PERSPECTIVAS 1
É sabido que se deve a Theodor
Adorno (1903-1969), filósofo alemão e cofundador da famosa Escola de Frankfurt,
a expressão «Cultura industrial» sob a qual se reuniam os então novos fenómenos
da transformação em mercadorias dos objectos artísticos, sobretudo pela
utilização das técnicas de reprodução conforme assinalara um outro pensador,
Walter Benjamim, ligado à Escola. Na verdade, foi essa Escola (Instituto de
Pesquisas Sociais) à qual ficaram ligados notabilíssimos intelectuais tais como
Horkheimer, Marcuse e, mais tarde, Habermas, que, a partir da década de vinte
do século passado, produziram estudos pioneiros, à luz do marxismo, sobre as
mudanças profundas que a cultura ia sofrendo sob a influência do capitalismo. O
artista e a sua obra perdiam a áurea que tradicionalmente lhes era atribuída;
determinadas obras sublimes perdiam o encantamento divinizado por via da
reprodução técnica que permite hoje mais do que nunca antes a massificação ou “democratização”.
A Arte – fruição egoísta de elites endinheiradas- agora ao alcance do indivíduo
comum (proliferação de museus, a responsabilização pública ou estatal pela
cultura). Tais teses, justíssimas no que que respeita à mercantilização da
cultura, aplicam-se hoje com alterações. Por um lado a mercantilização é
muitíssimo mais acentuada (o negócio da arte, que movimenta valores financeiros
colossais, não se distingue em nada dos outros negócios), por outro, os Estados
e instituições autonómicas mas não privadas passaram a desempenhar um enorme
papel que ajudou a proteger e a democratizar as artes. Contudo, as elites não
desapareceram, bem pelo contrário, a realidade quase absoluta e universal da
Mercadoria selecciona os públicos conforme os espaços físicos, os clubes, os
críticos, e outros factores que exercem uma selecção tão grande como os próprios
preços. Além disso, com a ascensão do neoliberalismo agressivo e as políticas
subordinadas aos rigores do défice os Estados passaram a investir cada vez
menos na cultura “pública”. A classe dominante – accionistas, administradores ou
gestores, da indústria, do comércio e da finança, dos negócios do
entretenimento- não corresponde necessariamente à elite que consome a cultura
erudita. Não se pense que goza de um
status idêntico aos burgueses de Amesterdão do século XVII que encomendavam
retratos de família às oficinas flamengas…
As mercadorias possuem um duplo
valor: um valor de uso e um valor que se realiza no mercado pela venda com um
preço. O que permite trocar as mercadorias não é o seu valor de uso completamente
distinto (sapatos e galinhas), mas o facto delas serem produto do trabalho
humano. De resto, os capitalistas não investem somas de dinheiro em valores de
uso, mas em mercadorias que lhes forneçam lucro (os capitais logo acorrem para
os nichos onde se faz dinheiro, seja a água engarrafada, seja o futebol); essa
margem X que se acrescenta ao Y das despesas, não constituiria estímulo
suficiente (os preços procuram sempre uma média, por efeito da concorrência),
se algo mais substancial não viesse do preço que ele paga pela mercadoria que é
a força-de-trabalho; ou dito melhor: pelo tempo de trabalho não pago ao
trabalhador-produtor, ou seja, a tal mais-valia
omitida nos manuais escolares…
Não cabe aqui desenvolver estas
bases elementares da crítica da economia política, provavelmente de todos
conhecidas e, provavelmente, sabe-se também que constituem as primeiras páginas
do Livro Primeiro, Tomo 1, de O Capital,
a obra-prima de Karl Marx, do qual acabámos de comemorar os duzentos anos dos
seu nascimento.
A Teoria Crítica de Karl Marx é
um modelo interpretativo sem o qual é impossível compreender as dinâmicas
sociais contemporâneas de modo profundo e radical (ir à raiz). Servimo-nos de
outros instrumentos científicos, porém o método e os conceitos marxianos são
indispensáveis. Por exemplo: devemos a Marx a suspeita de que as nossas
opiniões e acções são condicionadas pelo lugar que ocupamos e papel social que
desempenhamos na formação económico-social concreta, esta em que vivemos. Portanto,
pela liberdade maior ou menor que gozamos, pelo poder de que dispomos, pelo
consentimento que damos ou não aos que nos dominam, etc. Assim, as artes
(conteúdos e formas, escala de valores) não são imunes aos valores mercantis
privados (marketing, concorrência feroz, crises, regime de assalariado, etc.)
e, portanto, às ideologias, quer a dominante, quer as subversivas.
Nesta perspectiva convinha para
bem da paz e dos direitos humanos tão proclamados, relevar especialmente o
direito comum não só de assistir a espectáculos (sejam os
musicais, seja o futebol), mas de possibilitar a criação artística e
cultural. Ora, só é realmente livre o cidadão-artista (individual ou coletivo) que
detenha condições materiais para produzir, evitando a gadanha do mercador ou, o
mais das vezes, a exclusão se não servir o lucro. O poder individual de criar
depende muito dos poderes públicos, fornecendo-lhe estes as condições necessárias
e suficientes sem tutelas. Será utópico
possibilitar a qualquer indivíduo ou grupo instalar-se em espaços próprios e
condignos cedidos gratuitamente durante determinado período de tempo, bastando
para isso apresentar candidatura razoável?
NOZES PIRES
Fevereiro 2019
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