PERSPECTIVAS 4
Todos os anos mal a caloraça
africana começava a afugentar o pessoal do interior das casas, juntava-me aos
outros na varanda, aos sábados, logo depois do jantar, porque durante a semana
íamos para a escola a pé por caminhos de terra batida pelos pés nus dos
indígenas, trilhos ladeados de mangueiras silvestres; era, portanto, naqueles
serões de uns sábados mansos naquela mansão colonial de pedra e zinco que
bandos estouvados de morcegos visitavam ao lusco-fusco, os quatro, meu irmão
Horácio e eu mais o primo Pablo, neto da minha tia-avó que pontificava nesses
serões, Joana, Juanita, ainda assim lhe chamavam, apesar do seu regresso
definitivo da Venezuela haver-se dado há tantos anos que eu próprio não tinha ainda
nascido, nem eu, nem o Horácio (mais novo dois anos), nem o filho dela, o
Pablito. Naquele tempo, quando eu, com oito anos de idade, ansiava chegar
depressa a adulto para conquistar o direito a viajar sozinho, não percebia nada
de nada do vasto mundo, da variada gente, mas imaginava, via naquele livro
espantoso «Raças do Mundo», que perdi ou mo surripiaram nas muitas viagens que
mais tarde iria fazer com vontade ou sem ela, um esplendor de fotografias
moderníssimas para a época e que não fazia caso nenhum de “raças” mas sim,
mostrava a imensa variedade de etnias e respetivas culturas, o encanto de
rostos de meninos como eu, chineses, indianos, africanos tão diferentes estes entre
si embora oriundos primogénito continente. Portanto, dizia, ficava longe de entender
de fato as explicações geográficas da tia a quem chamávamos avó porque
realmente era muito melhor avó que a outra que era a verdadeira. Eu confundia
às tantas Venezuela com Colômbia, mas agora tenho a certeza que era deste país
que ela falava quando disse que fora ali mesmo, numas montanhas onde habitavam
há milénios uns indígenas que cultivavam café, que tudo havia começado. Tudo significava a origem das drogas,
nos inícios dos anos 70, para satisfazer os amplexos do amor hippie que tendo
começado pela quase inofensiva marijuana dos anos sessenta depressa foi esta ultrapassada,
pela cocaína, negócio do século, mais as armas e a prostituição, que
transformou meros delinquentes de bairro em multimilionários senadores,
deputados e até presidentes, e os antigos agricultores wayuu converteram, a bem
ou a mal, as suas aterras ancestrais em plantios de coca, eis a história
verdadeira não a que se conta na América, garantia a tia Juanita, que
deambulara nos portos e nas pampas, com um revólver escondido junto ao umbigo, nos
anos cinquenta (ou talvez quarenta) entre marinheiros rudes e filhos pródigos
de coronéis, ora sozinha, ora acompanhada por uma transitória trupe de idênticos
aventureiros brutalmente jovens e cabeludos, com os olhos acesos como fogos nas
pradarias, emborrachando-se com rum em bares rascas e mestiços daquele Caribe
de que eu muitos anos mais tarde haveria de ler histórias de pasmar nas obras
homéricas de Gabriel García Márquez. Eu, meu irmão e o meu primo nem falávamos,
nem tossíamos, presos às narrativas daquelas américas aguerridas mas perdedoras
face à outra América, quintal das traseiras, United Fruit Company, a que introduziu o óleo de palma, e o cacau
para além obviamente da monocultura da banana que tornou rica a empresa do
norte mas não os países produtores, incluindo aquela aldeia fantástica de
Macondo, fundada pela família Buendía-Iguarán, protagonista da obra-prima
absoluta, Cem anos de solidão,
fantástica alegoria das américas chupadas até ao osso, sangradas das suas
riquezas, onde a alma da burguesia local se vende em pesos e reais. A tia-avó
Joana perdia-se nos relatos que cruzava como fios de uma tapeçaria rara de ouro
e sangue: «antes de 1945 já os Estados Unidos
tinham invadido Honduras cinco vezes, a República Dominicana, 3, o
Haiti, duas, a Nicarágua três, Cuba, 3 vezes (aqui os lucrativos bordeis e
casinos na posse da máfia ela os omitia para não fazermos perguntas capciosas
sobre «o que são bordéis?)), Panamá, 3, Guatemala, e El salvador, uma vez.
Depois de 45, a Juanita perdera a conta. Lembrava-se do Chile mártir, do Chile
de Salvador Allende, sim, lembrava-se mas nessa época já não tinha a genica de
outrora para sorte dela senão iria levada de rastos para o Estádio Nacional, meia
portuguesa sem passaporte chileno nunca mais se ouviria falar dela. Tempos
exitosos para os economistas ianques do neoliberalismo, essa economia que logo
ali se mostrou incompatível com os regimes democráticos.
Ora bem: a tia-avó Joana, Juanita
pelo seu lado aventureiro, mãe solteira (“filho ilegítimo”, como então se
definia no Direito burguês) de um menino meio aparvalhado, a feminista que se
oferece vestida e calçada aos olhos dos machos em fotografias coloridas à mão
dos anos quarenta, a quem com o adiantar dos anos foi-se-lhe afilando o rosto,
nariz adunco, águia dos Andes onde adormece Machu Piccu, essa cidade-totémica
que simboliza a unidade ancestral da América de Bolívar, a minha tia-avó, dizia
eu, possuía uns olhos negros que eu via como poços sem fundo sobressaltando a
minha inocência. A bela e forte mulher andarilha que recitava Neruda nas tascas
de operários, Argentina, Uruguai, e adorava o Che, «belo hombre chiquitos!».
Cada um dos três reagia-lhe de
modo diferente: Horácio, meu irmão, que morreria com meningite com dez anos de
idade, dava-lhe para esbracejar e fingir uma luta de boxeurs em que ele era
sempre o vencedor, exibindo assim exuberantemente a sua indignação pelos
ianques «gringos»!) que abriam «as veias abertas da América Latina», como escreveria
Eduardo Galeano mais tarde num livro célebre; o meu primo, um simples, que uma
espécie de patetice congénita entravava, fica-se pasmado a olhar a mãe que ele
venerava, santa e guerrilheira. Eu, do alto dos meus nove anos de idade, só
perguntava porque não gostavam as pessoas umas das outras, assim como eu
gostava do meu irmão, do meu primo, dela, minha tia-avó, e do cachorro Ruby que
apreciava dormitar ao colo de Juanita, fazendo-me ciúmes porque era ali,
naquele colo majestoso, que eu queria estar.
O Horácio voou para o céu sem
esbracejar, sem compreender porquê, olhando para nós todos com uma interrogação
que ainda hoje me persegue. O primito Pablo, nascera torto e cresceu torto,
aparvalhado, tão simplório como Ruby ou os láparos que se escapuliam pelas
giestas quando corríamos para a escola.
A mãe, certo dia, pegou nele,
quase ao colo, vendeu a parte da quinta da família que lhe coube em herança e
regressou à Venezuela, isto é, às suas américas amadas. Conto isto agora,
porque recebi um email com uma foto que me comoveu com as recordações da
infância perdida. Na foto, Juanita, velha de cem anos mas não de solidão, agita
uma bandeirola com a fotografia estampada de Chavez. Alguém escreveu por cima: “Juanita, a santa
guerrilheira”.
Desconfio que foi Pablito, o
tonto.
Nozes Pires
Sem comentários:
Enviar um comentário