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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

arta - 27/2/19
Sumário
Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
A greve e a selva
Contactos do autor Instagram
São já 15,6% os trabalhadores portugueses que recorrem a plataformas de trabalho “colaborativo”, um eufemismo para empresas como a Uber ou a Glovo se livrarem de todos os vínculos e direitos laborais. Portugal está acima da média europeia, mas 40% dos trabalhadores que usam estas plataformas ainda só retiram delas um quarto do seu rendimento. O futuro está aqui e o resultado será a perda do direito a férias, fins de semana, horário, proteção no desemprego e na velhice e greve. O mercado de trabalho recuará 150 anos.
Mesmo com alguns recuos, com recurso do Estado a outsourcing e a tarefeiros precários, o retrocesso será sempre mais lento no sector público. O que quer dizer que a realidade no privado se afastará cada vez mais da que ainda é vivida, e bem, no Estado. Por mais que custe à esquerda – a mim custa-me –, é impossível pensar no futuro do sindicalismo e das lutas laborais ignorando esta diferença. Ela será aproveitada, acicatada e explorada pela direita.
Como temos visto com o crowdfunding para a greve dos enfermeiros, as novas plataformas tecnológicas também podem ser usadas na luta dos trabalhadores. Acreditar que isto é extensível a todos os trabalhadores é ignorar que as vantagens da tecnologia raramente são democraticamente distribuídas. Elas tendem a replicar as desigualdades que lhes são prévias. É por isso que são os trabalhadores que ainda têm a proteção do século XX a conseguirem usar as formas de luta do século XXI. Estão mais seguros para dar esse passo. Quem não corre o risco de ser despedido pode ir mais longe do que uma greve normal permitiria, socorrendo-se das tecnologias para aligeirar as regras, reduzir os custos e ampliar os efeitos da paralisação. Para quem trabalha à jorna, sem qualquer defesa, nem a greve comum é uma possibilidade. São dois mundos que se tocam cada vez menos.
Quando António Costa usou a expressão “greve selvagem” para falar da paralisação cirúrgica e remunerada de uma parte dos enfermeiros, socorria-se de um termo histórico para greves não enquadradas por estruturas sindicais. Tecnicamente não tem razão, porque houve dois pequenos sindicatos a dar cobertura à greve. Politicamente sim, porque não são eles que tratam do crowdfunding, é um movimento supostamente inorgânico, e não são eles a cabeça política da luta, é a bastonária. Curiosamente, estas greves “selvagens” só são possíveis onde o mercado de trabalho não é uma selva.
Só repolitizando o sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos por baixo
Recuso qualquer retórica política que trate os funcionários públicos como privilegiados para que eles desistam de lutar por mais direitos e salários. Mas é evidente que se está a aprofundar um fosso entre as realidades laborais do privado e do público. Porque a desregulação do mercado de trabalho não atinge todos por igual.
Com as condições de trabalho a regressarem ao século XIX, seria lógico que o sindicalismo também regressasse ao estilo dos movimentos inorgânicos que existiram na sua origem. Mas seria um enorme erro. Os trabalhadores mais desprotegidos precisam, mais do que nunca, do sindicalismo orgânico. Só os mais protegidos se podem dar ao luxo de o dispensar, como se vê com esta greve.
O que é preciso é regressar ao sindicalismo político (não confundir com partidário), que viva da solidariedade entre todos trabalhadores, sejam do privado ou do público, médicos, enfermeiros ou distribuidores de pizas. Um sindicalismo de classe e não de corporação. Um sindicalismo que não ignora os deveres sociais dos que trabalham em serviços públicos fundamentais para quem tem menos recursos. Só repolitizando o sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos por baixo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019


How Much of Venezuela’s Crisis Is Really Maduro’s Fault?

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There are several factors for Venezuela’s economic crisis, but you wouldn’t know it by listening to U.S. leaders or following corporate media, writes Steve Ellner.
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The recognition by U.S. House Speaker Nancy Pelosi and former Vice President Joe Biden of Juan Guaidó as Venezuelan president is the latest demonstration of the consensus in Washington over the nefariousness of the Nicolás Maduro government. Not since Fidel Castro’s early years in power has a Latin American head of state been so consistently demonized. But the 1960s was the peak of the Cold War polarization that placed Cuba plainly in the enemy camp, and unlike Venezuela today, that nation had a one-party system.
The scope of that consensus was evident by the recent faceoff between two figures as far apart as President Donald Trump and Rep. Alexandria Ocasio-Cortez. In his State of the Union address, Trump attributed Venezuela’s economic crisis to the failed system of socialism. Ocasio-Cortez responded by arguing that the Venezuelan case is “an issue of authoritarian regime versus democracy.”
Taken together, the comments by Trump and Ocasio-Cortez complement one another. According to the narrative that dominates Washington, Venezuela is a disaster from both economic and political viewpoints. The exclusive blame for the sorry state of the economy and for the country’s allegedly authoritarian rule lays with Maduro and his cohorts.
Not surprisingly, the mainstream media have refrained from questioning these assumptions. Most of their reporting puts the accent mark on state incompetence and corruption, while skirting the detrimental effects of the economic sanctions implemented by the Trump administration.
In addition, many on the left point to the economic sanctions as responsible, at least in part, for the nation’s pressing economic difficulties, but few critically examine the mainstream’s characterization of the state of Venezuelan democracy. Some oppose the sanctions but join the opposition in bashing the Maduro government.
A recent article by Gabriel Hetland, for instance, posted by Jacobin and NACLA: Report on the Americas claims that Maduro “holds onto power through authoritarian means.” The author then turns to the nation’s economic difficulties by arguing that “the primary driver is the government’s mismanagement of its oil revenue” and corruption.
During my participation in a two-month Venezuelan solidarity tour late last year in the U.S. and Canada, I often heard the statement that knowing the specifics about Venezuela’s economic and political problems is not essential because the bottom line is the illegality of Trump’s sanctions and threats of military intervention. But does international law end the discussion?
If it could be proven that Maduro is a dictator and a totally incompetent ruler, would people enthusiastically rally behind his government in opposition to foreign intervention? I don’t think so. Undoubtedly, it is necessary to take a close look at both political and economic fronts because the effectiveness of solidarity efforts hinges on the specifics. The dominant narrative about Maduro and its assumptions cannot be taken at face value, even while there are elements of truth in it.
How Far Back Do the Economic Problems Go?
The Venezuelan opposition frequently argues that neither the sanctions nor depressed international oil prices are to blame for the nation’s economic difficulties, only the mismanagement of the economy. At best, declining oil prices contributed to the problems but were not a root cause. Some opposition analysts deny or minimize the importance of oil prices as a factor by pointing out that the economies of other OPEC nations are as dependent on oil exports as that of Venezuela but have not plummeted to the same levels.
The opposition’s central argument here is that Venezuela’s dire economic problems predate Trump’s implementation of sanctions and even predate the sharp decline in international oil prices beginning mid-2014. That is, government follies with disastrous effects came first, followed by the decline in oil prices and then the sanctions. Two-time presidential candidate for the opposition Henrique Capriles claimed that the crisis began prior to the fall of oil prices but for a long time was “ignored, repressed and covered up” by the government.
 Petare, Caracas, 2014. (The Photographer via Wikimedia)
Petare, Caracas, 2014. (The Photographer via Wikimedia)
There are two fallacies in this line of thinking. In the first place, the so-called economic war against Venezuela, which eventually included the Trump-imposed sanctions, preceded everything else. Washington almost from the beginning of Hugo Chávez’s presidency in 1999 did not stand by idly while he defied the neoliberal Washington consensus as well as U.S. hegemony. Washington’s hostility seriously harmed the economy in multiple ways.
For instance, the George W. Bush administration banned the sale of spare parts for the Venezuelan Air Force’s costly F-16 fighter jets in 2006, forcing the country to turn to Russia for the purchase of 24 Sukhoi SU-30 fighter planes. Furthermore, the international sanctions did not begin with Trump, but rather Obama in 2015 which were justified by his executive order calling Venezuela a threat to U.S. national security. That order was followed by an avalanche of pull-outs from Venezuela by multinationals including Ford, Kimberly Clark, General Motors, Kellogg’s and nearly all the international airlines.
In the second place, oil prices under Maduro have not only been low since 2014 but nosedived, just the opposite of what happened under Chávez. This is particularly problematic because high prices create expectations and commitments that then get transformed into frustration and anger when they precipitously drop. Prices are currently slightly over half of what they were before the decline, in spite of their modest recovery since 2017.
Three factors explain Venezuela’s economic woes, not one: low oil prices, the “economic war” against Venezuela, and mistaken policies. Prominent in the latter category is Maduro’s lethargic response to the problem of the widening disparity between official prices set by the government on certain items in short supply and their prices on the black market. The government has encountered major problems in distributing basic commodities forcing Venezuelans to buy those same goods on the higher-priced black market. The system is conducive to corruption and contraband as many of the products that are supposed to be retailed at reduced prices end up being sold on the black market or sent off to neighboring Colombia.
The Dictatorship Label Repeated a Thousand Times
The media are in desperate need of good fact-checkers in their reporting on Venezuela. Statements about Venezuelan democracy range from blatantly misleading to accurate with most lying between the two extremes. An example of the former is the Guardian’s claim that the Venezuelan government “controls most TV and radio stations which transmit a constant stream of pro-Maduro propaganda.” In fact, of those who tune into Venezuelan TV channels, 80 percent watch the three major private channels (Venevisión, Televén, and Globovisión) which cannot be seriously accused of being pro-government.
At the other extreme is Hetland’s assertion in his Jacobin-NACLA piece that the decision to strip Henrique Capriles of his right to run for office as a result of corruption charges was politically motivated. The statement is accurate. Actually, the move was worse than what Hetland discusses. For some time before that, Capriles, whose political positions have vacillated considerably, favored a less intransigent stance toward the government than those on the radical right, which has largely dominated the opposition of late. The move, in effect, played into the hands of the radicals and undermined efforts to bring about a much-needed national dialogue.
Those who call Maduro a dictator make two basic assertions. In the first place, the government is alleged to have brutally repressed the four-month long peaceful demonstrations designed to bring about regime change carried out in 2014 and then 2017. In fact, the protests were hardly peaceful. Six National Guardsmen and two policemen were killed in 2014 and protestors fired into an air force base in Caracas and attacked a number of police stations in Táchira in 2017. There are different versions of the circumstances surrounding the numerous fatalities in 2014 and 2017, thus requiring an impartial analysis, which the media has hardly attempted to present. Police repression is reprehensible – and repression there was on both occasions – regardless of circumstances, but the context has to be brought into the picture.
Smoke and fires, Caracas, 2014. (Prensa Presidencial, Govt. of Venezuela via Wikimedia)
Smoke and fires, Caracas, 2014. (Prensa Presidencial, Govt. of Venezuela via Wikimedia)
In the second place, the opposition denies that Maduro’s re-election in May of last year was legitimate because the election was called for by the National Constituent Assembly (ANC), whose existence allegedly has no legal basis. One of the nation’s foremost constitutional lawyers, Hermann Escarrá, has defended the ANC’s legality, while others formulate plausible arguments to the contrary. Again, the mainstream media has failed to present both sides or to objectively analyze the issue. Nearly all the opposition parties that refused to participate in the presidential elections in 2018, however, did participate in the gubernatorial elections of the preceding year that were convened by the same ANC. The justification for Juan Guaidó’s self-proclamation as Venezuelan president on Jan. 23 was predicated on the illegitimacy of the ANC.
Violation of democratic norms and cases of police repression do not in themselves demonstrate that a government is authoritarian or dictatorial. If they did, the United States would hardly be considered democratic. The real defining issue is whether electoral fraud takes place in which votes are not correctly counted. That accusation has been largely absent in the controversy over recent elections, even among leaders of the radical opposition.
The mainstream media and Washington politicians freely call Maduro an “autocrat” a “dictator” and “authoritarian.” More than anything that is said about Venezuela’s economic difficulties, the use of these terms has had a profound effect on policy making. A nation’s economic problems should not justify intervention of any sort. The real issue of contention, therefore, is the state of Venezuelan democracy as depicted by the dominant narrative. Amazingly enough, there is no major actor in mainstream politics and the mainstream media willing to challenge that narrative with all its questionable claims regarding the Maduro government.
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Note to readers: please click the share buttons below. Forward this article to your email lists. Crosspost on your blog site, internet forums. etc.
Steve Ellner is a retired professor from Venezuela’s University of the East and is currently associate managing editor of “Latin American Perspectives.” Among his over a dozen books on Latin America is his edited “The Pink Tide Experiences: Breakthroughs and Shortcomings in Twenty-First Century Latin America” (Rowman & Littlefield, 2019).
Featured image is from Cancillería del Ecuador via Flickr

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

OPINIÃO

O maior erro que este governo comete no confronto radical com os professores que lutam pelos seus direitos a uma carreira e à reposição de muitos anos de serviço, não é tanto o dinheiro que recusa gastar, mas a recusa de um reconhecimento social. A luta dos docentes é também uma luta pelo seu reconhecimento pelas instituições e pelas outras classes e grupos sociais. O reconhecimento tem de ser recíproco: para me auto-reconhecer necessito que o Outro me reconheça enquanto sujeito com atributos e direitos.
O ministro Centeno reduz tudo a dinheiro. Contabilista que é, executor das políticas neoliberais de Bruxelas, não admira que assim seja. O que admira é que Costa, filho de um grande intelectual, ele próprio dado à cultura, não tenha percebido o que está em jogo. Ou está prisioneiro?
Ver-se-á o resultado nas eleições legislativas de Outubro.

Profundo diálogo de investigadores! Por mim, subscrevo mais a perspectiva de D.H. nesta resposta, mas não no seu livro, no qual, e isso é já conhecido, D.H. minoriza as lutas de classe, fascinado que esteve (?) pelas lutas sociais pós-modernas...Não sei o que terá opinado sobre as lutas dos «coletes amarelos». E o que poderia dizer sobre as lutas sociais em Portugal recentemente?

O erro de David Harvey na compreensão da lei do valor em Marx

Por Michael Roberts, via The Next Recession, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Recentemente, o Professor David Harvey (DH) enviou um e-mail para várias pessoas, inclusive para mim, com um breve artigo para discussão em anexo. O artigo apresenta a leitura de DH de que a teoria do valor de Marx em economias capitalistas havia sido gravemente mal interpretada.

No caso de você não saber (o que seria difícil de acreditar), o Professor Harvey é provavelmente o mais eminente estudioso de Marx vivo hoje, autor de livros, artigos e vídeos educacionais sobre teoria econômica marxista. O breve artigo que circulou expressava sucintamente sua leitura da teoria do valor de Marx, que ele recentemente apresentou mais extensivamente em seu último livro, “A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI“. [1]
No artigo, intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor do trabalho“, DH argumenta que Marx sequer tinha uma “teoria do valor do trabalho”. Sua teoria do valor era distinta daquela do economista clássico David Ricardo. Invés disso, segundo DH, Marx teria argumentado que o valor era um reflexo do trabalho corporificado em uma mercadoria que só seria criado/revelado em trocas no mercado. Como afirma DH: “se não há mercado, não há valor”. Se isso estiver correto, então seria durante a realização do valor em sua expressão em dinheiro que o valor emergiria, não no processo de produção em si.
DH então argumenta que se salários forem forçados para baixo ou até ao mínimo, então não haverá mercado ou mercadorias e, portanto, nenhum valor – e essa é a “verdadeira raiz das crises capitalistas”. Por conseguinte, uma política para evitar crises seria “aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo”. Essa seria a consequência de uma leitura correta da teoria do valor em Marx, segundo DH.
DH destaca que essa interpretação da teoria do valor “vai muito além do que Ricardo tinha em mente e é igualmente muito distante da concepção de valor geralmente atribuída a Marx.” Certamente. Mas estaria DH certo em sua interpretação da teoria do valor em Marx e, se ele estiver, teria essa interpretação alguma validade empírica? Eu responderia ambas essas questões com: ‘no’, ‘non’, ‘nein’, para usar as três línguas melhor conhecidas por Marx.
DH inicia dizendo: “acredita-se amplamente que Marx adaptou a teoria do valor do trabalho a partir de Ricardo como conceito fundador para seu estudo da acumulação capitalista” e “como a teoria do valor do trabalho foi amplamente desacreditada, frequentemente constata-se, autoritariamente, que as teorias de Marx são imprestáveis.” Não fica claro a quem DH está se referindo aqui. Claramente economistas burgueses mainstream consideram a teoria do valor de Marx inválida. Os marginalistas neoclássicos há muito rejeitaram o conceito de valor-trabalho, taxando-o de “metafísico”. Economistas neo-ricardianos, pós-sraffianos e pós-keynesianos, particularmente, estão fortemente inclinados a rejeitar qualquer noção de “valor”, classificando-a como mistificação ideológica.
Mas a maioria dos economistas marxistas estão cientes da distinção entre a teoria do valor em Marx e em Ricardo. E a diferença não é o que DH diz ser, que Ricardo tinha uma “teoria do valor do trabalho” e Marx não. A diferença é que Ricardo tinha uma teoria de valor (de uso) baseada em “trabalho concreto” (quantidade física de trabalho) medida em tempo de trabalho. A lei do valor em Marx era baseada em “trabalho abstrato” (valor medido em tempo de trabalho quando “socialmente” testado no mercado).
Sob o capitalismo, a força de trabalho humana é em si uma mercadoria a ser vendida no mercado. De fato, essa é uma característica chave do modo de produção capitalista, em que a maioria não dispõe de meios de produção e, portanto, deve vender sua força de trabalho para os donos dos meios de produção. Então, assim como com outras mercadorias, trabalho tem uma propriedade dupla. Por um lado, é trabalho útil, isto é, aplicação de trabalho humano em uma forma concreta e para um propósito específico, com essa propriedade criando valores de uso. Por outro lado, é trabalho abstrato, isto é, aplicação de “força de trabalho” humana sem características específicas que cria o valor da mercadoria na qual ele é representado. A partir disso Marx fez a distinção entre trabalho e força de trabalho, uma distinção que é absolutamente crucial para a compreensão da fonte do lucro.
Esse foi o grande avanço da teoria do valor de Marx. O tempo de trabalho corporificado nas mercadorias normalmente compradas pelo trabalhador para a sua reprodução e a de sua família em um dia é menos do que o tempo de trabalho que o trabalhador de fato oferece para o dono do capital durante o mesmo período. O resultado é que para qualquer período de tempo dado, o trabalhador produz mais valor do que o salário correspondente que é pago pelo dono do capital para o usufruto da força de trabalho. A essa diferença Marx dá os nomes de “trabalho não pago” e “mais-trabalho” – ou mais-valia. A teoria do valor do trabalho abstrato de Marx expõe a natureza exploradora do modo de produção capitalista, algo que nem a teoria do valor de Adam Smith nem a de Ricardo fazem.
DH menciona apenas uma vez (e de passagem) essa descoberta vital de Marx (o trabalho abstrato) que distingue a lei de Marx da teoria do valor do trabalho clássica. E isso ocorre porque DH deseja impor sua interpretação da teoria de Marx como uma em que valor é criado/realizado apenas na troca, e não no processo de produção pela força de trabalho. DH diz que “o valor é inicialmente tomado como um reflexo do trabalho social (abstrato) cristalizado nas mercadorias.” Mas “como uma norma regulatória no mercado, o valor pode existir, como mostra Marx, apenas quando e onde a troca de mercadorias se tornou um ‘ato social normal’.” Então, sem dinheiro, não haveria valor.
Sim, mas o valor de uma mercadoria ainda é o trabalho contido nela e expandido durante o processo de produção antes de ser levado ao mercado. O valor é a aplicação de trabalho humano físico e mental, que é então extraído pelo processo social de produção e levado ao mercado. Valor não é uma criação do dinheiro – pelo contrário. Dinheiro é a representação ou valor de troca do trabalho aplicado, e não o oposto. Acredito que Marx seja nítido nesse ponto crucial. Ele diz n’O Capital Volume Um: “O valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado dessa última.” [2] [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
Murray Smith, na edição nova e vindoura de seu livro, “Invisible Leviathan” [3], oferece uma explicação concisa da diferença entre a lei do valor de Marx e a interpretação de DH. Marx disse que: “O dinheiro como medida do valor é a forma necessária em que aparece a medida do valor que é imanente às mercadorias, o tempo de trabalho.” Smith comenta que isso “é certamente inconsistente com a ideia de que o valor pode ser criado no ato da troca. (…) É precisamente porque a troca efetua um processo de ‘equalização de produtos do trabalho no mercado’ (isto é, envolve uma abstração real) que a produção orientada à troca deve levar em conta o fato de que ‘trabalho fisiológico’ cria valor de troca e forma o valor de uso – isto é, se constitui como concreto e abstrato simultaneamente. Tentar argumentar que valor é criado ‘não na produção, mas na articulação de produção e circulação’ é uma noção repleta de pensamento circular e que requer a mais robusta ginástica mental para que entretenha(…). O problema com essa abordagem é que se for aceito que o trabalho abstrato associado não tem existência substancial apartado da forma de valor, o dinheiro, então os valores das mercadorias parecem ser separados totalmente de qualquer determinação pelas condições de sua produção, e o caminho estaria pavimentado para uma efetiva identificação de valor e preço.”
Em vez disso, a lei do valor de Marx se baseia na visão de que o trabalho envolvido na produção de mercadorias produz o valor, enquanto a troca o realiza na forma-dinheiro. É apenas por causa disso que Marx é capaz de distinguir entre quantidades de valor e mais-valia criadas na produção de mercadorias, e as quantidades geralmente diferentes realizadas através da troca.
Ao contrário da do que pensam os economistas mainstream e neo-ricardianos, não se trata de “mistificação”. O valor é objetivo e real e não apenas expresso em dinheiro. A lei do valor de Marx, na qual o trabalho abstrato (medido em tempo de trabalho) explica o valor de troca e os preços, pode ser validada empiricamente. [4]
Há razão por trás da interpretação de DH. Se valor for criado apenas no momento da troca por dinheiro e “o dinheiro reina”, então será a demanda (efetiva) que decidirá se o capitalismo tranquilamente acumulará sem crises recorrentes. Para mostrar isso, DH descreve com algum detalhe o impacto da acumulação capitalista sobre as condições e padrões de vida enquanto os capitalistas empenham-se em aumentar a mais-valia relativa através da introdução de maquinaria. Ele usa alguns exemplos gráficos proporcionados por Marx no Capítulo 23 [25 no original] do Volume Um. DH enfatiza que a acumulação capitalista pretende minimizar o valor da força de trabalho ao ponto da pauperização.
DH conclui que “Se esse é um resultado típico da operação da lei capitalista da acumulação de valor, então há uma profunda contradição entre as condições progressivamente deterioradas da reprodução social e a necessidade do capital de expandir o mercado. Como Marx nota no Volume 2 d’O Capital, a verdadeira raiz das crises capitalistas está na supressão de salários e a redução da massa da população à condição de pobres despossuídos.” Então a “verdadeira raiz das crises” encontra-se na “supressão dos salários” e na “redução da massa da população à condição de pobres despossuídos”. Essa é a uma teoria das crises de viés subconsumista.
Há muito a ser pontuado aqui. Primeiro, o Capítulo 23 [novamente, 25 no original], intitulado A lei geral da acumulação capitalista, não se refere apenas à pauperização da classe trabalhadora. DH deixa de fora um aspecto muito importante da lei geral: a tendência ao aumento da composição orgânica do capital [5]. É isso que aumenta a mais-valia relativa, mas também é um fator chave na tendência de queda da taxa de lucro (desenvolvida no Volume 3), “a lei mais importante da economia política” [6], que estabelece a base da teoria das crises de Marx. DH ignora esse aspecto.
Mas DH se aprofunda em sua interpretação subconsumista. “Valor depende da existência de quereres, necessidades e desejos, apoiados pela capacidade de uma população de consumidores de pagar(…) Isso também significa que a diminuição de salários a quase nada será contraproducente na realização de valor e mais-valia no mercado. Aumentar salários para garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital e colonizar a vida cotidiana como um campo para o consumismo são cruciais para a teoria do valor.” A partir disso DH argumenta que o capitalismo entra em crise porque os salários são suprimidos; então aumentar salários, garantindo “consumo racional”, proporcionaria a “capacidade da pagar” e daria fim às crises.
Essa interpretação subconsumista da teoria de Marx foi firmemente rejeitada – pelo próprio Marx – na famosa nota no mesmo Volume 2 ao qual DH se refere (sublinhados meus).
É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da carência de consumidores solventes. (…) Que as mercadorias sejam invendáveis significa apenas que não foram encontrados compradores solventes para elas e, portanto, consumidores (já que, em última instância, as mercadorias são compradas para o consumo produtivo ou individual). Mas caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma fundamentação profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria remediado tão logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por conseguinte, seu salário aumentasse nessa proporção, bastará observar que as crises são sempre preparadas num período em que o salário sobe de maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo. Já do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e “simples” (!), esses períodos teriam, ao contrário, de eliminar as crises.” [7] [pág. 514 O Capital Livro II, Editora Boitempo, 1ª edição]
A meu ver, Marx rejeitou tanto a lei do valor na interpretação de DH como também a conclusão de que as crises são causadas pela incapacidade de pagar pelos “quereres, necessidades e desejos” das pessoas. Mas Marx poderia estar errado e DH certo sobre a causa das crises. No entanto, as evidências empíricas não apoiam DH.
Deixe-me citar apenas três fatos. O primeiro é que o consumo dos trabalhadores não é o maior setor de “demanda” numa economia capitalista; é o consumo de capital produtivo. Produto interno bruto é uma medida da demanda anual por “quereres, necessidades e desejos”. Nos EUA, o consumo parece constituir 70% do PIB. No entanto, se você olhar para o “produto bruto” que inclui todo os produtos intermediários com valor agregado não contabilizados no PIB, então o consumo aparece como apenas 36% do produto total; o restante constitui demanda do capital por partes, materiais, bens intermediários e serviços. É o investimento de capitalistas que é o fator determinante e motor da demanda, não o consumo de trabalhadores.
Isso fica demonstrado no segundo fato. Se analisarmos as mudanças em investimento e consumo que precedem cada recessão ou baixa na economia norte-americana do pós-guerra, veremos que a demanda de consumo teve pequeno ou nenhum papel na causação de uma queda. Nas seis recessões desde 1953, o consumo pessoal caiu menos do que o PIB ou o investimento em cada ocasião e absolutamente não caiu em 1980-2. O investimento caiu de 8 a 30% em todas as ocasiões.
Mudanças de porcentagem em consumo pessoal real (PC), investimento e produto interno bruto (GDP).
grafico
O terceiro fato diz respeito diretamente a salários e à alegação de DH de que aumentá-los ajudaria o capital. Carchedi estabelece que das 12 crises após Segunda Guerra, 11 foram precedidas por aumento dos salários e apenas uma por queda dos salários (a crise de 1991) [8]. Isso confirma a visão de Marx na nota do Volume 2 acima.
Eu concluo a partir do breve artigo de DH que ele pretende estabelecer uma tese de que a luta de classes não é mais centrada ou decidida entre trabalho e capital no ponto de produção da mais-valia. Em vez disso, no capitalismo “moderno”, ela se encontra em outros pontos desse “circuito do capital” que ele apresenta em seu último livro e em várias apresentações globalmente. Para DH, é no ponto da realização (isto é, aluguéis, hipotecas, superfaturamento por farmacêuticas etc.) ou na distribuição (por impostos, serviços públicos etc.) que os “pontos quentes” da luta de classes estão focados agora. A luta de classes na produção agora é menos importante (ou até inexistente).
A meu ver, para apoiar isso, DH apresenta uma série de confusões teóricas em seu artigo. Primeiro, Marx não teria uma teoria do valor do trabalho. Segundo, o valor só seria criado na troca (na realização). Terceiro, a taxa de lucro (ou mesmo o próprio lucro) seria irrelevante para as crises: o importante seria o decréscimo do valor da força de trabalho ao mínimo (ou até a zero!) não permitindo que os trabalhadores sejam capazes de alcançar seus “quereres, desejos etc.” Isso resulta numa teoria do subconsumo bruta – ainda mais bruta que a de Keynes.
DH deliberadamente ignora a diferença (e a dualidade) entre trabalho concreto e abstrato, e sua contrapartida, valor de uso e valor de troca. A natureza dual do valor numa mercadoria, como Marx descobriu, é reduzida por Harvey a uma incapacidade dos trabalhadores de comprar seus valores de uso. Valor de uso (quereres e desejos) é a chave, não o valor de troca no valor, para DH. A teoria das crises de Marx (baseada em mais-valia insuficiente) é substituída por valores de uso insuficientes para trabalhadores como consumidores. Sobreacumulação é substituída por subconsumo. A luta de classes deixa de ser sobre trabalhadores versus capitalistas para se tornar sobre consumidores versus capitalistas ou pagadores de impostos versus governos.
Não é a visão de Marx. Mais importante, a abordagem inteira é confusa para uma análise classista e estratégica para a luta da classe trabalhadora.

Os erros de compreensão de Michael Roberts
Por David Harvey, traduzido por Augusto Ribeiro Silva
Há, obviamente, alguns pontos sérios para discussão a respeito da teoria do valor de Marx e eu espero que o diálogo com Michael Roberts auxilie nessa questão. Antes de me ater a eles, eu preciso corrigir uma série de erros de leitura e interpretação sobre minha posição presentes na resposta de Roberts. Permitam-me ser claro: o valor sempre é criado no ato da produção. Mas é realizado no momento da troca no mercado. Eu, portanto, penso no valor em termos do que Marx chama de “a unidade contraditória da produção e da realização.” O valor não pode ser produzido através da troca no mercado. Marx é suficientemente claro a esse respeito.
A essência do valor é o trabalho abstrato ou, como eu prefiro dizer, “trabalho socialmente necessário”. Roberts está obviamente correto em dizer que a definição de Marx é inteiramente diferente do tempo de trabalho concreto postulado por Ricardo. No entanto, não importa se dissermos “trabalho abstrato” ou “socialmente necessário”, o ônus da questão cairá sempre em como a abstração seria feita e no que se entenderia por socialmente necessário. A resposta a tais questões deve se basear em processos materiais e não construída através de exercícios idealistas. Portanto, por qual processo materialista o valor será construído se não for “inerente” às mercadorias, mas historicamente criado.
A resposta é dada no ponto de partida de Marx n’O Capital, que é o ato material idealizado da troca de mercadorias. Se o capitalista leva a mercadoria ao mercado e não há querer, necessidade ou desejo por ela, então o trabalho cristalizado nela é socialmente desnecessário e, portanto, não tem valor (isso é o que Marx diz ao fim da primeira seção d’O Capital) [página 211 da edição da Boitempo, Livro I]. Isso não significa que o valor seja criado no mercado (o que Roberts erroneamente me acusa de dizer). Mas – e essa pode ser minha visão particular da questão – eu tomo o valor criado na produção como um valor meramente potencial até que ele seja realizado. Outra forma de dizê-lo seria afirmar que o valor é produzido, mas que será perdido se não houver para ele demanda no mercado. Nesse caso, precisaríamos construir uma teoria forte de desvalorização para dar conta do que ocorre no mercado. A desvalorização raramente aparece nas considerações de Roberts e não tem lugar em sua resposta. Dado meu interesse na relação entre valor e não-valor ou anti-valor, essa última formulação pode também funcionar para mim. Mas em ambos os casos eu acredito que seja inegável que o estado de quereres, necessidades e desejos apoiados por capacidade de pagamento tenha um papel importante na sustentação da circulação do capital. Isso não significa, como Roberts infere repetidas vezes, que esse seja o único fator relevante na formação da crise. Eu me esforcei para dizer diversas vezes que esse é apenas um momento importante na circulação do capital onde desvalorizações (eventualmente, mas nem sempre, da proporção de uma crise) podem ocorrer.
Mas Roberts adora por diversas vezes me relegar a essa categoria pejorativa de subconsumista sempre que eu menciono tais questões. Foi Marx, e não eu, quem disse que “a verdadeira raiz das crises” está no poder de compra diminuído das classes trabalhadoras e se eu cito Marx nesse momento é porque é um impecável antídoto para todos aqueles que incansavelmente recorrem à queda da taxa de lucro. Eu tenho argumentado que crises vêm em muitas formas e tamanhos. A queda da taxa de lucro ou o colapso da demanda consumidora são duas de muitas explicações (eu noto de passagem que Marx, em seus comentários sobre as crises de 1847 e 1857 – crises que assemelharam-se excepcionalmente à de 2007-8 – descreveu as crises como comerciais e financeiras sem qualquer menção à queda da taxa de lucro ou a demanda consumidora insuficiente).
Minha objeção a qualquer interpretação produtivista excludente (para fazer uma caracterização pejorativa correspondente!) é que elas isolam totalmente toda a história de criação de quereres, necessidades e desejos (sem mencionar a mecânica de garantia da capacidade de pagamento) na história da acumulação capitalista. Acredito que devamos prestar muito mais atenção a esse aspecto. Isso não significa que eu subestime, negue ou refute todo o trabalho que tem sido feito no processo de trabalho e a importância das lutas de classes que têm ocorrido e continuam a ocorrer na esfera produtiva. Mas essas lutas devem ser relacionadas às lutas em torno da realização, distribuição (por exemplo, extrações de renda, execuções de dívida), reprodução social, o manejo da relação metabólica com a natureza e os presentes gratuitos da cultura e da natureza. Esses todos têm tido grande importância em movimentos anticapitalistas recentes e eu insisto que os encaremos com seriedade ao lado do mais tradicional foco na esquerda marxista com a tendência de assumir a luta de classes no ponto da produção como o momento-chave da luta. É por isso que eu acredito que o diagrama que eu ofereço da circulação e a definição de capital como valor em movimento seja tão importante. É estranho ver tudo isso desprezado na citação de Murray Smith como “pensamento circular”!!
Essa perspectiva abre algumas linhas interessantes de questionamento e pontos de divergência. As considerações de Marx sobre lutas em torno da jornada de trabalho e das forças que movem mudanças tecnológicas e organizacionais em busca de mais-valia relativa todas dependem das “leis coercitivas da competição”. Esse termo aparece em vários pontos-chave no argumento de Marx ao longo d’O Capital. Onde essa força é mobilizada e mais distintamente notada? No mercado, é claro! Nós não podemos entender o que ocorre no âmbito da produção (ou reprodução social) sem a atuação de forças de mercado. São as leis coercitivas da competição no mercado que orientam o reinvestimento capitalista e o prolongamento da jornada de trabalho etc.
Mas isso nos remete a como Marx estabelece a abstração de valor – o que é, aliás, na visão de Marx, uma relação social, portanto “imaterial porém objetiva” e não “inerente” e “real” como a citação de Murray propõe (“Exatamente ao contrário da objetividade sensível e crua dos corpos-mercadorias, na objetividade de seu valor não está contido um único átomo de matéria natural.” diz Marx n’O Capital). [página 125 de O Capital Livro 1, editora Boitempo, 1ª edição revisada] O valor emerge não como produto do pensamento, mas como produto de um processo material histórico. O estudo de Marx de formas de valor equivalentes e relativas leva à generalização da troca que fundamenta o surgimento do valor como uma norma regulatória que opera no mercado, e é essa norma regulatória do valor que então retorna para dominar comportamentos não apenas no mercado, mas também no âmbito da produção e da reprodução social. Esse é um movimento muito dialético que Marx faz, mas é comumente encontrado no trabalho de Marx. Apenas dessa maneira, por exemplo, pode-se entender como se dá que os trabalhadores façam o capital que em seguida retorna para dominá-los e que todos nós possamos nos tornar prisioneiros de nossos próprios produtos (atenção acadêmicos!!).
Finalmente, permitam-me comentar sobre o exemplo empírico no qual Roberts reduz a demanda final de 70 para 30 porcento. Para ser claro, há uma questão complicada sobre como lidar com relações de valor através de cadeias de mercadorias (há um artigo interessante de Starosta sobre Cadeias de Mercadorias e a teoria do valor de Marx na revista Antipode de 2011). Mas imagine a situação em que minério de ferro seja minerado e a empresa mineradora produza valor e mais-valia, a serem realizados através da venda para uma companhia que produza aço, que por sua vez realize mais valor e mais mais-valia através duma venda para uma empresa automobilística, que produza ainda mais valor e mais-valia pela venda de automóveis para consumidores finais que queiram e necessitem de um automóvel e tenham dinheiro para comprá-lo. O valor do automóvel é todo o trabalho abstrato pretérito aplicado. Suponha que, por algum motivo, os consumidores finais não sejam capazes de pagar ou estejam saturados de automóveis. Então todo o valor acumulado é perdido (desvalorizado). Na prática, como Marx observou, a cadeia de pagamentos pode demorar para se estabelecer, mas quando ela o faz toda a produção de valor nessa cadeia desaparece.
Claro, todo outro tipo de cenários pode ser imaginado. Mas o ponto aqui é que ninguém exceto loucos e especuladores desejarão acumular aço na ausência de um mercado adequado. Então o que ocorre com o valor nessas situações torna-se problemático e as considerações de Robert fazem parecer que investimento na produção de meios de produção é independente da demanda final e pode ocorrer independentemente das condições finais do mercado. Claro, há certos tipos de investimento com todo tipo de defasagem temporal (capital fixo e infraestrutura), como a superprodução chinesa de cidades financiadas pelo endividamento, onde as coisas ficam muito complicadas (como eu destaquei no capítulo final de Loucura da Razão Econômica). Mas o exemplo empírico de Roberts não faz sentido para mim na elucidação do porquê da realização ou as políticas de realização serem irrelevantes ou no máximo colaterais à ação central do âmbito produtivo.
Tudo isso e nós ainda não nos debruçamos sobre as questões espinhosas do dinheiro e das políticas de distribuição ao lado da circulação de capital portador de juros em relação à teoria do valor. Podem bancos produzir valor? Eles claramente podem produzir representações de valor a passo largo… Seríamos nós colaterais também?

Notas:
2) [pág. 233 – O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revista]
3) Murray Smith, Invisible Leviathan, 2018
4) Cockshott e Cottrel dividiram a economia em um grande número de setores para mostrar que o valor monetário do produto bruto desses setores correlaciona-se fielmente com o trabalho empenhado na sua produção. Anwar Shaikh também fez algo similar. Ele comparou preços de mercado, valores de trabalho e preços padrão de produção calculados das tabelas de fluxo [input/output] dos Estados Unidos e constatou que em média valores de trabalho desviam de preços de mercado por apenas 9,2% e que preços de produção (calculados a taxas de lucro observadas) desviam de preços de mercado por apenas 8,2%. Lefteris Tsoulfidis e Dimitris Paitaridis investigaram a questão das variações de preço-valor usando a tabela de fluxo [input/output] do Canadá. Eles constataram que para a economia canadense os resultados são consistentes com a teoria do valor de Marx. E G. Carchedi, em um artigo recente, mostrou que a validade da lei do valor de Marx pode ser testada com dados oficiais dos Estados Unidos, os quais são preços deflacionados em dinheiro de valores de uso. Ele constatou que taxas de lucro de dinheiro e valor moviam-se na mesma direção (com uma tendência ao decréscimo) e mantinham-se muito próximas uma à outra.
5) “A acumulação de capital, que originalmente aparecia tão somente como sua ampliação quantitativa, realiza-se, como vimos, numa contínua alteração qualitativa de sua composição, num acréscimo constante de seu componente constante à custa de seu componente variável.” [pág. 704 O Capital Livro I, Editora Boitempo, 1ª edição revisada]
6) Grundrisse.
7) O Capital Volume 2, Capítulo 20
8) https://thenextrecession.files.wordpress.com/2017/09/carchedi-the-old-and-the-new.pdf

Boitempo libera curso completo ministrado por Ricardo Antunes!

Sociólogo conduz leitura comentada de sua mais recente obra "O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital", no canal da Boitempo no YouTube.


A TV Boitempo acaba de disponibilizar mais um webcurso completo! Em “O privilégio da servidão”, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes conduz uma leitura comentada de seu mais novo livro sobre o novo proletariado de serviços na era digital.
Ao todo são cinco aulas dedicadas a atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura dessa densa e explosiva obra sobre o mundo do trabalho hoje: desde a nova morfologia do trabalho no capitalismo contemporâneo, passando pela crise dos sindicatos e das formas de mobilização dos trabalhadores, pelo diagnóstico afiado do cenário político contemporâneo marcado por um violento processo de contrarrevoluções, até chegar nos desafios para uma renovada práxis política socialista emancipatória.
Ao final do curso, incluímos um vídeo bônus em que Antunes comenta o fenômeno em curso da fascistização da sociedade brasileira à luz do processo de precarização de trabalho que assola o Brasil e o mundo hoje. A série pode servir tanto de complemento quanto de convite à leitura da obra.

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Bons estudos!

1. Introdução: o privilégio da servidão

Neste vídeo, Ricardo Antunes introduz a perspectiva teórica da obra, contextualiza o projeto do livro e apresenta as principais questões e temas abordados.

2. O novo proletariado da era digital

Defendendo não apenas a vitalidade analítica do conceito de proletariado para compreender a realidade social de hoje, como a urgência política dessa perspectiva teórica, Ricardo Antunes mergulha na questão central da Parte I do livro. A aula descreve os contornos e as complexidades do proletariado em sua nova morfologia na chamada “era digital” em que estamos imersos.

3. Precarização, terceirização e crise nos sindicatos

Nesta terceira aula de seu webcurso na TV Boitempo, o sociólogo do trabalho retira uma das questões centrais da Parte II do livro e coloca-a sob o microscópio: de que forma os processos sociais e econômicos da precarização do trabalho e terceirização dos vínculos empregatícios afeta as capacidades e as formas de resistência dos trabalhadores? É este o cerna da crise no sindicalismo tradicional que Ricardo Antunes aborda neste vídeo.

4. Crise e contrarrevolução no Brasil hoje

Ricardo Antunes apresenta, nesta aula, seu diagnóstico da conjuntura política brasileira recente. Ele discute aquilo que ele denomina o fim de uma era de conciliações escancarada pela crise global e pelas rebeliões de junho de 2013 e a violenta onda de contrarrevolução preventiva que as seguiu. O conteúdo do vídeo diz respeito à Parte III do livro O privilégio da servidão.

5. Há luz no final do túnel? Socialismo no século XXI

Nesta quinta e última aula, Ricardo Antunes procura responder à difícil mas incontornável pergunta: “Há luz no final do túnel?”. No vídeo, ele discute a urgência e os desafios de reinventar o socialismo no século XXI. O vídeo corresponde ao conteúdo da Parte IV do livro O privilégio da servidão.

6. Bônus: A fascistização política e o mundo do trabalho  

Ricardo Antunes não titubeia em afirmar que a ascensão de um fascismo e a efetivação de uma ditadura militar são ameaças reais no Brasil de hoje. Neste vídeo, gravado durante a campanha eleitoral de 2018, ele analisa esse fenômeno da fascistização da sociedade à luz do processo de precarização de trabalho que assola o Brasil e o mundo hoje. E provoca: “A democracia burguesa tem a aparência da civilidade. Mas quando as coisas vão mal, ela abre as portas do inferno.”

O livro

O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, de Ricardo Antunes


“Cientista social marxista, Ricardo Antunes não esconde sua opção socialista. Esse é o horizonte revolucionário que dá a esta brilhante pesquisa sociológica toda sua potência crítica e subversiva.” – Michael Löwy
“Este livro é um importante marco para o entendimento da relação entre capital e trabalho. Ricardo Antunes combina duas qualidades raramente presentes na mesma pessoa: uma visão clara da dinâmica de reestruturação do capitalismo global e um discernimento profundo do que essa mudança significa para os trabalhadores.” – Ursula Huws.
Ricardo Antunes é um narrador lúcido e apaixonado do atual processo de transformação das condições de trabalho, existência e organização dos trabalhadores.” – Pietro Basso.

A propósito de Assembleias de Organização e outros Encontros este texto é de uma grande oportunidade

O que é agitação e o que é propaganda? Algumas questões na era das mídias digitais

Por Gabriel Landi Fazzio
“20. Nossa tarefa mais importante antes do levante revolucionário declarado é a propaganda e a agitação revolucionária. Esta atividade e sua organização é conduzida freqüentemente ainda da antiga maneira formalista. Em manifestações ocasionais, reuniões de massas e sem cuidado com o conteúdo revolucionário concreto dos discursos e panfletos.” Em “A Estrutura, os Métodos e a Ação dos Partidos Comunistas”, III Internacional, 1921.

Boa parte da militância revolucionária conhece o termo agitprop, popularizado pelos partidos comunistas da III Internacional em meio aos movimentos contra a exploração e a opressão. A agitação e a propaganda, reunidas por meio desse acrônimo, sempre tiveram um lugar de destaque em meio às tarefas da militância comunista. Como leninistas, acreditamos que a atividade fundamental de toda militância comunista “deve consistir em um trabalho de agitação política unificada; que ilumine todos os aspectos de vida e dirija-se às massas em geral”. Mas, afinal, o que é agitação, e o que é propaganda, e qual a diferença entre ambas as coisas?
Uma das melhores sínteses sobre a questão está na obra “Que Fazer?”, de Lenin. A citação pode ser um pouco longa, mas vale a pena transcrevê-la para, depois, retornarmos às várias questões que esse síntese permite levantar, em nossa época. Referindo-se à formulação de Plekhanov sobre o tema, e criticando as ideias de Martynov a respeito, Lenin repete:
“[…] as palavras de Plekhanov: ‘O propagandista inculca muitas ideias em uma única pessoa, ou em um pequeno número de pessoas; o agitador inculca apenas uma única ideia, ou um pequeno número de ideias, em troca, inculca-as em toda uma massa de pessoas’. […]
[Pensamos] (com Plekhanov e todos os dirigentes do movimento operário internacional) que um propagandista, ao tratar, por exemplo, do problema do desemprego, deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade da transformação dessa sociedade em sociedade socialista etc. Em uma palavra, deve fornecer “muitas ideias”, um número tão grande de ideias que, de imediato, todas essas ideias tomadas em conjunto apenas poderão ser assimiladas por um número (relativamente) restrito de pessoas.
Tratando da mesma questão, o agitador tomará o fato mais conhecido de seus ouvintes, e o mais palpitante, por exemplo uma família de desempregados morta de fome, a indigência crescente etc., e apoiando-se sobre esse fato conhecido de todos, fará todo o esforço para dar à massa “uma única ideia”: a [ideia] da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, a indignação da massa contra essa injustiça gritante, deixando ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição.
Por isso, o propagandista age principalmente por escrito, e o agitador de viva voz. Não se exige de um propagandista as mesmas qualidades de um agitador. Diremos que Kautsky e Lafargue, por exemplo, são propagandistas, enquanto Bebel e Guesde são agitadores.
Distinguir um terceiro domínio, ou uma terceira função da atividade prática, função que consistiria em “atrair as massas para certos atos concretos”, é o maior dos absurdos, pois o “apelo” sob forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto de propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de execução.
De fato, tomemos, por exemplo, a luta atual dos sociais-democratas alemães contra os direitos alfandegários sobre os cereais. Os teóricos redigem estudos especiais sobre a política alfandegária, onde “apelam”, digamos assim, para se lutar por tratados comerciais e pela liberdade do comércio; o propagandista faz o mesmo em uma revista, e o agitador nos discursos públicos. Os “atos concretos” da massa são, nesse caso, a assinatura de uma petição endereçada ao “Reichstag” contra a majoração dos direitos alfandegários sobre os cereais. O apelo a essa ação emana indiretamente dos teóricos, dos propagandistas e dos agitadores, e diretamente dos operários que passam as listas de petição nas fábricas e domicílios particulares.”
Existem, então, dois critérios que Lenin destacada como diferenças entre a agitação e a propaganda: um critério principal, referente à “densidade do conteúdo” e à amplitude do público; e um critério acessório, relacionado à forma da comunicação (escrita ou oral).
Esmiuçando o critério principal, é oportuno desfazer algumas confusões. A começar pelo termo “propaganda”, cujo significado na tradição da social-democracia alemã (de onde Lenin e os bolcheviques aprenderam o termo) é bastante distinto do uso corriqueiro do termo, que não se pode confundir com a noção comercial e burguesa de propaganda. Na verdade, nada poderia ser mais diferente.
O conceito comercial de propaganda está muito mais próximo daquilo que chamaríamos agitação: a publicidade comercial busca inculcar em um amplo público uma única ideia bastante simples, qual seja, a ideia da utilidade e da necessidade de se consumir tal ou qual mercadoria e marca.
Enquanto a “propaganda” comercial busca tão somente promover uma empresa (construindo a credibilidade de sua marca e a crença na qualidade de suas mercadorias); a propaganda comunista busca não apenas nossa autopromoção e a divulgação de nossos símbolos (identidade visual), mas a explicação aprofundada dos fenômenos contraditórios das relações sociais existentes.
A respeito de nossa propaganda, seria preciso acrescentar: é bastante arraigado na tradição socialista brasileira o hábito de chamar de “formação” aquilo que é, no mais das vezes, propaganda. Esse péssimo hábito chega ao extremo de produzir consequências organizativas, quando separamos estes trabalhos como coisas distintas (e, com isso, no mais das vezes, tornamos nossa agitprop em pura agitação, quando não em propaganda de má qualidade).
Ocorre que, na verdade, cursos abertos, rodas de discussão, grupos de estudo públicos, palestras, etc, não são nada mais que formas não-escritas de propaganda! Quando consideramos essa atividade como “formação”, em um domínio distinto em relação à propaganda teórica, nosso trabalho nesse terreno resulta desconexo ou até mesmo “professoral”. Não raras vezes, essas “formações” dão aos ouvintes interessantes conhecimentos teóricos, mas que não lhes conduzem muito seguramente à conclusão de concepções política revolucionárias. Como toda propaganda, essas “formações” também não podem se perder em escolasticismo, e devem estabelecer com nitidez a relação existente entre a teoria propagada e a estratégia, a tática, o programa, em suma, as concepções teóricas aplicadas à prática que são produto das luta ideológica comum do intelectual coletivo partidário.
Uma outra coisa distinta é a formação de quadros propriamente dita (a preparação de propagandistas, agitadores, organizadores, etc). Aqui, com efeito, o aprofundamento polêmico pode ultrapassar a finalidade de propaganda revolucionária – pois, presume-se, trata-se de aprofundar a formação de militantes que já se dedicam efetivamente ao trabalho político sob uma perspectiva revolucionária. No entanto, também isso é prejudicado quando se faz uma má propaganda a título de “formação” e, então, dá-se por cumprido o trabalho formativo dos quadros. A verdadeira formação fica, assim, relegada a um segundo plano – ou, por vezes, realizada puramente em sua dimensão técnica (basta ver como as oficinas de produção audiovisual ou de edição, por exemplo, quase sempre ocorrem desacompanhadas da formação política dos quadros técnicos da comunicação). Entre essas dimensões técnicas, a preparação na arte da oratória costuma ser bastante negligenciada, como se fosse uma mera questão de aptidão nata, dispensando qualquer aprimoramento e desenvolvimento. [1]
Outro engano corrente é aquele mesmo que Lenin critica na definição dada por Martynov para a agitação. Muitos camaradas consideram que a agitação significaria o plano da comunicação voltado ao “chamado à ação”. Mas, como Lenin aponta, “o ‘apelo’ sob forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto de propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de execução.” Tanto a agitação quanto a propaganda (se não queremos ser meros falastrões professorais, mas propagandistas revolucionários) devem infundir o espírito de combate e de ação em nossos espectadores.
Tomar esse critério para definir nossa agitação significaria, por um lado, negligenciar o aspecto do “chamado à ação” em nossa propaganda; tanto quanto o aspecto de “luta ideológica” de nossa agitação. É digno de nota, a esse respeito, o exemplo de agitação oferecido por Lenin, que trata não de alguma injustiça ou arbitrariedade pontual, mas justamente de um dos traços da contradição fundamental da sociabilidade capitalista: a contradição entre a crescente socialização da produção e a crescente concentração da propriedade, que se expressa, entre outras coisas, no simultâneo crescimento da riqueza e da miséria social. O agitador, tanto quanto o propagandista, faz “luta de classes na filosofia” e, ainda mais importante, faz luta ideológica de massas, e não apenas nos meios mais intelectualizados.
Feitos esses apontamentos em torno do critério principal, resta analisar o critério acessório (“o propagandista age principalmente por escrito, e o agitador de viva voz“). Lenin pronuncia com nitidez o caráter secundário deste critério (por isso fala “principalmente”, e não de modo absoluto). Mesmo à sua época, já circulavam impressos de caráter eminentemente agitativo (caráter que também se pode atribuir às charges impressas, por exemplo, desde os cartazes e panfletos da época da Revolução Francesa). Do mesmo modo, os propagandistas já atuavam também por meios orais, especialmente por meio de palestras itinerantes (os “propagandistas volantes”, que Lenin menciona em “Carta a um camarada”).
No entanto, entre a época de Lenin e a nossa há um século de grandes revolucionamentos nos meios técnicos de produção e difusão da comunicação. Tais modificações nos meios de comunicação contribuíram para tornar esse critério acessório de diferenciação cada vez menos apropriado.
Isso ocorre, primeiramente, porque surgiram novos meios de formalização, de registro da comunicação. Uma palestra de um propagandista, tanto quanto o discurso de um agitador, podem ser gravados e reproduzidos infinitas vezes, necessitando ser proferidos uma única vez. Tornou-se possível editar essas mesmas comunicações orais de modo a complementá-las com imagens, que demonstrem graficamente aquilo que o discurso enuncia. A “agitação oral” hoje também pode ser feita por meio de áudios em grupos de mensagens, etc. Ao mesmo tempo, se as imagens desempenhavam um papel secundário nas publicações impressas, adquirem, em especial nas mídias digitais, o papel de principal veículo de conteúdos textuais (sejam os “memes” ou mesmo as mais simples frases diagramadas em meio às fotos).
Em segundo lugar, em especial após o advento da Internet, modificaram-se significativamente os aspectos de nosso trabalho de “distribuição de literatura”. Há um século, seria praticamente impossível obter contato com a literatura comunista senão através do trabalho partidário de distribuição de literatura. Se o próprio mercado editorial já passou a suprir parte desta demanda, a Internet modificou definitivamente a dificuldade material de acesso à literatura revolucionária – vejamos, por exemplo, o brilhante trabalho de portais como o http://www.marxists.org.
Mas qual o interesse em insistir nessa questão? Ora, na Era da Prensa, a época em que os meios técnicos permitiam sustentar aquele critério acessório de diferenciação com alguma segurança; esta distinção era um ponto de apoio para a divisão especializada do trabalho nas organizações revolucionárias. Enquanto os agitadores se qualificavam como oradores, os propagandistas se preparavam para desempenhar o papel de publicistas e redatores. Em ambos os casos, esses e essas camaradas eram coletivamente destacadas e coordenadas nestas tarefas.
E hoje? Cada vez mais as fronteiras entre a agitação e a propaganda se confundem. Virtualmente, como todo cidadão se tornou um “jornalista” por meio de seu perfil online, também todo militante se tornou um publicista digital. Com o acesso facilitado aos meios de publicação, em seus perfis pessoais, muitos camaradas buscam atuar duplamente como agitadores e propagandistas, sem preparo especializado – e mesmo a criação de diversas “páginas” virtuais é produto de ações isoladas, sem conexão orgânica.
Ainda mais: como as mídias digitais são uma via interativa de mão dupla, é muito comum que a agitação e a propaganda ocorram desordenadamente, passando de uma à outra sem muito cuidado e reflexão. Um exemplo: se algum camarada publica uma peça de agitação e é interpelado, nos comentários da postagem, sobre alguma questão mais complexa, rapidamente buscará respondê-la, mesmo sem grande domínio do tema. Com isso, se substitui precariamente a prévia preparação do propagandista pela pesquisa imediata, em busca de fontes que respaldem uma reposta previamente concebida.
Dialogamos com dezenas de interlocutores em um mesmo debate, negligenciando seus níveis desiguais de consciência e suas diferentes posições materiais e políticas. Respondemos raivosamente tanto ao pequeno burguês reacionário que sequer mereceria atenção quanto ao trabalhador entorpecido pelo bombardeio midiático de mentiras. Esquece-se que, naturalmente, quanto mais profunda a explicação e mais complexo o tema, menos provável que seja absorvida por “muitas pessoas”, ainda mais em um ambiente desvinculado de qualquer experiência efetiva de organização e luta de massas. Contudo, não importa o quão amplamente as novas mídias permitam que nossa comunicação se espalhe: a distinção entre níveis de compreensão nas várias camadas da classe trabalhadora segue existindo, e não de elimina senão pela combinação consistente entre participação efetiva nas lutas de classes e a influência, paciente e prolongada, de toda a propaganda socialista! Ignorando essa verdade, muitos camaradas se afobam e buscam coagir os interlocutores a aceitar as verdades do marxismo, a golpes de ironia, ofensas e desdém. [2] O dogmatismo nunca esteve tão em alta, talvez, quanto na época em que basta linkar uma citação direto da fonte para atestar a veracidade de uma posição.
Talvez seja ainda mais importante do que nunca insistir, portanto, na questão da paciência na propaganda, já manifestada por Lenin: “Para não deixar nenhuma sombra de dúvida neste tocante, eu enfatizei por duas vezes nas Teses [de Abril] a necessidade de um trabalho “explicativo” paciente e persistente, adaptado às necessidades práticas das massas”. Quando os bolcheviques eram acusados caluniosamente de serem “agentes dos interesses alemães”, Lenin insistia que, “desmentindo a farsa e a difamação, devemos, com mais calma que nunca” pensar a fundo nas questões, sem nos bastar nas respostas prontas impacientes.
Essa afobação desordenada não apenas enfraquece a agitação (passando ela para um plano secundário), como produz efeitos danosos no plano da propaganda, agravando a dispersão de nosso “trabalho explicativo”. E, na verdade, a centralização da propaganda é um dos desafios fundamentais da organização revolucionária, e a condição da própria unidade na agitação.
Quando vemos o tipo de preocupação que, já à época de Lenin, a organização dos propagandistas provocava, não é difícil compreender como a dinâmica digital ajuda a encubar os piores hábitos liberais de nossos intelectuais e publicistas de esquerda (em “Carta a um camarada”):
“A propaganda deverá ser feita de forma uníssona por todo o comitê, a quem corresponde centralizá-la rigorosamente. (…)
Quanto aos propagandistas, ainda gostaria de dizer algumas palavras contra a tendência usual de abarrotar essa profissão com pessoas pouco capazes rebaixando com isso, o nível da propaganda. Às vezes, entre nós, qualquer estudante indiscriminadamente é considerado propagandista, e todos os jovens exigem que se lhes “dê um círculo”, etc. Temos que lutar contra essa prática, pois são muitos os males que daí advém. As pessoas realmente firmes quanto aos princípios, e capazes de ser propagandistas são muito poucas (e para chegar a sê-lo é preciso estudar muito e acumular experiência), e a estas pessoas é necessário especializá-las, ocupar-se delas e cuidá-las com zelo. É preciso organizar várias aulas por semana para esse tipo de pessoas, saber enviá-las oportunamente a outra cidade e, no geral, organizar visitas dos mais hábeis propagandistas pelas diversas cidades.”
Se é verdade que as mídias digitais permitem ampliar a abrangência do nosso trabalho de massas, incumbindo contingentes cada vez maiores de quadros na produção e distribuição de nossa agitação e propaganda – então, organizar de modo consequente e planejado a atuação dispersa de centenas de militantes é uma das questões candentes de nosso movimento, no século XXI.
Ainda estamos reagindo à chamada “crise do jornalismo”. Não apenas ainda organizamos de forma insuficiente nossa atuação virtual como permitimos, muitas vezes, que essa desorganização nos atinja no plano do trabalho físico (refletindo na distribuição dos jornais impressos, na correspondência e na literatura partidária, nos contatos entre os organismos e militantes, etc).
Retomar a discussão aberta sobre nossa agitação e nossa propaganda é um ponto de partida inevitável. Só assim poderemos aproveitar as oportunidades [3] que esses novos veículos abrem, assegurando nossa unidade de ação e, ao mesmo tempo, ampliando também a consistência de nossas redes orgânicas, físicas, de distribuição de panfletos, jornais, comunicados, etc. Não basta que um debate efêmero venha à tona a cada nova situação (cada novo caso problemático de agitação e propaganda virtual, cada nova confusão na resposta aos eventos da conjuntura, etc). O ponto de partida para organizar de nosso trabalho comum na luta ideológica deve ser a própria organização da discussão sobre os dilemas de nossa luta ideológica diante dos desafios da comunicação digital. De nenhum outro modo poderemos sistematizar as experiências já existentes rumo a uma atuação planejada e sistemática, que escape à reatividade.

[1] Outra questão sobre a qual valeria uma reflexão, ligada a este tema terminológico da “formação”, é a distinção entre o “trabalho de base”, termo corrente entre nós, e o “trabalho de massas”, conforme formulado por Lenin. Não se trata apenas de uma diferente escolha de palavras: enquanto o trabalho de massas compreende a agitação e a propaganda de modo integrado, concebido à escala geral de todo um país (um trabalho que demanda ações locais, mas concebido à escala de massas); o trabalho de base pode muito bem existir de modo localizado, sem qualquer perspectiva programática integral, sem exigir a conjugação de diferentes esforços e áreas de atuação, etc. Por isso mesmo, talvez, todo o falatório tão presente na esquerda há uma década sobre a “falta de trabalho de base” não tenha levado a grandes soluções: agrava a dispersão, empurra a militância para as diversas frentes locais de atuação cotidiana, sem muito bem sanar as debilidades da esquerda na luta ideológica em um plano mais geral e unitário. Sem dúvida alguma o trabalho pedagógico à escala local é uma necessidade primária no trabalho de organização, agitação e propaganda. Mas não devemos relegar o próprio trabalho de coordenação dos propagandistas, agitadores e organizadores atuando entre as massas (“na base”) como um trabalho desprezível, menor, burocrático, etc.
O “trabalho de base” aparece no discurso corrente como a panaceia contra o distanciamento entre dirigentes e dirigidos, e como cura contra a pura ação performática. Mas nenhuma agitação pode prescindir de alguma dose de performance. Seria um despropósito extrair, da crítica da ação performática, uma negação da importância de ações como o teatro político de rua, por exemplo. Nesse sentido, a crítica da ação performática deve frisar muito mais a falta de consequência na luta ideológica do que um repúdio de tal ou qual forma de agitação e propaganda. Uma ação é meramente performática não porque é também performática, e sim porque lhe falta conexão com um planejamento mais amplo e sistemático, associado ao conjunto do trabalho de propaganda e de organização.
[2] Abordei alguns aspectos dessa questão em um texto anterior: ““Não sou obrigado”: impaciência e arrogância na esquerda”.
[3] A esse respeito, é bastante interessante observar os apontamentos dos camaradas do PTB belga.
Imagem: “Agitprop – Estude, Ativista!” 1927, por Gustav Klutsis e Senkin S.Y

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.