São
já 15,6% os trabalhadores portugueses que recorrem a plataformas de
trabalho “colaborativo”, um eufemismo para empresas como a Uber ou a
Glovo se livrarem de todos os vínculos e direitos laborais. Portugal
está acima da média europeia, mas 40% dos trabalhadores que usam estas
plataformas ainda só retiram delas um quarto do seu rendimento. O futuro
está aqui e o resultado será a perda do direito a férias, fins de
semana, horário, proteção no desemprego e na velhice e greve. O mercado
de trabalho recuará 150 anos.
Mesmo
com alguns recuos, com recurso do Estado a outsourcing e a tarefeiros
precários, o retrocesso será sempre mais lento no sector público. O que
quer dizer que a realidade no privado se afastará cada vez mais da que
ainda é vivida, e bem, no Estado. Por mais que custe à esquerda – a mim
custa-me –, é impossível pensar no futuro do sindicalismo e das lutas
laborais ignorando esta diferença. Ela será aproveitada, acicatada e
explorada pela direita.
Como
temos visto com o crowdfunding para a greve dos enfermeiros, as novas
plataformas tecnológicas também podem ser usadas na luta dos
trabalhadores. Acreditar que isto é extensível a todos os trabalhadores é
ignorar que as vantagens da tecnologia raramente são democraticamente
distribuídas. Elas tendem a replicar as desigualdades que lhes são
prévias. É por isso que são os trabalhadores que ainda têm a proteção do
século XX a conseguirem usar as formas de luta do século XXI. Estão
mais seguros para dar esse passo. Quem não corre o risco de ser
despedido pode ir mais longe do que uma greve normal permitiria,
socorrendo-se das tecnologias para aligeirar as regras, reduzir os
custos e ampliar os efeitos da paralisação. Para quem trabalha à jorna,
sem qualquer defesa, nem a greve comum é uma possibilidade. São dois
mundos que se tocam cada vez menos.
Quando
António Costa usou a expressão “greve selvagem” para falar da
paralisação cirúrgica e remunerada de uma parte dos enfermeiros,
socorria-se de um termo histórico para greves não enquadradas por
estruturas sindicais. Tecnicamente não tem razão, porque houve dois
pequenos sindicatos a dar cobertura à greve. Politicamente sim, porque
não são eles que tratam do crowdfunding, é um movimento supostamente
inorgânico, e não são eles a cabeça política da luta, é a bastonária.
Curiosamente, estas greves “selvagens” só são possíveis onde o mercado
de trabalho não é uma selva.
Só repolitizando o
sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados
para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo
corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos
por baixo
Recuso qualquer
retórica política que trate os funcionários públicos como privilegiados
para que eles desistam de lutar por mais direitos e salários. Mas é
evidente que se está a aprofundar um fosso entre as realidades laborais
do privado e do público. Porque a desregulação do mercado de trabalho
não atinge todos por igual.
Com
as condições de trabalho a regressarem ao século XIX, seria lógico que o
sindicalismo também regressasse ao estilo dos movimentos inorgânicos
que existiram na sua origem. Mas seria um enorme erro. Os trabalhadores
mais desprotegidos precisam, mais do que nunca, do sindicalismo
orgânico. Só os mais protegidos se podem dar ao luxo de o dispensar,
como se vê com esta greve.
O
que é preciso é regressar ao sindicalismo político (não confundir com
partidário), que viva da solidariedade entre todos trabalhadores, sejam
do privado ou do público, médicos, enfermeiros ou distribuidores de
pizas. Um sindicalismo de classe e não de corporação. Um sindicalismo
que não ignora os deveres sociais dos que trabalham em serviços públicos
fundamentais para quem tem menos recursos. Só repolitizando o
sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados
para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo
corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos
por baixo.
There are several factors for Venezuela’s economic crisis, but
you wouldn’t know it by listening to U.S. leaders or following corporate
media, writes Steve Ellner.
***
The recognition by U.S. House Speaker Nancy Pelosi and former Vice President Joe Biden of Juan Guaidó as Venezuelan president is the latest demonstration of the consensus in Washington over the nefariousness of the Nicolás Maduro government. Not since Fidel Castro’s
early years in power has a Latin American head of state been so
consistently demonized. But the 1960s was the peak of the Cold War
polarization that placed Cuba plainly in the enemy camp, and unlike
Venezuela today, that nation had a one-party system.
The scope of that consensus was evident by the recent faceoff between two figures as far apart as President Donald Trump and Rep. Alexandria Ocasio-Cortez.
In his State of the Union address, Trump attributed Venezuela’s
economic crisis to the failed system of socialism. Ocasio-Cortez
responded by arguing that the Venezuelan case is “an issue of authoritarian regime versus democracy.”
Taken together, the comments by Trump and Ocasio-Cortez complement
one another. According to the narrative that dominates Washington,
Venezuela is a disaster from both economic and political viewpoints. The
exclusive blame for the sorry state of the economy and for the
country’s allegedly authoritarian rule lays with Maduro and his cohorts.
Not surprisingly, the mainstream media have refrained from
questioning these assumptions. Most of their reporting puts the accent
mark on state incompetence and corruption, while skirting the
detrimental effects of the economic sanctions implemented by the Trump
administration.
In addition, many on the left point to the economic sanctions as
responsible, at least in part, for the nation’s pressing economic
difficulties, but few critically examine the mainstream’s
characterization of the state of Venezuelan democracy. Some oppose the
sanctions but join the opposition in bashing the Maduro government.
A recent article by Gabriel Hetland, for instance, posted by Jacobin and NACLA: Report on the Americas claims
that Maduro “holds onto power through authoritarian means.” The author
then turns to the nation’s economic difficulties by arguing that “the
primary driver is the government’s mismanagement of its oil revenue” and corruption.
During my participation in a two-month Venezuelan solidarity tour
late last year in the U.S. and Canada, I often heard the statement that
knowing the specifics about Venezuela’s economic and political problems
is not essential because the bottom line is the illegality of Trump’s
sanctions and threats of military intervention. But does international
law end the discussion?
If it could be proven that Maduro is a dictator and a totally
incompetent ruler, would people enthusiastically rally behind his
government in opposition to foreign intervention? I don’t think so.
Undoubtedly, it is necessary to take a close look at both political and
economic fronts because the effectiveness of solidarity efforts hinges
on the specifics. The dominant narrative about Maduro and its
assumptions cannot be taken at face value, even while there are elements
of truth in it. How Far Back Do the Economic Problems Go?
The Venezuelan opposition frequently argues that neither the
sanctions nor depressed international oil prices are to blame for the
nation’s economic difficulties, only the mismanagement of the economy.
At best, declining oil prices contributed to the problems but were not a
root cause. Some opposition analysts deny or minimize the importance of
oil prices as a factor by pointing out that the economies of other OPEC
nations are as dependent on oil exports as that of Venezuela but have not plummeted to the same levels.
The opposition’s central argument here is that Venezuela’s dire
economic problems predate Trump’s implementation of sanctions and even
predate the sharp decline in international oil prices beginning
mid-2014. That is, government follies with disastrous effects came
first, followed by the decline in oil prices and then the sanctions.
Two-time presidential candidate for the opposition Henrique Capriles
claimed that the crisis began prior to the fall of oil prices but for a
long time was “ignored, repressed and covered up” by the government.
Petare, Caracas, 2014. (The Photographer via Wikimedia)
There are two fallacies in this line of thinking. In the first place,
the so-called economic war against Venezuela, which eventually included
the Trump-imposed sanctions, preceded everything else. Washington
almost from the beginning of Hugo Chávez’s presidency
in 1999 did not stand by idly while he defied the neoliberal Washington
consensus as well as U.S. hegemony. Washington’s hostility seriously
harmed the economy in multiple ways.
For instance, the George W. Bush administration banned the sale of
spare parts for the Venezuelan Air Force’s costly F-16 fighter jets in
2006, forcing the country to turn to Russia for the purchase of 24
Sukhoi SU-30 fighter planes. Furthermore, the international sanctions
did not begin with Trump, but rather Obama in 2015 which were justified
by his executive order calling Venezuela a threat to U.S. national
security. That order was followed by an avalanche of pull-outs from
Venezuela by multinationals including Ford, Kimberly Clark, General
Motors, Kellogg’s and nearly all the international airlines.
In the second place, oil prices under Maduro have not only been low
since 2014 but nosedived, just the opposite of what happened under
Chávez. This is particularly problematic because high prices create
expectations and commitments that then get transformed into frustration
and anger when they precipitously drop. Prices are currently slightly
over half of what they were before the decline, in spite of their modest
recovery since 2017.
Three factors explain Venezuela’s economic woes, not one: low oil
prices, the “economic war” against Venezuela, and mistaken policies.
Prominent in the latter category is Maduro’s lethargic response to the
problem of the widening disparity between official prices set by the
government on certain items in short supply and their prices on the
black market. The government has encountered major problems in
distributing basic commodities forcing Venezuelans to buy those same
goods on the higher-priced black market. The system is conducive to
corruption and contraband as many of the products that are supposed to
be retailed at reduced prices end up being sold on the black market or
sent off to neighboring Colombia. The Dictatorship Label Repeated a Thousand Times
The media are in desperate need of good fact-checkers in their
reporting on Venezuela. Statements about Venezuelan democracy range from
blatantly misleading to accurate with most lying between the two
extremes. An example of the former is the Guardian’s claim that the Venezuelan government “controls most TV and radio stations which transmit a constant stream of pro-Maduro propaganda.”
In fact, of those who tune into Venezuelan TV channels, 80 percent
watch the three major private channels (Venevisión, Televén, and
Globovisión) which cannot be seriously accused of being pro-government.
At the other extreme is Hetland’s assertion in his Jacobin-NACLA piece
that the decision to strip Henrique Capriles of his right to run for
office as a result of corruption charges was politically motivated. The
statement is accurate. Actually, the move was worse than what Hetland
discusses. For some time before that, Capriles, whose political
positions have vacillated considerably, favored a less intransigent
stance toward the government than those on the radical right, which has
largely dominated the opposition of late. The move, in effect, played
into the hands of the radicals and undermined efforts to bring about a
much-needed national dialogue.
Those who call Maduro a dictator make two basic assertions. In the
first place, the government is alleged to have brutally repressed the
four-month long peaceful demonstrations designed to bring about regime
change carried out in 2014 and then 2017. In fact, the protests were
hardly peaceful. Six National Guardsmen and two policemen were killed in
2014 and protestors fired into an air force base in Caracas and
attacked a number of police stations in Táchira in 2017. There are different versions
of the circumstances surrounding the numerous fatalities in 2014 and
2017, thus requiring an impartial analysis, which the media has hardly
attempted to present. Police repression is reprehensible – and
repression there was on both occasions – regardless of circumstances,
but the context has to be brought into the picture.
Smoke and fires, Caracas, 2014. (Prensa Presidencial, Govt. of Venezuela via Wikimedia)
In the second place, the opposition denies that Maduro’s re-election
in May of last year was legitimate because the election was called for
by the National Constituent Assembly (ANC), whose existence allegedly
has no legal basis. One of the nation’s foremost constitutional lawyers,
Hermann Escarrá, has defended the ANC’s legality,
while others formulate plausible arguments to the contrary. Again, the
mainstream media has failed to present both sides or to objectively
analyze the issue. Nearly all the opposition parties that refused to
participate in the presidential elections in 2018, however, did
participate in the gubernatorial elections of the preceding year that
were convened by the same ANC. The justification for Juan Guaidó’s
self-proclamation as Venezuelan president on Jan. 23 was predicated on
the illegitimacy of the ANC.
Violation of democratic norms and cases of police repression do not
in themselves demonstrate that a government is authoritarian or
dictatorial. If they did, the United States would hardly be considered
democratic. The real defining issue is whether electoral fraud takes
place in which votes are not correctly counted. That accusation has been
largely absent in the controversy over recent elections, even among
leaders of the radical opposition.
The mainstream media and Washington politicians freely call Maduro an “autocrat”
a “dictator” and “authoritarian.” More than anything that is said about
Venezuela’s economic difficulties, the use of these terms has had a
profound effect on policy making. A nation’s economic problems should
not justify intervention of any sort. The real issue of contention,
therefore, is the state of Venezuelan democracy as depicted by the
dominant narrative. Amazingly enough, there is no major actor in
mainstream politics and the mainstream media willing to challenge that
narrative with all its questionable claims regarding the Maduro
government.
*
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Steve Ellner is a
retired professor from Venezuela’s University of the East and is
currently associate managing editor of “Latin American Perspectives.”
Among his over a dozen books on Latin America is his edited “The Pink
Tide Experiences: Breakthroughs and Shortcomings in Twenty-First Century
Latin America” (Rowman & Littlefield, 2019).
Featured image is from Cancillería del Ecuador via Flickr
O maior erro que este governo comete no confronto radical com os professores que lutam pelos seus direitos a uma carreira e à reposição de muitos anos de serviço, não é tanto o dinheiro que recusa gastar, mas a recusa de um reconhecimento social. A luta dos docentes é também uma luta pelo seu reconhecimento pelas instituições e pelas outras classes e grupos sociais. O reconhecimento tem de ser recíproco: para me auto-reconhecer necessito que o Outro me reconheça enquanto sujeito com atributos e direitos. O ministro Centeno reduz tudo a dinheiro. Contabilista que é, executor das políticas neoliberais de Bruxelas, não admira que assim seja. O que admira é que Costa, filho de um grande intelectual, ele próprio dado à cultura, não tenha percebido o que está em jogo. Ou está prisioneiro? Ver-se-á o resultado nas eleições legislativas de Outubro.
Por Michael Roberts, via The Next Recession, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Recentemente, o Professor David Harvey (DH) enviou um e-mail para várias pessoas, inclusive para mim, com um breve artigo para discussão em anexo.
O artigo apresenta a leitura de DH de que a teoria do valor de Marx em
economias capitalistas havia sido gravemente mal interpretada.
No caso de você não saber (o que seria
difícil de acreditar), o Professor Harvey é provavelmente o mais
eminente estudioso de Marx vivo hoje, autor de livros, artigos e vídeos
educacionais sobre teoria econômica marxista. O breve artigo que
circulou expressava sucintamente sua leitura da teoria do valor de Marx,
que ele recentemente apresentou mais extensivamente em seu último
livro, “A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI“. [1]
No artigo, intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor do trabalho“, DH argumenta que Marx sequer tinha uma “teoria do valor do trabalho”.
Sua teoria do valor era distinta daquela do economista clássico David
Ricardo. Invés disso, segundo DH, Marx teria argumentado que o valor era
um reflexo do trabalho corporificado em uma mercadoria que só seria
criado/revelado em trocas no mercado. Como afirma DH: “se não há mercado, não há valor”.
Se isso estiver correto, então seria durante a realização do valor em
sua expressão em dinheiro que o valor emergiria, não no processo de
produção em si.
DH então argumenta que se salários forem
forçados para baixo ou até ao mínimo, então não haverá mercado ou
mercadorias e, portanto, nenhum valor – e essa é a “verdadeira raiz das
crises capitalistas”. Por conseguinte, uma política para evitar crises
seria “aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de
vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o
consumismo”. Essa seria a consequência de uma leitura correta da teoria
do valor em Marx, segundo DH.
DH destaca que essa interpretação da
teoria do valor “vai muito além do que Ricardo tinha em mente e é
igualmente muito distante da concepção de valor geralmente atribuída a
Marx.” Certamente. Mas estaria DH certo em sua interpretação da teoria
do valor em Marx e, se ele estiver, teria essa interpretação alguma
validade empírica? Eu responderia ambas essas questões com: ‘no’, ‘non’,
‘nein’, para usar as três línguas melhor conhecidas por Marx.
DH inicia dizendo: “acredita-se
amplamente que Marx adaptou a teoria do valor do trabalho a partir de
Ricardo como conceito fundador para seu estudo da acumulação
capitalista” e “como a teoria do valor do trabalho foi amplamente
desacreditada, frequentemente constata-se, autoritariamente, que as
teorias de Marx são imprestáveis.” Não fica claro a quem DH está se
referindo aqui. Claramente economistas burgueses mainstream
consideram a teoria do valor de Marx inválida. Os marginalistas
neoclássicos há muito rejeitaram o conceito de valor-trabalho, taxando-o
de “metafísico”. Economistas neo-ricardianos, pós-sraffianos e
pós-keynesianos, particularmente, estão fortemente inclinados a rejeitar
qualquer noção de “valor”, classificando-a como mistificação
ideológica.
Mas a maioria dos economistas marxistas
estão cientes da distinção entre a teoria do valor em Marx e em Ricardo.
E a diferença não é o que DH diz ser, que Ricardo tinha uma “teoria do
valor do trabalho” e Marx não. A diferença é que Ricardo tinha uma
teoria de valor (de uso) baseada em “trabalho concreto” (quantidade
física de trabalho) medida em tempo de trabalho. A lei do valor em Marx
era baseada em “trabalho abstrato” (valor medido em tempo de trabalho
quando “socialmente” testado no mercado).
Sob o capitalismo, a força de trabalho
humana é em si uma mercadoria a ser vendida no mercado. De fato, essa é
uma característica chave do modo de produção capitalista, em que a
maioria não dispõe de meios de produção e, portanto, deve vender sua
força de trabalho para os donos dos meios de produção. Então, assim como
com outras mercadorias, trabalho tem uma propriedade dupla. Por um
lado, é trabalho útil, isto é, aplicação de trabalho humano em uma forma
concreta e para um propósito específico, com essa propriedade criando
valores de uso. Por outro lado, é trabalho abstrato, isto é, aplicação
de “força de trabalho” humana sem características específicas que cria o
valor da mercadoria na qual ele é representado. A partir disso Marx fez
a distinção entre trabalho e força de trabalho, uma distinção que é
absolutamente crucial para a compreensão da fonte do lucro.
Esse foi o grande avanço da teoria do
valor de Marx. O tempo de trabalho corporificado nas mercadorias
normalmente compradas pelo trabalhador para a sua reprodução e a de sua
família em um dia é menos do que o tempo de trabalho que o trabalhador
de fato oferece para o dono do capital durante o mesmo período. O
resultado é que para qualquer período de tempo dado, o trabalhador
produz mais valor do que o salário correspondente que é pago pelo dono
do capital para o usufruto da força de trabalho. A essa diferença Marx
dá os nomes de “trabalho não pago” e “mais-trabalho” – ou mais-valia. A
teoria do valor do trabalho abstrato de Marx expõe a natureza
exploradora do modo de produção capitalista, algo que nem a teoria do
valor de Adam Smith nem a de Ricardo fazem.
DH menciona apenas uma vez (e de
passagem) essa descoberta vital de Marx (o trabalho abstrato) que
distingue a lei de Marx da teoria do valor do trabalho clássica. E isso
ocorre porque DH deseja impor sua interpretação da teoria de Marx como
uma em que valor é criado/realizado apenas na troca, e não no processo
de produção pela força de trabalho. DH diz que “o valor é inicialmente
tomado como um reflexo do trabalho social (abstrato) cristalizado nas
mercadorias.” Mas “como uma norma regulatória no mercado, o valor pode
existir, como mostra Marx, apenas quando e onde a troca de mercadorias
se tornou um ‘ato social normal’.” Então, sem dinheiro, não haveria
valor.
Sim, mas o valor de uma mercadoria ainda é
o trabalho contido nela e expandido durante o processo de produção
antes de ser levado ao mercado. O valor é a aplicação de trabalho humano
físico e mental, que é então extraído pelo processo social de produção e
levado ao mercado. Valor não é uma criação do dinheiro – pelo
contrário. Dinheiro é a representação ou valor de troca do trabalho
aplicado, e não o oposto. Acredito que Marx seja nítido nesse ponto
crucial. Ele diz n’O Capital Volume Um: “O valor das mercadorias é
expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo,
portanto, o pressuposto, e não o resultado dessa última.” [2] [pág. 233 –
O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
Murray Smith, na edição nova e vindoura de seu livro, “Invisible Leviathan” [3],
oferece uma explicação concisa da diferença entre a lei do valor de
Marx e a interpretação de DH. Marx disse que: “O dinheiro como medida do
valor é a forma necessária em que aparece a medida do valor que é
imanente às mercadorias, o tempo de trabalho.” Smith comenta que isso “é
certamente inconsistente com a ideia de que o valor pode ser criado no
ato da troca. (…) É precisamente porque a troca efetua um processo de
‘equalização de produtos do trabalho no mercado’ (isto é, envolve uma
abstração real) que a produção orientada à troca deve levar em conta o
fato de que ‘trabalho fisiológico’ cria valor de troca e forma o valor
de uso – isto é, se constitui como concreto e abstrato simultaneamente.
Tentar argumentar que valor é criado ‘não na produção, mas na
articulação de produção e circulação’ é uma noção repleta de pensamento
circular e que requer a mais robusta ginástica mental para que
entretenha(…). O problema com essa abordagem é que se for aceito que o
trabalho abstrato associado não tem existência substancial apartado da
forma de valor, o dinheiro, então os valores das mercadorias parecem ser
separados totalmente de qualquer determinação pelas condições de sua
produção, e o caminho estaria pavimentado para uma efetiva identificação
de valor e preço.”
Em vez disso, a lei do valor de Marx se
baseia na visão de que o trabalho envolvido na produção de mercadorias
produz o valor, enquanto a troca o realiza na forma-dinheiro. É apenas
por causa disso que Marx é capaz de distinguir entre quantidades de
valor e mais-valia criadas na produção de mercadorias, e as quantidades
geralmente diferentes realizadas através da troca.
Ao contrário da do que pensam os
economistas mainstream e neo-ricardianos, não se trata de
“mistificação”. O valor é objetivo e real e não apenas expresso em
dinheiro. A lei do valor de Marx, na qual o trabalho abstrato (medido em
tempo de trabalho) explica o valor de troca e os preços, pode ser
validada empiricamente. [4]
Há razão por trás da interpretação de DH.
Se valor for criado apenas no momento da troca por dinheiro e “o
dinheiro reina”, então será a demanda (efetiva) que decidirá se o
capitalismo tranquilamente acumulará sem crises recorrentes. Para
mostrar isso, DH descreve com algum detalhe o impacto da acumulação
capitalista sobre as condições e padrões de vida enquanto os
capitalistas empenham-se em aumentar a mais-valia relativa através da
introdução de maquinaria. Ele usa alguns exemplos gráficos
proporcionados por Marx no Capítulo 23 [25 no original] do Volume Um. DH
enfatiza que a acumulação capitalista pretende minimizar o valor da
força de trabalho ao ponto da pauperização.
DH conclui que “Se esse é um resultado
típico da operação da lei capitalista da acumulação de valor, então há
uma profunda contradição entre as condições progressivamente
deterioradas da reprodução social e a necessidade do capital de expandir
o mercado. Como Marx nota no Volume 2 d’O Capital, a verdadeira raiz
das crises capitalistas está na supressão de salários e a redução da
massa da população à condição de pobres despossuídos.” Então a
“verdadeira raiz das crises” encontra-se na “supressão dos salários” e
na “redução da massa da população à condição de pobres despossuídos”.
Essa é a uma teoria das crises de viés subconsumista.
Há muito a ser pontuado aqui. Primeiro, o
Capítulo 23 [novamente, 25 no original], intitulado A lei geral da
acumulação capitalista, não se refere apenas à pauperização da classe
trabalhadora. DH deixa de fora um aspecto muito importante da lei geral:
a tendência ao aumento da composição orgânica do capital [5]. É isso
que aumenta a mais-valia relativa, mas também é um fator chave na
tendência de queda da taxa de lucro (desenvolvida no Volume 3), “a lei
mais importante da economia política” [6], que estabelece a base da
teoria das crises de Marx. DH ignora esse aspecto.
Mas DH se aprofunda em sua interpretação
subconsumista. “Valor depende da existência de quereres, necessidades e
desejos, apoiados pela capacidade de uma população de consumidores de
pagar(…) Isso também significa que a diminuição de salários a quase nada
será contraproducente na realização de valor e mais-valia no mercado.
Aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do
capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo são
cruciais para a teoria do valor.” A partir disso DH argumenta que o
capitalismo entra em crise porque os salários são suprimidos; então
aumentar salários, garantindo “consumo racional”, proporcionaria a
“capacidade da pagar” e daria fim às crises.
Essa interpretação subconsumista da
teoria de Marx foi firmemente rejeitada – pelo próprio Marx – na famosa
nota no mesmo Volume 2 ao qual DH se refere (sublinhados meus).
“É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da carência de consumidores solventes.
(…) Que as mercadorias sejam invendáveis significa apenas que não foram
encontrados compradores solventes para elas e, portanto, consumidores
(já que, em última instância, as mercadorias são compradas para o
consumo produtivo ou individual). Mas
caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma fundamentação
profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte
demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria
remediado tão logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por
conseguinte, seu salário aumentasse nessa proporção, bastará observar
que as crises são sempre preparadas num período em que o salário sobe de
maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma
participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo.
Já do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e
“simples” (!), esses períodos teriam, ao contrário, de eliminar as
crises.” [7] [pág. 514 O Capital Livro II, Editora Boitempo, 1ª edição]
A meu ver, Marx rejeitou tanto a lei do
valor na interpretação de DH como também a conclusão de que as crises
são causadas pela incapacidade de pagar pelos “quereres, necessidades e
desejos” das pessoas. Mas Marx poderia estar errado e DH certo sobre a
causa das crises. No entanto, as evidências empíricas não apoiam DH.
Deixe-me citar apenas três fatos. O
primeiro é que o consumo dos trabalhadores não é o maior setor de
“demanda” numa economia capitalista; é o consumo de capital produtivo.
Produto interno bruto é uma medida da demanda anual por “quereres,
necessidades e desejos”. Nos EUA, o consumo parece constituir 70% do
PIB. No entanto, se você olhar para o “produto bruto” que inclui todo os
produtos intermediários com valor agregado não contabilizados no PIB,
então o consumo aparece como apenas 36% do produto total; o restante
constitui demanda do capital por partes, materiais, bens intermediários e
serviços. É o investimento de capitalistas que é o fator determinante e
motor da demanda, não o consumo de trabalhadores.
Isso fica demonstrado no segundo fato. Se
analisarmos as mudanças em investimento e consumo que precedem cada
recessão ou baixa na economia norte-americana do pós-guerra, veremos que
a demanda de consumo teve pequeno ou nenhum papel na causação de uma
queda. Nas seis recessões desde 1953, o consumo pessoal caiu menos do
que o PIB ou o investimento em cada ocasião e absolutamente não caiu em
1980-2. O investimento caiu de 8 a 30% em todas as ocasiões.
Mudanças de porcentagem em consumo pessoal real (PC), investimento e produto interno bruto (GDP).
O terceiro fato diz respeito diretamente a
salários e à alegação de DH de que aumentá-los ajudaria o capital.
Carchedi estabelece que das 12 crises após Segunda Guerra, 11 foram
precedidas por aumento dos salários e apenas uma por queda dos salários
(a crise de 1991) [8]. Isso confirma a visão de Marx na nota do Volume 2
acima.
Eu concluo a partir do breve artigo de DH
que ele pretende estabelecer uma tese de que a luta de classes não é
mais centrada ou decidida entre trabalho e capital no ponto de produção
da mais-valia. Em vez disso, no capitalismo “moderno”, ela se encontra
em outros pontos desse “circuito do capital” que ele apresenta em seu
último livro e em várias apresentações globalmente. Para DH, é no ponto
da realização (isto é, aluguéis, hipotecas, superfaturamento por
farmacêuticas etc.) ou na distribuição (por impostos, serviços públicos
etc.) que os “pontos quentes” da luta de classes estão focados agora. A
luta de classes na produção agora é menos importante (ou até
inexistente).
A meu ver, para apoiar isso, DH apresenta
uma série de confusões teóricas em seu artigo. Primeiro, Marx não teria
uma teoria do valor do trabalho. Segundo, o valor só seria criado na
troca (na realização). Terceiro, a taxa de lucro (ou mesmo o próprio
lucro) seria irrelevante para as crises: o importante seria o decréscimo
do valor da força de trabalho ao mínimo (ou até a zero!) não permitindo
que os trabalhadores sejam capazes de alcançar seus “quereres, desejos
etc.” Isso resulta numa teoria do subconsumo bruta – ainda mais bruta
que a de Keynes.
DH deliberadamente ignora a diferença (e a
dualidade) entre trabalho concreto e abstrato, e sua contrapartida,
valor de uso e valor de troca. A natureza dual do valor numa mercadoria,
como Marx descobriu, é reduzida por Harvey a uma incapacidade dos
trabalhadores de comprar seus valores de uso. Valor de uso (quereres e
desejos) é a chave, não o valor de troca no valor, para DH. A teoria das
crises de Marx (baseada em mais-valia insuficiente) é substituída por
valores de uso insuficientes para trabalhadores como consumidores.
Sobreacumulação é substituída por subconsumo. A luta de classes deixa de
ser sobre trabalhadores versus capitalistas para se tornar sobre
consumidores versus capitalistas ou pagadores de impostos versus
governos.
Não é a visão de Marx. Mais importante, a
abordagem inteira é confusa para uma análise classista e estratégica
para a luta da classe trabalhadora.
Os erros de compreensão de Michael Roberts
Por David Harvey, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Há, obviamente, alguns pontos sérios para
discussão a respeito da teoria do valor de Marx e eu espero que o
diálogo com Michael Roberts auxilie nessa questão. Antes de me ater a
eles, eu preciso corrigir uma série de erros de leitura e interpretação
sobre minha posição presentes na resposta de Roberts. Permitam-me ser
claro: o valor sempre é criado no ato da produção. Mas é realizado no
momento da troca no mercado. Eu, portanto, penso no valor em termos do
que Marx chama de “a unidade contraditória da produção e da realização.”
O valor não pode ser produzido através da troca no mercado. Marx é
suficientemente claro a esse respeito.
A essência do valor é o trabalho abstrato
ou, como eu prefiro dizer, “trabalho socialmente necessário”. Roberts
está obviamente correto em dizer que a definição de Marx é inteiramente
diferente do tempo de trabalho concreto postulado por Ricardo. No
entanto, não importa se dissermos “trabalho abstrato” ou “socialmente
necessário”, o ônus da questão cairá sempre em como a abstração seria
feita e no que se entenderia por socialmente necessário. A resposta a
tais questões deve se basear em processos materiais e não construída
através de exercícios idealistas. Portanto, por qual processo
materialista o valor será construído se não for “inerente” às
mercadorias, mas historicamente criado.
A resposta é dada no ponto de partida de
Marx n’O Capital, que é o ato material idealizado da troca de
mercadorias. Se o capitalista leva a mercadoria ao mercado e não há
querer, necessidade ou desejo por ela, então o trabalho cristalizado
nela é socialmente desnecessário e, portanto, não tem valor (isso é o
que Marx diz ao fim da primeira seção d’O Capital) [página 211 da edição
da Boitempo, Livro I]. Isso não significa que o valor seja criado no
mercado (o que Roberts erroneamente me acusa de dizer). Mas – e essa
pode ser minha visão particular da questão – eu tomo o valor criado na
produção como um valor meramente potencial até que ele seja realizado.
Outra forma de dizê-lo seria afirmar que o valor é produzido, mas que
será perdido se não houver para ele demanda no mercado. Nesse caso,
precisaríamos construir uma teoria forte de desvalorização para dar
conta do que ocorre no mercado. A desvalorização raramente aparece nas
considerações de Roberts e não tem lugar em sua resposta. Dado meu
interesse na relação entre valor e não-valor ou anti-valor, essa última
formulação pode também funcionar para mim. Mas em ambos os casos eu
acredito que seja inegável que o estado de quereres, necessidades e
desejos apoiados por capacidade de pagamento tenha um papel importante
na sustentação da circulação do capital. Isso não significa, como
Roberts infere repetidas vezes, que esse seja o único fator relevante na
formação da crise. Eu me esforcei para dizer diversas vezes que esse é
apenas um momento importante na circulação do capital onde
desvalorizações (eventualmente, mas nem sempre, da proporção de uma
crise) podem ocorrer.
Mas Roberts adora por diversas vezes me
relegar a essa categoria pejorativa de subconsumista sempre que eu
menciono tais questões. Foi Marx, e não eu, quem disse que “a verdadeira
raiz das crises” está no poder de compra diminuído das classes
trabalhadoras e se eu cito Marx nesse momento é porque é um impecável
antídoto para todos aqueles que incansavelmente recorrem à queda da taxa
de lucro. Eu tenho argumentado que crises vêm em muitas formas e
tamanhos. A queda da taxa de lucro ou o colapso da demanda consumidora
são duas de muitas explicações (eu noto de passagem que Marx, em seus
comentários sobre as crises de 1847 e 1857 – crises que assemelharam-se
excepcionalmente à de 2007-8 – descreveu as crises como comerciais e
financeiras sem qualquer menção à queda da taxa de lucro ou a demanda
consumidora insuficiente).
Minha objeção a qualquer interpretação
produtivista excludente (para fazer uma caracterização pejorativa
correspondente!) é que elas isolam totalmente toda a história de criação
de quereres, necessidades e desejos (sem mencionar a mecânica de
garantia da capacidade de pagamento) na história da acumulação
capitalista. Acredito que devamos prestar muito mais atenção a esse
aspecto. Isso não significa que eu subestime, negue ou refute todo o
trabalho que tem sido feito no processo de trabalho e a importância das
lutas de classes que têm ocorrido e continuam a ocorrer na esfera
produtiva. Mas essas lutas devem ser relacionadas às lutas em torno da
realização, distribuição (por exemplo, extrações de renda, execuções de
dívida), reprodução social, o manejo da relação metabólica com a
natureza e os presentes gratuitos da cultura e da natureza. Esses todos
têm tido grande importância em movimentos anticapitalistas recentes e eu
insisto que os encaremos com seriedade ao lado do mais tradicional foco
na esquerda marxista com a tendência de assumir a luta de classes no
ponto da produção como o momento-chave da luta. É por isso que eu
acredito que o diagrama que eu ofereço da circulação e a definição de
capital como valor em movimento seja tão importante. É estranho ver tudo
isso desprezado na citação de Murray Smith como “pensamento circular”!!
Essa perspectiva abre algumas linhas
interessantes de questionamento e pontos de divergência. As
considerações de Marx sobre lutas em torno da jornada de trabalho e das
forças que movem mudanças tecnológicas e organizacionais em busca de
mais-valia relativa todas dependem das “leis coercitivas da competição”.
Esse termo aparece em vários pontos-chave no argumento de Marx ao longo
d’O Capital. Onde essa força é mobilizada e mais distintamente notada?
No mercado, é claro! Nós não podemos entender o que ocorre no âmbito da
produção (ou reprodução social) sem a atuação de forças de mercado. São
as leis coercitivas da competição no mercado que orientam o
reinvestimento capitalista e o prolongamento da jornada de trabalho etc.
Mas isso nos remete a como Marx
estabelece a abstração de valor – o que é, aliás, na visão de Marx, uma
relação social, portanto “imaterial porém objetiva” e não “inerente” e
“real” como a citação de Murray propõe (“Exatamente ao contrário da
objetividade sensível e crua dos corpos-mercadorias, na objetividade de
seu valor não está contido um único átomo de matéria natural.” diz Marx
n’O Capital). [página 125 de O Capital Livro 1, editora Boitempo, 1ª
edição revisada] O valor emerge não como produto do pensamento, mas como
produto de um processo material histórico. O estudo de Marx de formas
de valor equivalentes e relativas leva à generalização da troca que
fundamenta o surgimento do valor como uma norma regulatória que opera no
mercado, e é essa norma regulatória do valor que então retorna para
dominar comportamentos não apenas no mercado, mas também no âmbito da
produção e da reprodução social. Esse é um movimento muito dialético que
Marx faz, mas é comumente encontrado no trabalho de Marx. Apenas dessa
maneira, por exemplo, pode-se entender como se dá que os trabalhadores
façam o capital que em seguida retorna para dominá-los e que todos nós
possamos nos tornar prisioneiros de nossos próprios produtos (atenção
acadêmicos!!).
Finalmente, permitam-me comentar sobre o
exemplo empírico no qual Roberts reduz a demanda final de 70 para 30
porcento. Para ser claro, há uma questão complicada sobre como lidar com
relações de valor através de cadeias de mercadorias (há um artigo
interessante de Starosta sobre Cadeias de Mercadorias e a teoria do
valor de Marx na revista Antipode de 2011). Mas imagine a situação em
que minério de ferro seja minerado e a empresa mineradora produza valor e
mais-valia, a serem realizados através da venda para uma companhia que
produza aço, que por sua vez realize mais valor e mais mais-valia
através duma venda para uma empresa automobilística, que produza ainda
mais valor e mais-valia pela venda de automóveis para consumidores
finais que queiram e necessitem de um automóvel e tenham dinheiro para
comprá-lo. O valor do automóvel é todo o trabalho abstrato pretérito
aplicado. Suponha que, por algum motivo, os consumidores finais não
sejam capazes de pagar ou estejam saturados de automóveis. Então todo o
valor acumulado é perdido (desvalorizado). Na prática, como Marx
observou, a cadeia de pagamentos pode demorar para se estabelecer, mas
quando ela o faz toda a produção de valor nessa cadeia desaparece.
Claro, todo outro tipo de cenários pode
ser imaginado. Mas o ponto aqui é que ninguém exceto loucos e
especuladores desejarão acumular aço na ausência de um mercado adequado.
Então o que ocorre com o valor nessas situações torna-se problemático e
as considerações de Robert fazem parecer que investimento na produção
de meios de produção é independente da demanda final e pode ocorrer
independentemente das condições finais do mercado. Claro, há certos
tipos de investimento com todo tipo de defasagem temporal (capital fixo e
infraestrutura), como a superprodução chinesa de cidades financiadas
pelo endividamento, onde as coisas ficam muito complicadas (como eu
destaquei no capítulo final de Loucura da Razão Econômica). Mas o
exemplo empírico de Roberts não faz sentido para mim na elucidação do
porquê da realização ou as políticas de realização serem irrelevantes ou
no máximo colaterais à ação central do âmbito produtivo.
Tudo isso e nós ainda não nos debruçamos
sobre as questões espinhosas do dinheiro e das políticas de distribuição
ao lado da circulação de capital portador de juros em relação à teoria
do valor. Podem bancos produzir valor? Eles claramente podem produzir
representações de valor a passo largo… Seríamos nós colaterais também?
2) [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
3) Murray Smith, Invisible Leviathan, 2018
4) Cockshott e Cottrel dividiram a
economia em um grande número de setores para mostrar que o valor
monetário do produto bruto desses setores correlaciona-se fielmente com o
trabalho empenhado na sua produção. Anwar Shaikh também fez algo
similar. Ele comparou preços de mercado, valores de trabalho e preços
padrão de produção calculados das tabelas de fluxo [input/output] dos
Estados Unidos e constatou que em média valores de trabalho desviam de
preços de mercado por apenas 9,2% e que preços de produção (calculados a
taxas de lucro observadas) desviam de preços de mercado por apenas
8,2%. Lefteris Tsoulfidis e Dimitris Paitaridis investigaram a questão
das variações de preço-valor usando a tabela de fluxo [input/output] do
Canadá. Eles constataram que para a economia canadense os resultados são
consistentes com a teoria do valor de Marx. E G. Carchedi, em um artigo
recente, mostrou que a validade da lei do valor de Marx pode ser
testada com dados oficiais dos Estados Unidos, os quais são preços
deflacionados em dinheiro de valores de uso. Ele constatou que taxas de
lucro de dinheiro e valor moviam-se na mesma direção (com uma tendência
ao decréscimo) e mantinham-se muito próximas uma à outra.
5) “A acumulação de capital, que
originalmente aparecia tão somente como sua ampliação quantitativa,
realiza-se, como vimos, numa contínua alteração qualitativa de sua
composição, num acréscimo constante de seu componente constante à custa
de seu componente variável.” [pág. 704 O Capital Livro I, Editora
Boitempo, 1ª edição revisada]
Boitempo libera curso completo ministrado por Ricardo Antunes!
Sociólogo conduz leitura comentada de sua mais
recente obra "O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços
na era digital", no canal da Boitempo no YouTube.
A TV Boitempo acaba
de disponibilizar mais um webcurso completo! Em “O privilégio da
servidão”, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes conduz uma leitura
comentada de seu mais novo livro sobre o novo proletariado de serviços na era digital.
Ao todo são cinco aulas dedicadas a atravessarem, capítulo a
capítulo, a leitura dessa densa e explosiva obra sobre o mundo do
trabalho hoje: desde a nova morfologia do trabalho no capitalismo
contemporâneo, passando pela crise dos sindicatos e das formas de
mobilização dos trabalhadores, pelo diagnóstico afiado do cenário
político contemporâneo marcado por um violento processo de
contrarrevoluções, até chegar nos desafios para uma renovada práxis
política socialista emancipatória.
Ao final do curso, incluímos um vídeo bônus em que Antunes comenta
o fenômeno em curso da fascistização da sociedade brasileira à luz do
processo de precarização de trabalho que assola o Brasil e o mundo hoje.
A série pode servir tanto de complemento quanto de convite à leitura da
obra.
Não deixe de se inscrever no nosso canal para
receber nossos conteúdos em primeira mão. Com vídeos novos a cada dois
dias, a TV Boitempo reúne cursos exclusivos, gravações de debates,
palestras e aulas promovidos pela editora, além de reflexões inéditas de
nossos autores sobre temas diversos. Com coordenação de Artur Renzo e
assistência de Heleni Andrade, a TV Boitempo já ultrapassou o marco de
cem mil inscritos, consolidando-se como o maior canal de YouTube de todo
o mercado editorial brasileiro.
Bons estudos!
1. Introdução: o privilégio da servidão
Neste vídeo, Ricardo Antunes introduz a perspectiva teórica da obra,
contextualiza o projeto do livro e apresenta as principais questões e
temas abordados.
2. O novo proletariado da era digital
Defendendo não apenas a vitalidade analítica do conceito de
proletariado para compreender a realidade social de hoje, como a
urgência política dessa perspectiva teórica, Ricardo Antunes mergulha na
questão central da Parte I do livro. A aula descreve os contornos e as
complexidades do proletariado em sua nova morfologia na chamada “era
digital” em que estamos imersos.
3. Precarização, terceirização e crise nos sindicatos
Nesta terceira aula de seu webcurso na TV Boitempo, o sociólogo do
trabalho retira uma das questões centrais da Parte II do livro e
coloca-a sob o microscópio: de que forma os processos sociais e
econômicos da precarização do trabalho e terceirização dos vínculos
empregatícios afeta as capacidades e as formas de resistência dos
trabalhadores? É este o cerna da crise no sindicalismo tradicional que
Ricardo Antunes aborda neste vídeo.
4. Crise e contrarrevolução no Brasil hoje
Ricardo Antunes apresenta, nesta aula, seu diagnóstico da conjuntura
política brasileira recente. Ele discute aquilo que ele denomina o fim
de uma era de conciliações escancarada pela crise global e pelas
rebeliões de junho de 2013 e a violenta onda de contrarrevolução
preventiva que as seguiu. O conteúdo do vídeo diz respeito à Parte III
do livro O privilégio da servidão.
5. Há luz no final do túnel? Socialismo no século XXI
Nesta quinta e última aula, Ricardo Antunes procura responder à
difícil mas incontornável pergunta: “Há luz no final do túnel?”. No
vídeo, ele discute a urgência e os desafios de reinventar o socialismo
no século XXI. O vídeo corresponde ao conteúdo da Parte IV do livro O privilégio da servidão.
6. Bônus: A fascistização política e o mundo do trabalho
Ricardo Antunes não titubeia em afirmar que a ascensão de um fascismo
e a efetivação de uma ditadura militar são ameaças reais no Brasil de
hoje. Neste vídeo, gravado durante a campanha eleitoral de 2018, ele
analisa esse fenômeno da fascistização da sociedade à luz do processo de
precarização de trabalho que assola o Brasil e o mundo hoje. E provoca:
“A democracia burguesa tem a aparência da civilidade. Mas quando as
coisas vão mal, ela abre as portas do inferno.”
O livro
O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, de Ricardo Antunes
“Cientista
social marxista, Ricardo Antunes não esconde sua opção socialista. Esse
é o horizonte revolucionário que dá a esta brilhante pesquisa
sociológica toda sua potência crítica e subversiva.” – Michael Löwy
“Este livro é um importante marco para o
entendimento da relação entre capital e trabalho. Ricardo Antunes
combina duas qualidades raramente presentes na mesma pessoa: uma visão
clara da dinâmica de reestruturação do capitalismo global e um
discernimento profundo do que essa mudança significa para os
trabalhadores.” – Ursula Huws.
“Ricardo Antunes é um
narrador lúcido e apaixonado do atual processo de transformação das
condições de trabalho, existência e organização dos trabalhadores.” – Pietro Basso.
“20. Nossa tarefa mais importante
antes do levante revolucionário declarado é a propaganda e a agitação
revolucionária. Esta atividade e sua organização é conduzida
freqüentemente ainda da antiga maneira formalista. Em manifestações
ocasionais, reuniões de massas e sem cuidado com o conteúdo
revolucionário concreto dos discursos e panfletos.” Em “A Estrutura, os Métodos e a Ação dos Partidos Comunistas”, III Internacional, 1921.
Boa parte da militância revolucionária conhece o termo agitprop,
popularizado pelos partidos comunistas da III Internacional em meio aos
movimentos contra a exploração e a opressão. A agitação e a propaganda,
reunidas por meio desse acrônimo, sempre tiveram um lugar de destaque
em meio às tarefas da militância comunista. Como leninistas, acreditamos
que a atividade fundamental
de toda militância comunista “deve consistir em um trabalho de agitação
política unificada; que ilumine todos os aspectos de vida e dirija-se
às massas em geral”. Mas, afinal, o que é agitação, e o que é
propaganda, e qual a diferença entre ambas as coisas?
Uma das melhores sínteses sobre a questão está na obra “Que Fazer?”,
de Lenin. A citação pode ser um pouco longa, mas vale a pena
transcrevê-la para, depois, retornarmos às várias questões que esse
síntese permite levantar, em nossa época. Referindo-se à formulação de
Plekhanov sobre o tema, e criticando as ideias de Martynov a respeito,
Lenin repete:
“[…] as palavras de
Plekhanov: ‘O propagandista inculca muitas ideias em uma única pessoa,
ou em um pequeno número de pessoas; o agitador inculca apenas uma única
ideia, ou um pequeno número de ideias, em troca, inculca-as em toda uma
massa de pessoas’. […]
[Pensamos] (com
Plekhanov e todos os dirigentes do movimento operário internacional) que
um propagandista, ao tratar, por exemplo, do problema do desemprego,
deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna
inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade da transformação
dessa sociedade em sociedade socialista etc. Em uma palavra, deve
fornecer “muitas ideias”, um número tão grande de ideias que, de
imediato, todas essas ideias tomadas em conjunto apenas poderão ser
assimiladas por um número (relativamente) restrito de pessoas.
Tratando da mesma
questão, o agitador tomará o fato mais conhecido de seus ouvintes, e o
mais palpitante, por exemplo uma família de desempregados morta de fome,
a indigência crescente etc., e apoiando-se sobre esse fato conhecido de
todos, fará todo o esforço para dar à massa “uma única ideia”: a
[ideia] da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da
miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, a indignação
da massa contra essa injustiça gritante, deixando ao propagandista o
cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição.
Por isso, o
propagandista age principalmente por escrito, e o agitador de viva voz.
Não se exige de um propagandista as mesmas qualidades de um agitador.
Diremos que Kautsky e Lafargue, por exemplo, são propagandistas,
enquanto Bebel e Guesde são agitadores.
Distinguir um terceiro
domínio, ou uma terceira função da atividade prática, função que
consistiria em “atrair as massas para certos atos concretos”, é o maior
dos absurdos, pois o “apelo” sob forma de ato isolado, ou é o
complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto de
propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de
execução.
De fato, tomemos, por
exemplo, a luta atual dos sociais-democratas alemães contra os direitos
alfandegários sobre os cereais. Os teóricos redigem estudos especiais
sobre a política alfandegária, onde “apelam”, digamos assim, para se
lutar por tratados comerciais e pela liberdade do comércio; o
propagandista faz o mesmo em uma revista, e o agitador nos discursos
públicos. Os “atos concretos” da massa são, nesse caso, a assinatura de
uma petição endereçada ao “Reichstag” contra a majoração dos direitos
alfandegários sobre os cereais. O apelo a essa ação emana indiretamente
dos teóricos, dos propagandistas e dos agitadores, e diretamente dos
operários que passam as listas de petição nas fábricas e domicílios
particulares.”
Existem, então, dois critérios que Lenin destacada como diferenças entre a agitação e a propaganda: um critério principal, referente à “densidade do conteúdo” e à amplitude do público; e um critério acessório, relacionado à forma da comunicação (escrita ou oral).
Esmiuçando o critério principal, é
oportuno desfazer algumas confusões. A começar pelo termo “propaganda”,
cujo significado na tradição da social-democracia alemã (de onde Lenin e
os bolcheviques aprenderam o termo) é bastante distinto do uso
corriqueiro do termo, que não se pode confundir com a noção comercial e
burguesa de propaganda. Na verdade, nada poderia ser mais diferente.
O conceito comercial de propaganda está
muito mais próximo daquilo que chamaríamos agitação: a publicidade
comercial busca inculcar em um amplo público uma única ideia bastante
simples, qual seja, a ideia da utilidade e da necessidade de se consumir
tal ou qual mercadoria e marca.
Enquanto a “propaganda” comercial busca
tão somente promover uma empresa (construindo a credibilidade de sua
marca e a crença na qualidade de suas mercadorias); a propaganda
comunista busca não apenas nossa autopromoção e a divulgação de nossos
símbolos (identidade visual), mas a explicação aprofundada dos fenômenos
contraditórios das relações sociais existentes.
A respeito de nossa propaganda, seria
preciso acrescentar: é bastante arraigado na tradição socialista
brasileira o hábito de chamar de “formação” aquilo que é, no mais das vezes, propaganda.
Esse péssimo hábito chega ao extremo de produzir consequências
organizativas, quando separamos estes trabalhos como coisas distintas
(e, com isso, no mais das vezes, tornamos nossa agitprop em pura agitação, quando não em propaganda de má qualidade).
Ocorre que, na verdade, cursos abertos, rodas de discussão, grupos de estudo públicos,
palestras, etc, não são nada mais que formas não-escritas de
propaganda! Quando consideramos essa atividade como “formação”, em um
domínio distinto em relação à propaganda teórica, nosso trabalho nesse
terreno resulta desconexo ou até mesmo “professoral”. Não raras vezes,
essas “formações” dão aos ouvintes interessantes conhecimentos teóricos,
mas que não lhes conduzem muito seguramente à conclusão de concepções
política revolucionárias. Como toda propaganda, essas “formações” também
não podem se perder em escolasticismo, e devem estabelecer com nitidez a
relação existente entre a teoria propagada e a estratégia, a tática, o
programa, em suma, as concepções teóricas aplicadas à prática que são
produto das luta ideológica comum do intelectual coletivo partidário.
Uma outra coisa distinta é a formação de quadros
propriamente dita (a preparação de propagandistas, agitadores,
organizadores, etc). Aqui, com efeito, o aprofundamento polêmico pode
ultrapassar a finalidade de propaganda revolucionária – pois,
presume-se, trata-se de aprofundar a formação de militantes que já se
dedicam efetivamente ao trabalho político sob uma perspectiva
revolucionária. No entanto, também isso é prejudicado quando se faz uma
má propaganda a título de “formação” e, então, dá-se por cumprido o
trabalho formativo dos quadros. A verdadeira formação fica,
assim, relegada a um segundo plano – ou, por vezes, realizada puramente
em sua dimensão técnica (basta ver como as oficinas de produção
audiovisual ou de edição, por exemplo, quase sempre ocorrem
desacompanhadas da formação política dos quadros técnicos da
comunicação). Entre essas dimensões técnicas, a preparação na arte da
oratória costuma ser bastante negligenciada, como se fosse uma mera
questão de aptidão nata, dispensando qualquer aprimoramento e
desenvolvimento. [1]
Outro engano corrente é aquele mesmo que
Lenin critica na definição dada por Martynov para a agitação. Muitos
camaradas consideram que a agitação significaria o plano da comunicação
voltado ao “chamado à ação”. Mas, como Lenin aponta, “o ‘apelo’ sob
forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado
teórico, do folheto de propaganda, do discurso de agitação, ou é uma
função pura e simples de execução.” Tanto a agitação quanto a propaganda
(se não queremos ser meros falastrões professorais, mas propagandistas
revolucionários) devem infundir o espírito de combate e de ação em
nossos espectadores.
Tomar esse critério para definir nossa
agitação significaria, por um lado, negligenciar o aspecto do “chamado à
ação” em nossa propaganda; tanto quanto o aspecto de “luta ideológica”
de nossa agitação. É digno de nota, a esse respeito, o exemplo de
agitação oferecido por Lenin, que trata não de alguma injustiça ou
arbitrariedade pontual, mas justamente de um dos traços da contradição
fundamental da sociabilidade capitalista: a contradição entre a
crescente socialização da produção e a crescente concentração da
propriedade, que se expressa, entre outras coisas, no simultâneo
crescimento da riqueza e da miséria social. O agitador, tanto quanto o
propagandista, faz “luta de classes na filosofia” e, ainda mais
importante, faz luta ideológica de massas, e não apenas nos meios mais
intelectualizados.
Feitos esses apontamentos em torno do
critério principal, resta analisar o critério acessório (“o
propagandista age principalmente por escrito, e o agitador de viva voz“).
Lenin pronuncia com nitidez o caráter secundário deste critério (por
isso fala “principalmente”, e não de modo absoluto). Mesmo à sua época,
já circulavam impressos de caráter eminentemente agitativo (caráter que
também se pode atribuir às charges impressas, por exemplo, desde os
cartazes e panfletos da época da Revolução Francesa). Do mesmo modo, os
propagandistas já atuavam também por meios orais, especialmente por meio
de palestras itinerantes (os “propagandistas volantes”, que Lenin
menciona em “Carta a um camarada”).
No entanto, entre a época de Lenin e a
nossa há um século de grandes revolucionamentos nos meios técnicos de
produção e difusão da comunicação. Tais modificações nos meios de
comunicação contribuíram para tornar esse critério acessório de
diferenciação cada vez menos apropriado.
Isso ocorre, primeiramente,
porque surgiram novos meios de formalização, de registro da comunicação.
Uma palestra de um propagandista, tanto quanto o discurso de um
agitador, podem ser gravados e reproduzidos infinitas vezes,
necessitando ser proferidos uma única vez. Tornou-se possível editar
essas mesmas comunicações orais de modo a complementá-las com imagens,
que demonstrem graficamente aquilo que o discurso enuncia. A “agitação
oral” hoje também pode ser feita por meio de áudios em grupos de
mensagens, etc. Ao mesmo tempo, se as imagens desempenhavam um papel
secundário nas publicações impressas, adquirem, em especial nas mídias
digitais, o papel de principal veículo de conteúdos textuais (sejam os
“memes” ou mesmo as mais simples frases diagramadas em meio às fotos).
Em segundo lugar, em especial
após o advento da Internet, modificaram-se significativamente os
aspectos de nosso trabalho de “distribuição de literatura”. Há um
século, seria praticamente impossível obter contato com a literatura
comunista senão através do trabalho partidário de distribuição de
literatura. Se o próprio mercado editorial já passou a suprir parte
desta demanda, a Internet modificou definitivamente a dificuldade
material de acesso à literatura revolucionária – vejamos, por exemplo, o
brilhante trabalho de portais como o http://www.marxists.org.
Mas qual o interesse em insistir nessa
questão? Ora, na Era da Prensa, a época em que os meios técnicos
permitiam sustentar aquele critério acessório de diferenciação
com alguma segurança; esta distinção era um ponto de apoio para a
divisão especializada do trabalho nas organizações revolucionárias.
Enquanto os agitadores se qualificavam como oradores, os propagandistas
se preparavam para desempenhar o papel de publicistas e redatores. Em
ambos os casos, esses e essas camaradas eram coletivamente destacadas e
coordenadas nestas tarefas.
E hoje? Cada vez mais as fronteiras entre
a agitação e a propaganda se confundem. Virtualmente, como todo cidadão
se tornou um “jornalista” por meio de seu perfil online, também todo
militante se tornou um publicista digital. Com o acesso facilitado aos
meios de publicação, em seus perfis pessoais, muitos camaradas buscam
atuar duplamente como agitadores e propagandistas, sem preparo
especializado – e mesmo a criação de diversas “páginas” virtuais é
produto de ações isoladas, sem conexão orgânica.
Ainda mais: como as mídias digitais são
uma via interativa de mão dupla, é muito comum que a agitação e a
propaganda ocorram desordenadamente, passando de uma à outra sem muito
cuidado e reflexão. Um exemplo: se algum camarada publica uma peça de
agitação e é interpelado, nos comentários da postagem, sobre alguma
questão mais complexa, rapidamente buscará respondê-la, mesmo sem grande
domínio do tema. Com isso, se substitui precariamente a prévia
preparação do propagandista pela pesquisa imediata, em busca de fontes
que respaldem uma reposta previamente concebida.
Dialogamos com dezenas de interlocutores
em um mesmo debate, negligenciando seus níveis desiguais de consciência e
suas diferentes posições materiais e políticas. Respondemos
raivosamente tanto ao pequeno burguês reacionário que sequer mereceria
atenção quanto ao trabalhador entorpecido pelo bombardeio midiático de
mentiras. Esquece-se que, naturalmente, quanto mais profunda a
explicação e mais complexo o tema, menos provável que seja absorvida por
“muitas pessoas”, ainda mais em um ambiente desvinculado de qualquer
experiência efetiva de organização e luta de massas. Contudo, não
importa o quão amplamente as novas mídias permitam que nossa comunicação
se espalhe: a distinção entre níveis de compreensão nas várias camadas
da classe trabalhadora segue existindo, e não de elimina senão pela
combinação consistente entre participação efetiva nas lutas de classes e
a influência, paciente e prolongada, de toda a propaganda socialista!
Ignorando essa verdade, muitos camaradas se afobam e buscam coagir os
interlocutores a aceitar as verdades do marxismo, a golpes de ironia,
ofensas e desdém. [2] O dogmatismo nunca esteve tão em alta, talvez,
quanto na época em que basta linkar uma citação direto da fonte para atestar a veracidade de uma posição.
Talvez seja ainda mais importante do que
nunca insistir, portanto, na questão da paciência na propaganda, já
manifestada por Lenin: “Para não deixar nenhuma sombra de dúvida neste
tocante, eu enfatizei por duas vezes nas Teses [de Abril] a necessidade
de um trabalho “explicativo” paciente e persistente, adaptado às necessidades práticas das massas”.
Quando os bolcheviques eram acusados caluniosamente de serem “agentes
dos interesses alemães”, Lenin insistia que, “desmentindo a farsa e a
difamação, devemos, com mais calma que nunca” pensar a fundo nas
questões, sem nos bastar nas respostas prontas impacientes.
Essa afobação desordenada não apenas
enfraquece a agitação (passando ela para um plano secundário), como
produz efeitos danosos no plano da propaganda, agravando a dispersão de
nosso “trabalho explicativo”. E, na verdade, a centralização da
propaganda é um dos desafios fundamentais da organização revolucionária,
e a condição da própria unidade na agitação.
Quando vemos o tipo de preocupação que,
já à época de Lenin, a organização dos propagandistas provocava, não é
difícil compreender como a dinâmica digital ajuda a encubar os piores
hábitos liberais de nossos intelectuais e publicistas de esquerda (em “Carta a um camarada”):
“A propaganda deverá ser feita de forma uníssona por todo o comitê, a quem corresponde centralizá-la rigorosamente. (…)
Quanto aos
propagandistas, ainda gostaria de dizer algumas palavras contra a
tendência usual de abarrotar essa profissão com pessoas pouco capazes
rebaixando com isso, o nível da propaganda. Às vezes, entre nós,
qualquer estudante indiscriminadamente é considerado propagandista, e
todos os jovens exigem que se lhes “dê um círculo”, etc. Temos que lutar
contra essa prática, pois são muitos os males que daí advém. As pessoas
realmente firmes quanto aos princípios, e capazes de ser propagandistas
são muito poucas (e para chegar a sê-lo é preciso estudar muito e
acumular experiência), e a estas pessoas é necessário especializá-las,
ocupar-se delas e cuidá-las com zelo. É preciso organizar várias aulas
por semana para esse tipo de pessoas, saber enviá-las oportunamente a
outra cidade e, no geral, organizar visitas dos mais hábeis
propagandistas pelas diversas cidades.”
Se é verdade que as mídias digitais
permitem ampliar a abrangência do nosso trabalho de massas, incumbindo
contingentes cada vez maiores de quadros na produção e distribuição de
nossa agitação e propaganda – então, organizar de modo consequente e
planejado a atuação dispersa de centenas de militantes é uma das
questões candentes de nosso movimento, no século XXI.
Ainda estamos reagindo à chamada “crise
do jornalismo”. Não apenas ainda organizamos de forma insuficiente nossa
atuação virtual como permitimos, muitas vezes, que essa desorganização
nos atinja no plano do trabalho físico (refletindo na distribuição dos
jornais impressos, na correspondência e na literatura partidária, nos
contatos entre os organismos e militantes, etc).
Retomar a discussão aberta sobre nossa
agitação e nossa propaganda é um ponto de partida inevitável. Só assim
poderemos aproveitar as oportunidades [3] que esses novos veículos
abrem, assegurando nossa unidade de ação e, ao mesmo tempo, ampliando
também a consistência de nossas redes orgânicas, físicas, de
distribuição de panfletos, jornais, comunicados, etc. Não basta que um
debate efêmero venha à tona a cada nova situação (cada novo caso
problemático de agitação e propaganda virtual, cada nova confusão na
resposta aos eventos da conjuntura, etc). O ponto de partida para
organizar de nosso trabalho comum na luta ideológica deve ser a própria
organização da discussão sobre os dilemas de nossa luta ideológica
diante dos desafios da comunicação digital. De nenhum outro modo
poderemos sistematizar as experiências já existentes rumo a uma atuação
planejada e sistemática, que escape à reatividade.
[1] Outra questão sobre a qual valeria
uma reflexão, ligada a este tema terminológico da “formação”, é a
distinção entre o “trabalho de base”, termo corrente entre nós, e o
“trabalho de massas”, conforme formulado por Lenin. Não se trata apenas
de uma diferente escolha de palavras: enquanto o trabalho de massas
compreende a agitação e a propaganda de modo integrado, concebido à
escala geral de todo um país (um trabalho que demanda ações locais, mas
concebido à escala de massas); o trabalho de base pode muito bem existir
de modo localizado, sem qualquer perspectiva programática integral, sem
exigir a conjugação de diferentes esforços e áreas de atuação, etc. Por
isso mesmo, talvez, todo o falatório tão presente na esquerda há uma
década sobre a “falta de trabalho de base” não tenha levado a grandes
soluções: agrava a dispersão, empurra a militância para as diversas
frentes locais de atuação cotidiana, sem muito bem sanar as debilidades
da esquerda na luta ideológica em um plano mais geral e unitário. Sem
dúvida alguma o trabalho pedagógico à escala local é uma necessidade
primária no trabalho de organização, agitação e propaganda. Mas não
devemos relegar o próprio trabalho de coordenação dos propagandistas,
agitadores e organizadores atuando entre as massas (“na base”) como um
trabalho desprezível, menor, burocrático, etc.
O “trabalho de base” aparece no discurso
corrente como a panaceia contra o distanciamento entre dirigentes e
dirigidos, e como cura contra a pura ação performática.
Mas nenhuma agitação pode prescindir de alguma dose de performance.
Seria um despropósito extrair, da crítica da ação performática, uma
negação da importância de ações como o teatro político de rua, por
exemplo. Nesse sentido, a crítica da ação performática deve frisar muito
mais a falta de consequência na luta ideológica do que um repúdio de tal ou qual forma de agitação e propaganda. Uma ação é meramente performática não porque é também
performática, e sim porque lhe falta conexão com um planejamento mais
amplo e sistemático, associado ao conjunto do trabalho de propaganda e
de organização.