Translate

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

arta - 27/2/19
Sumário
Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
A greve e a selva
Contactos do autor Instagram
São já 15,6% os trabalhadores portugueses que recorrem a plataformas de trabalho “colaborativo”, um eufemismo para empresas como a Uber ou a Glovo se livrarem de todos os vínculos e direitos laborais. Portugal está acima da média europeia, mas 40% dos trabalhadores que usam estas plataformas ainda só retiram delas um quarto do seu rendimento. O futuro está aqui e o resultado será a perda do direito a férias, fins de semana, horário, proteção no desemprego e na velhice e greve. O mercado de trabalho recuará 150 anos.
Mesmo com alguns recuos, com recurso do Estado a outsourcing e a tarefeiros precários, o retrocesso será sempre mais lento no sector público. O que quer dizer que a realidade no privado se afastará cada vez mais da que ainda é vivida, e bem, no Estado. Por mais que custe à esquerda – a mim custa-me –, é impossível pensar no futuro do sindicalismo e das lutas laborais ignorando esta diferença. Ela será aproveitada, acicatada e explorada pela direita.
Como temos visto com o crowdfunding para a greve dos enfermeiros, as novas plataformas tecnológicas também podem ser usadas na luta dos trabalhadores. Acreditar que isto é extensível a todos os trabalhadores é ignorar que as vantagens da tecnologia raramente são democraticamente distribuídas. Elas tendem a replicar as desigualdades que lhes são prévias. É por isso que são os trabalhadores que ainda têm a proteção do século XX a conseguirem usar as formas de luta do século XXI. Estão mais seguros para dar esse passo. Quem não corre o risco de ser despedido pode ir mais longe do que uma greve normal permitiria, socorrendo-se das tecnologias para aligeirar as regras, reduzir os custos e ampliar os efeitos da paralisação. Para quem trabalha à jorna, sem qualquer defesa, nem a greve comum é uma possibilidade. São dois mundos que se tocam cada vez menos.
Quando António Costa usou a expressão “greve selvagem” para falar da paralisação cirúrgica e remunerada de uma parte dos enfermeiros, socorria-se de um termo histórico para greves não enquadradas por estruturas sindicais. Tecnicamente não tem razão, porque houve dois pequenos sindicatos a dar cobertura à greve. Politicamente sim, porque não são eles que tratam do crowdfunding, é um movimento supostamente inorgânico, e não são eles a cabeça política da luta, é a bastonária. Curiosamente, estas greves “selvagens” só são possíveis onde o mercado de trabalho não é uma selva.
Só repolitizando o sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos por baixo
Recuso qualquer retórica política que trate os funcionários públicos como privilegiados para que eles desistam de lutar por mais direitos e salários. Mas é evidente que se está a aprofundar um fosso entre as realidades laborais do privado e do público. Porque a desregulação do mercado de trabalho não atinge todos por igual.
Com as condições de trabalho a regressarem ao século XIX, seria lógico que o sindicalismo também regressasse ao estilo dos movimentos inorgânicos que existiram na sua origem. Mas seria um enorme erro. Os trabalhadores mais desprotegidos precisam, mais do que nunca, do sindicalismo orgânico. Só os mais protegidos se podem dar ao luxo de o dispensar, como se vê com esta greve.
O que é preciso é regressar ao sindicalismo político (não confundir com partidário), que viva da solidariedade entre todos trabalhadores, sejam do privado ou do público, médicos, enfermeiros ou distribuidores de pizas. Um sindicalismo de classe e não de corporação. Um sindicalismo que não ignora os deveres sociais dos que trabalham em serviços públicos fundamentais para quem tem menos recursos. Só repolitizando o sindicalismo se evitará que os trabalhadores do privado sejam atirados para a selva enquanto os do público são empurrados para o umbiguismo corporativo, tornando mais fácil virar uns contra outros e nivelar todos por baixo.

Sem comentários:

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.