São
já 15,6% os trabalhadores portugueses que recorrem a plataformas de
trabalho “colaborativo”, um eufemismo para empresas como a Uber ou a
Glovo se livrarem de todos os vínculos e direitos laborais. Portugal
está acima da média europeia, mas 40% dos trabalhadores que usam estas
plataformas ainda só retiram delas um quarto do seu rendimento. O futuro
está aqui e o resultado será a perda do direito a férias, fins de
semana, horário, proteção no desemprego e na velhice e greve. O mercado
de trabalho recuará 150 anos.
Mesmo
com alguns recuos, com recurso do Estado a outsourcing e a tarefeiros
precários, o retrocesso será sempre mais lento no sector público. O que
quer dizer que a realidade no privado se afastará cada vez mais da que
ainda é vivida, e bem, no Estado. Por mais que custe à esquerda – a mim
custa-me –, é impossível pensar no futuro do sindicalismo e das lutas
laborais ignorando esta diferença. Ela será aproveitada, acicatada e
explorada pela direita.
Como
temos visto com o crowdfunding para a greve dos enfermeiros, as novas
plataformas tecnológicas também podem ser usadas na luta dos
trabalhadores. Acreditar que isto é extensível a todos os trabalhadores é
ignorar que as vantagens da tecnologia raramente são democraticamente
distribuídas. Elas tendem a replicar as desigualdades que lhes são
prévias. É por isso que são os trabalhadores que ainda têm a proteção do
século XX a conseguirem usar as formas de luta do século XXI. Estão
mais seguros para dar esse passo. Quem não corre o risco de ser
despedido pode ir mais longe do que uma greve normal permitiria,
socorrendo-se das tecnologias para aligeirar as regras, reduzir os
custos e ampliar os efeitos da paralisação. Para quem trabalha à jorna,
sem qualquer defesa, nem a greve comum é uma possibilidade. São dois
mundos que se tocam cada vez menos.
Quando
António Costa usou a expressão “greve selvagem” para falar da
paralisação cirúrgica e remunerada de uma parte dos enfermeiros,
socorria-se de um termo histórico para greves não enquadradas por
estruturas sindicais. Tecnicamente não tem razão, porque houve dois
pequenos sindicatos a dar cobertura à greve. Politicamente sim, porque
não são eles que tratam do crowdfunding, é um movimento supostamente
inorgânico, e não são eles a cabeça política da luta, é a bastonária.
Curiosamente, estas greves “selvagens” só são possíveis onde o mercado
de trabalho não é uma selva.
Só repolitizando o
sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados
para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo
corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos
por baixo
Recuso qualquer
retórica política que trate os funcionários públicos como privilegiados
para que eles desistam de lutar por mais direitos e salários. Mas é
evidente que se está a aprofundar um fosso entre as realidades laborais
do privado e do público. Porque a desregulação do mercado de trabalho
não atinge todos por igual.
Com
as condições de trabalho a regressarem ao século XIX, seria lógico que o
sindicalismo também regressasse ao estilo dos movimentos inorgânicos
que existiram na sua origem. Mas seria um enorme erro. Os trabalhadores
mais desprotegidos precisam, mais do que nunca, do sindicalismo
orgânico. Só os mais protegidos se podem dar ao luxo de o dispensar,
como se vê com esta greve.
O
que é preciso é regressar ao sindicalismo político (não confundir com
partidário), que viva da solidariedade entre todos trabalhadores, sejam
do privado ou do público, médicos, enfermeiros ou distribuidores de
pizas. Um sindicalismo de classe e não de corporação. Um sindicalismo
que não ignora os deveres sociais dos que trabalham em serviços públicos
fundamentais para quem tem menos recursos. Só repolitizando o
sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados
para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo
corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos
por baixo.
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