da raiva cega populista a la Donald
Trump, e é simultaneamente uma das razões pelas quais a esquerda tão
frequentemente se mostra incapaz de confrontar o populismo de direita,
especialmente na Europa de hoje. Se alguém sequer ousar mencionar que
esse populismo extrai boa parte de sua energia do descontentamento
popular dos explorados, esse alguém é imediatamente acusado de
“essencialismo de classe”.
É
diante desse pano de fundo que devemos comparar as campanhas do partido
conservador e do trabalhista na última eleição inglesa. A campanha do
partido conservador se rebaixou a um nível inédito no histórico de
disputas do Reino Unido: ataques alarmistas insinuando que Corbyn seria
um simpatizante terrorista, de que o partido trabalhista seria um ninho
de anti-semitismo e tudo isso culminando com Theresa May alegremente
prometendo rasgar direitos humanos – uma pura e simples política de
medo, se algum dia houve uma. Não é de se espantar que o UKIP [Partido
de Independência do Reino Unido] desapareceu de cena: não há necessidade
para ele já que May e [Boris] Johnson estão praticamente desempenhando
seu antigo papel.
Corbyn
não se deixou enredar nesses jogos sujos: com uma franca ingenuidade,
ele simplesmente abordou as principais questões e preocupações das
pessoas comuns, de problemas econômicos a ameaças terroristas, propondo
contramedidas claras. Não havia raiva nem ressentimento em suas
declarações, tampouco evocação barata de ânimos populistas, mas também
nada do farisaísmo “dono da verdade” politicamente correto. Ele apenas
focou em responder às reais preocupações das pessoas comuns com simples
decência.
O
fato de tal abordagem representar nada menos do que uma mudança de peso
em nosso espaço político é um triste indicativo dos nossos tempos. Mas é
também uma nova confirmação da velha assertiva hegeliana de que, às
vezes, franqueza ingênua é a mais devastadora e sagaz de todas as
estratégias.
* A tradução é de Artur Renzo para o Blog da Boitempo
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