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sábado, 16 de março de 2019


PERSPECTIVAS 4


Todos os anos mal a caloraça africana começava a afugentar o pessoal do interior das casas, juntava-me aos outros na varanda, aos sábados, logo depois do jantar, porque durante a semana íamos para a escola a pé por caminhos de terra batida pelos pés nus dos indígenas, trilhos ladeados de mangueiras silvestres; era, portanto, naqueles serões de uns sábados mansos naquela mansão colonial de pedra e zinco que bandos estouvados de morcegos visitavam ao lusco-fusco, os quatro, meu irmão Horácio e eu mais o primo Pablo, neto da minha tia-avó que pontificava nesses serões, Joana, Juanita, ainda assim lhe chamavam, apesar do seu regresso definitivo da Venezuela haver-se dado há tantos anos que eu próprio não tinha ainda nascido, nem eu, nem o Horácio (mais novo dois anos), nem o filho dela, o Pablito. Naquele tempo, quando eu, com oito anos de idade, ansiava chegar depressa a adulto para conquistar o direito a viajar sozinho, não percebia nada de nada do vasto mundo, da variada gente, mas imaginava, via naquele livro espantoso «Raças do Mundo», que perdi ou mo surripiaram nas muitas viagens que mais tarde iria fazer com vontade ou sem ela, um esplendor de fotografias moderníssimas para a época e que não fazia caso nenhum de “raças” mas sim, mostrava a imensa variedade de etnias e respetivas culturas, o encanto de rostos de meninos como eu, chineses, indianos, africanos tão diferentes estes entre si embora oriundos primogénito continente. Portanto, dizia, ficava longe de entender de fato as explicações geográficas da tia a quem chamávamos avó porque realmente era muito melhor avó que a outra que era a verdadeira. Eu confundia às tantas Venezuela com Colômbia, mas agora tenho a certeza que era deste país que ela falava quando disse que fora ali mesmo, numas montanhas onde habitavam há milénios uns indígenas que cultivavam café, que tudo havia começado. Tudo significava a origem das drogas, nos inícios dos anos 70, para satisfazer os amplexos do amor hippie que tendo começado pela quase inofensiva marijuana dos anos sessenta depressa foi esta ultrapassada, pela cocaína, negócio do século, mais as armas e a prostituição, que transformou meros delinquentes de bairro em multimilionários senadores, deputados e até presidentes, e os antigos agricultores wayuu converteram, a bem ou a mal, as suas aterras ancestrais em plantios de coca, eis a história verdadeira não a que se conta na América, garantia a tia Juanita, que deambulara nos portos e nas pampas, com um revólver escondido junto ao umbigo, nos anos cinquenta (ou talvez quarenta) entre marinheiros rudes e filhos pródigos de coronéis, ora sozinha, ora acompanhada por uma transitória trupe de idênticos aventureiros brutalmente jovens e cabeludos, com os olhos acesos como fogos nas pradarias, emborrachando-se com rum em bares rascas e mestiços daquele Caribe de que eu muitos anos mais tarde haveria de ler histórias de pasmar nas obras homéricas de Gabriel García Márquez. Eu, meu irmão e o meu primo nem falávamos, nem tossíamos, presos às narrativas daquelas américas aguerridas mas perdedoras face à outra América, quintal das traseiras, United Fruit Company, a que introduziu o óleo de palma, e o cacau para além obviamente da monocultura da banana que tornou rica a empresa do norte mas não os países produtores, incluindo aquela aldeia fantástica de Macondo, fundada pela família Buendía-Iguarán, protagonista da obra-prima absoluta, Cem anos de solidão, fantástica alegoria das américas chupadas até ao osso, sangradas das suas riquezas, onde a alma da burguesia local se vende em pesos e reais. A tia-avó Joana perdia-se nos relatos que cruzava como fios de uma tapeçaria rara de ouro e sangue: «antes de 1945 já os Estados Unidos  tinham invadido Honduras cinco vezes, a República Dominicana, 3, o Haiti, duas, a Nicarágua três, Cuba, 3 vezes (aqui os lucrativos bordeis e casinos na posse da máfia ela os omitia para não fazermos perguntas capciosas sobre «o que são bordéis?)), Panamá, 3, Guatemala, e El salvador, uma vez. Depois de 45, a Juanita perdera a conta. Lembrava-se do Chile mártir, do Chile de Salvador Allende, sim, lembrava-se mas nessa época já não tinha a genica de outrora para sorte dela senão iria levada de rastos para o Estádio Nacional, meia portuguesa sem passaporte chileno nunca mais se ouviria falar dela. Tempos exitosos para os economistas ianques do neoliberalismo, essa economia que logo ali se mostrou incompatível com os regimes democráticos.
Ora bem: a tia-avó Joana, Juanita pelo seu lado aventureiro, mãe solteira (“filho ilegítimo”, como então se definia no Direito burguês) de um menino meio aparvalhado, a feminista que se oferece vestida e calçada aos olhos dos machos em fotografias coloridas à mão dos anos quarenta, a quem com o adiantar dos anos foi-se-lhe afilando o rosto, nariz adunco, águia dos Andes onde adormece Machu Piccu, essa cidade-totémica que simboliza a unidade ancestral da América de Bolívar, a minha tia-avó, dizia eu, possuía uns olhos negros que eu via como poços sem fundo sobressaltando a minha inocência. A bela e forte mulher andarilha que recitava Neruda nas tascas de operários, Argentina, Uruguai, e adorava o Che, «belo hombre chiquitos!».
Cada um dos três reagia-lhe de modo diferente: Horácio, meu irmão, que morreria com meningite com dez anos de idade, dava-lhe para esbracejar e fingir uma luta de boxeurs em que ele era sempre o vencedor, exibindo assim exuberantemente a sua indignação pelos ianques «gringos»!) que abriam «as veias abertas da América Latina», como escreveria Eduardo Galeano mais tarde num livro célebre; o meu primo, um simples, que uma espécie de patetice congénita entravava, fica-se pasmado a olhar a mãe que ele venerava, santa e guerrilheira. Eu, do alto dos meus nove anos de idade, só perguntava porque não gostavam as pessoas umas das outras, assim como eu gostava do meu irmão, do meu primo, dela, minha tia-avó, e do cachorro Ruby que apreciava dormitar ao colo de Juanita, fazendo-me ciúmes porque era ali, naquele colo majestoso, que eu queria estar.
O Horácio voou para o céu sem esbracejar, sem compreender porquê, olhando para nós todos com uma interrogação que ainda hoje me persegue. O primito Pablo, nascera torto e cresceu torto, aparvalhado, tão simplório como Ruby ou os láparos que se escapuliam pelas giestas quando corríamos para a escola.
A mãe, certo dia, pegou nele, quase ao colo, vendeu a parte da quinta da família que lhe coube em herança e regressou à Venezuela, isto é, às suas américas amadas. Conto isto agora, porque recebi um email com uma foto que me comoveu com as recordações da infância perdida. Na foto, Juanita, velha de cem anos mas não de solidão, agita uma bandeirola com a fotografia estampada de Chavez.  Alguém escreveu por cima: “Juanita, a santa guerrilheira”.
Desconfio que foi Pablito, o tonto.
Nozes Pires

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