Reavaliando o legado de Louis Althusser em seu centésimo aniversário
Entrevista com Warren Montag conduzida por Juan Dal Maso, via Left Voice, traduzido por Aukai Leisner
No centésimo ano do nascimento de
Althusser, publicamos aqui uma conversa com Warren Montag, professor de
Inglês e Literatura Comparada no Occidental College em Los Angeles,
California. Montag publicou vários livros e ensaios sobre a obra e o
legado de Althusser. Nessa entrevista, conduzida pelo filósofo marxista
argentino Juan Dal Maso, Montag explica sua visão sobre as contribuições
de Althusser à filosofia marxista.
Louis Althusser foi um dos pensadores
mais controversos da tradição marxista. Condenado por alguns como
revisionista, celebrado por outros como um filósofo brilhante e
inovador, suas contribuições teóricas ainda despertam interesse e
polêmica hoje em dia, quase trinta anos após sua morte. Muito se debateu
sobre a vida política e pessoal de Althusser, incluindo sua saúde
mental deteriorada. No entanto, é seu impacto teórico que tem sido de
maior interesse aos pensadores marxistas; em especial, o uso que
Althusser fez do estruturalismo e da psicanálise vem fomentando
discussões sobre o lugar da luta revolucionária em seu pensamento.
Juan Dal Maso discorda de Warren Montag
sobre a interpretação do “materialismo do encontro”, característico do
velho Althusser. Dal Maso entende que, enquanto esse conceito opera um
distanciamento de Althusser em relação a visões estruturalistas mais
rígidas do marxismo, implica também um entendimento da história e da
política como fenômenos completamente contingentes. Assim, a falta de
alternativa estratégica presente no jovem Althusser se encontraria
também na fase madura de sua obra. Além disso, embora Althusser
mantivesse uma posição crítica no interior do Partido Comunista Francês,
ele jamais abandonou o partido e não conseguiu oferecer uma alternativa
à stalinização do PCF.
Apesar dessa diferença, consideramos a
obra de Montag uma extraordinária contribuição à compreensão do
pensamento de Althusser. Outras leituras de sua obra predominaram nas
últimas décadas: especialmente uma versão estruturalista literal,
prevalente na América Latina, e a perspectiva de Antonio Negri, de que
haveria uma “ruptura” entre o jovem e o velho Althusser. Opondo-se a
essas visões, Montag busca reconstruir as tensões que persistiram ao
longo da obra de Althusser e que continuam a inspirar filosofias e
práticas revolucionárias na atualidade.
JDM: Nos últimos anos, tem havido
um interesse cada vez maior pela obra de Althusser. Esse movimento
inclui diferentes tentativas de fornecer uma visão mais complexa e
abrangente do desenvolvimento de seu pensamento, bem como uma ênfase
maior no “velho Althusser.” Em sua visão, quais as razões para esse
interesse renovado em Althusser?
WM: Parte do interesse crescente em
Althusser pode ser explicado pela história da publicação de sua obra,
tanto antes como após sua morte. As publicações póstumas, que hoje já
ultrapassam em número os textos que ele publicou em vida, transformaram
irreversivelmente a maneira como pensamos sobre Althusser, bem como,
talvez, a maneira como pensamos sobre o “momento estruturalista” na
França (incluindo o que no mundo anglófono é chamado de
“pós-estruturalismo”). A publicação de François Matheron de trechos
selecionados de um manuscrito do Althusser tardio, sobre o que ele
chamava de “materialismo do encontro” ou “materialismo aleatório”, logo
após sua morte, em 1990, rompeu com o consenso reinante (sobretudo no
mundo anglófono) de que Althusser seria um estruturalista ou mesmo ou
estrutural-funcionalista. Enquanto alguns comentadores, como Toni Negri,
insistiam que o velho Althusser representava uma ruptura fundamental
com as posições expressas nos anos 60, muitos de nós hoje reconhecemos
que sua obra tardia não é inteiramente descontínua em relação a seus
escritos de juventude, permitindo, na verdade, que leiamos seus
primeiros textos sob outra perspectiva, mais afinada com suas
contradições. Foi o próprio Althusser que declarou, em “Lênin e a
Filosofia”, que ler uma filosofia en materialiste é traçar
linhas de demarcação em seu interior, a fim de mapear os conflitos que a
tornam o que ela é. Levar Althusser a sério é usar esse método de
leitura até mesmo (ou especialmente) para sua obra.
A fim de fazê-lo, no entanto, precisamos
primeiro identificar e remover alguns dos obstáculos que nos impedem de
ler Althusser de maneira inovadora: as leituras que já se fizeram por
nós – repetidas em liturgias acadêmicas de vários tipos – que pintam-no
como um partidário da estrutura contra a agência, cuja teoria tornaria
impossíveis a mudança social e a revolta. A publicação póstuma de Maquiavel e Nós, bem como sua crítica a Levi-Strauss (Sur Levi-Strauss,
1966), no entanto, tornam difícil a tarefa de descartá-lo com
“estruturalista.” Podemos agora ver mais claramente uma espécie de
materialismo do encontro em Contradição e Sobredeterminação (1962),
em que Lênin (o Lênin que reconheceu a enorme acumulação de fatores
necessários à Revolução de Fevereiro) é uma espécie de substituto para
Maquiavel, assim como Maquiavel é, em parte, um substituto para Lênin no
Althusser tardio. O interesse de Althusser por Sobre a Contradição, de
Mao, deriva do fato de que tratou-se da primeira tentativa genuinamente
comunista de teorizar sobre a complexidade da contradição histórica,
além da fórmula hegeliana da identidade ou mesmo união dos opostos.
As publicações póstumas, muitas das quais
manuscritos apenas iniciados e logo abandonados, são de qualidade
reconhecidamente oscilante. Graças a elas, porém, temos uma ideia muito
mais clara dos problemas que Althusser se propunha a resolver, sua
concepção da conjuntura em que escrevia, e as tarefas específicas que
ela impunha sobre seu trabalho teórico. Ele certamente entendia os anos
60 como um era de extraordinária produtividade teórica e conceitual em
várias disciplinas, bem como um tempo de intensas mobilizações
políticas, sendo as últimas, em certo sentido, condição das primeiras.
Ele via a prática da filosofia como a
elaboração de teses que não deveriam ser julgadas verdadeiras ou falsas,
mas sim corretas ou incorretas, com base em seus efeitos: elas causaram
movimento, abriram o caminho para o pensamento e para o conhecimento,
mudaram a relação de forças entre ideias e conceitos em filosofia? A
ideia de Althusser de que existem na filosofia, bem como em outras
áreas, relações de força entre ideias que nada tem a ver com sua
verdade, e de que a verdade do verdadeiro, por assim dizer, é
estabelecida e mantida somente por meio da luta, é extremamente
relevante hoje em dia, com a ascensão de movimentos racistas e
neo-fascistas pelo mundo. Todo filósofo escreve numa conjuntura
específica, e o faz a fim de “faire bouger les choses”.
Althusser propôs uma teoria da prática filosófica que exigia uma análise
precisa da conjuntura teórica, das alianças objetivas que se fazem
entre conceitos e teorias (ao invés de entre pessoas e partidos,
compreendidos com base em suas alianças e intenções declaradas), bem
como de seus efeitos. Nessa perspectiva, um único texto de um
não-marxista (mas de modo algum anti-marxista) como Foucault (p. ex. Surveiller et Punir)
pode trazer mais contribuições à teoria e prática da luta de classes,
bem como às lutas contra o racismo e o sexismo, do que mil tratados
sobre falsa consciência.
JDM: Em seu livro Althusser e Seus Contemporâneos,
você afirma que um dos obstáculos a qualquer tentativa de entender
Althusser é que a atual compreensão do estruturalismo é demasiado
simplista. Como podemos complexificar essa compreensão? Que elementos ou
temas têm sido ignorados nas análises do estruturalismo?
WM: A concepção de filosofia que eu
mencionei acima impedia que Althusser simplesmente descartasse o enorme
conjunto de obras hoje categorizadas como “estruturalistas”,
“idealistas” ou “funcionalistas”. Sua tarefa, como ele a enxergava, era
identificar os conflitos e contradições, as inconsistências e
discrepâncias próprias formas de investigação reunidas sob o rótulo de
estruturalismo. Isso fazia de Althusser uma espécie de hegeliano: uma
doutrina filosófica somente pode ser compreendida ao se analisar suas
contradições essenciais. Obviamente, “contradição” aqui não significa
falha ou erro, referindo-se, ao invés, ao antagonismo constituinte que
faz de uma determinada filosofia o que ela é. Althusser entendia que a
estrutura em questão no paradigma linguístico – que foi talvez a
principal referência para vários projetos estruturalistas na
psicanálise, antropologia, sociologia, literatura e cinema – não era
simplesmente um sinônimo de organização ou ordem, mas representava na
verdade uma tentativa (ainda que mal sucedida) de produzir uma nova
teoria da causalidade. Althusser buscava traçar linhas de demarcação
para separar e identificar aquilo que, na obra de seus contemporâneos,
era irredutível a noções existentes de determinação e de causa e efeito.
Isso foi particularmente importante para o
desenvolvimento da teoria marxista, boa parte da qual dependia do
modelo baseado na divisão entre infra e superestrutura e segundo o qual a
economia era em última instância determinante. Toda a superestrutura
política, legal e cultural era explicada com recurso ao conceito de uma
causalidade expressiva ou emanacionista. A base econômica produziria não
somente o econômico como também o meio extra-econômico de sua própria
reprodução. Enquanto esse conceito recusava a ideia de que a cultura se
produzia livre e espontaneamente, fazia-o em detrimento da compreensão
de sua existência material e da forma de determinação que lhe era
própria. Foi isso que levou Althusser a declarar que “a ideologia tem
uma existência material”, consubstancial aos aparatos, práticas, rituais
e discursos prescritos, por meio dos quais ela se expressa. Esse
conjunto de problemas o levou a formular o conceito de causalidade
estrutural, que preservava a noção de estrutura, mas somente na forma de
uma estrutura que é, estritamente falando, ausente, na medida em que
existe apenas enquanto manifestação de seus efeitos. Tal conceito deriva
em grande medida da leitura que Althusser faz de Spinoza e da discussão
do filósofo holandês sobre a causa imanente. Ao mesmo tempo, Lacan
buscava teorizar o inconsciente como algo distinto de um repositório de
significados. Seria possível conceitualizar uma causa que não preceda
nem transcenda seus efeitos?
JDM: Em sua leitura de uma discussão entre Althusser e Pierre Macherey, você afirma que em Lire Le Capital há
dois conceitos diferentes de “estrutura”, um mais próximo de Hegel e
outro mais próximo de Spinoza. Você poderia explicar as diferenças entre
eles?
WM: Na primeira edição de LLC, publicada
em 1965, Althusser usou as expressões “estrutura latente” e “efeitos de
estrutura latente” (expressões que ele já havia usado num ensaio
anterior sobre Bertolazzi e Brecht) juntamente com a seguinte afirmação:
“Uma estrutura é imanente em seus efeitos, causa imanente de seus
efeitos. É-o no sentido spinozano do termo, de que toda a sua existência
está em seus efeitos.” Macherey advertiu Althusser contra o uso do
termo “estrutura latente”, precisamente porque ele implicava que a
estrutura não seria imanente, mas estaria escondida detrás ou embaixo
daquilo de que ela constituía a estrutura. Na psicanálise, a oposição
entre o conteúdo latente e manifesto de um sonho muitas vezes sugeria
uma verdade escondida pelo véu da aparência, a exigir um método que
fossem além da superfície, noção a que Lacan se opôs desde o início de
seu ensino. Além disso, “latente”, palavra derivada do verbo latino lateo,
que significa esconder-se ou ficar fora da vista, adquiriu mais tarde
outro significado em francês: latente passou a significar embriônico, a
condição de determinada coisa em seus estágios iniciais. Tal acepção
sugeria inevitavelmente noções de potencial e realização de potencial e,
portanto, de uma teleologia imanente, como no exemplo de Aristóteles de
que uma semente contém em si uma árvore como finalidade. Nesse sentido,
uma estrutura latente pode ser vista como uma versão da combinatória
formal que Althusser tanto criticava: um sistema que contém todas as
combinações possíveis de elementos pré-determinados, mas em estado
potencial em vez de atual. Compreender e formalizar as regras que
governam essas combinações, no entanto, implica uma formalização da
possibilidade, não da necessidade. Para o marxismo, uma tal visão pode
ser expressa como uma combinatória formal de modos de produção, isto é,
uma teoria dos possíveis modos de produção e suas combinações; tal
teoria, porém, não consegue explicar, por si, a passagem do possível ao
necessário e do potencial ao atual. Em parte, a noção de causalidade
estrutural ou imanente foi criada para criticar tais visões e abrir
caminho não a um conceito de possibilidade, mas de necessidade.
Macherey, particularmente em sua contribuição à edição especial de Les Temps Modernes
dedicada aos estruturalismo, em 1966, levou ainda mais adiante as
formulações de Althusser: se a estrutura não possui existência fora de
seus efeitos, ela não existe, estritamente falando, nem mesmo no
interior de seus fenômenos. Ela não existe em lugar nenhum; trata-se de
uma causa ausente – uma causa cuja ausência abre espaço para se pensar a
singularidade e a irregularidade. Talvez a expressão mais contundente
desse conceito de estrutura seja a noção de “estrutura da conjuntura”, a
estrutura da combinação de diversos elementos conflitantes e dispersos,
irredutíveis a uma lógica da história.
JDM: Essa visão contraditória de estrutura persiste ao longo da obra de Althusser?
WM: Eu colocaria a questão da seguinte
maneira: essa contradição ou conjunto de contradições aparece e
reaparece ao longo de sua obra, embora em contextos diferentes e
formulada de diferentes maneiras. No ensaio sobre os Aparatos Ideológicos do Estado,
por exemplo, Althusser fornece uma explicação inteiramente
funcionalista (quase idêntica à que ele critica em Levi-Strauss) dos AIE
como se eles fossem meios que a sociedade capitalista cria a fim de se
reproduzir. É uma explicação que não deixa espaço para a luta de
classes, ou qualquer forma de luta. Ademais, quando ele afirma que “a
estrutura formal da ideologia é sempre a mesma”, dotando-a de uma
existência trans-histórica, na qual a interpelação do indivíduo ocorre
de maneira idêntica ou similar ao longo da história humana, Althusser se
aproxima da reconstrução de uma espécie de combinatória. O que torna
esse exemplo particularmente interessante é o fato de que as revisões
que Althusser fez das formulações presentes no manuscrito original,
publicadas em 1966 sob o título de Sur la reproduction,
consistiram em remover praticamente todas as referências à resistência e
aos subprodutos contraditórios produzidos pelos AIE, transformando a
versão original, mais complexa, num texto quase funcionalista. Ainda que
atribuamos um significado tático e, portanto, conjuntural a essas
mudanças, fica claro que Althusser ainda não havia acertado as contas
com a noção de estrutura que ele próprio criticava.
Embora a palavra “estrutura” apareça com
menos frequência nos textos do final de sua vida sobre materialismo
aleatório do que em Por Marx, Althusser recorre ao termo quando
suas meditações sobre o aleatório o levam ao problema mesmo para o qual
a noção de causalidade estrutural servia de marcador. Num texto dessa
época, Althusser afirma que “ao invés de pensar a contingência como uma
modalidade da necessidade, devemos pensar a necessidade como o tornar-se
necessário do encontro das contingências”, e refere-se à “estrutura do
encontro” que não precede de, nem sucede à, conjunção dos elementos, mas
é a causa que coincide totalmente com seus efeitos, o “tornar-se
necessário” do encontro que “funciona”, o momento em que uma coisa
singular, talvez um mundo ou um modo de produção, emerge com as leis e
tendências que tornam possível que ele persista, por tempo indefinido,
em seu ser. Embora Althusser faça referência a Epicuro e Lucrécio, ao
invés de usar Spinoza, e ao vazio ao invés de à repleção, podemos ver a
recorrência de um problema que as teorias existentes de causalidade não
conseguem definir, muito menos resolver.
JDM: Qual é a sua visão a
respeito da leitura que Althusser faz de Maquiavel? O que Althusser tem a
contribuir para nossa compreensão do filósofo italiano?
WM: Maquiavel ocupava um lugar de
destaque no universo teórico de Althusser. Assim como Spinoza, ele foi
objeto de uma obsessão de Althusser, que o fez retornar até o fim de sua
vida aos textos do autor de O Príncipe. Quando ele decidiu
dedicar pela primeira vez um seminário a Maquiavel, em 1962, Althusser
confessou, em sua correspondência com Franca Madonia, sentir uma espécie
de reverência por sua obra, mas sem conseguir explicar a seus alunos o
porquê. O problema não era entender os textos em si, mas sim explicar a
importância filosófica de Maquiavel, o sentido em que Maquiavel não era
apenas um filósofo político mas também um filósofo, ou talvez
anti-filósofo, na medida em que todas as variantes da filosofia de seu
tempo estavam orientadas a um conhecimento da providência e da
finalidade com a qual todas as coisas eram criadas. O realismo de
Maquiavel operava pela desrealização das condições existentes do real e
da realidade para demonstrar a impossibilidade do príncipe necessário à
formação de uma nação italiana, que seria a condição necessária para
garantir a paz e prosperidade. Mas Maquiavel foi também o pensador da
ocasião (occasione) – o kairós, trazido inesperadamente pela
fortuna – quando a oportunidade de derrubar a ordem existente aparece
por um breve momento. Este é o momento que Lênin, em suas Cartas de Longe
(1917), disse poder ser facilmente confundido com um milagre, dado o
número extraordinário que eventos que contribuem para sua formação, o
momento que os revolucionários devem saber reconhecer, porque nele
reside a única possibilidade de mudança revolucionária. Ao lado das
regularidades e padrões históricos, um tempo quase cíclico governado
pela repetição, há uma outra temporalidade, irredutível à primeira,
marcada por descontinuidades e limiares irreversíveis.
Daí que Maquiavel tenha sido, como
observou Althusser, “o primeiro pensador da conjuntura”, recusando a
predominância do universal sobre o singular. Ele não apenas pensa sobre a
conjuntura, mas pensa em seu interior, compelido a examinar as relações
de força que constituem seu sistema conflitual e a escrever em
resposta. Em grande medida, Maquiavel tratava seus próprios textos como
intervenções e buscava calcular a maneira como ele poderia modificar as
relações de força no nível da escrita. Ele via as grandes histórias de
autores gregos e romanos como uma documentação de experimentos
histórico-políticos cujos resultados eram necessários a seu próprio
projeto de compreender o presente. Tais autores ensinavam que “é
necessário pertencer ao povo para se conhecer o príncipe”, o que
significa que o poder do soberano, independentemente das leis e dos
costumes, encontra-se no povo – em seu apoio, aquiescência ou oposição.
Em uma das passagens mais bonitas e inesquecíveis de Althusser, podemos
certamente ouvir o eco de Maquiavel: na medida em que a “luta de classes
se desenvolve – mesmo para aqueles que já enxergaram adiante – sem
auxílio de qualquer instância superior a julgar ou decidir sobre cada
questão, devemos falar aqui, paradoxalmente, de erro sem verdade e
desvio sem norma. Uma falha não superada, uma hesitação, uma aberração,
derrota ou crise, que se desenvolve ou subitamente aparece em meio à
realidade, uma realidade sem verdade ou norma: esse é o erro, esse é o
desvio.” (“História Inacabada”, Introdução a Ciência Proletária?, de Dominique Lecourt).
JDM: Que tipo de relação
poderíamos estabelecer entre a prática política e teórica de Althusser
durante os anos 60 e 70? Você utiliza o conceito de “conjuntura teórica”
para compreender as intervenções filosóficas de Althusser e os
diferentes momentos de sua trajetória teórica. Como esse conceito nos
ajuda a captar os pontos de inflexão em seu pensamento?
WM: Althusser argumentava em Filosofia e a Filosofia Espontânea dos Cientistas,
que toda filosofia intervém na conjuntura em que surge. Por que isso
seria uma necessidade? “Desde o começo, só podemos falar de filosofia ao
ocupar um certa posição definida em seu interior. Em filosofia não
podemos, como o Bom Selvagem de Rousseau no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
ocupar um canto vazio da floresta. Na filosofia, todos os espaços estão
desde sempre ocupados, de modo que apenas podemos ocupar uma posição contra
o adversário que já ocupa tal posição.”Ser um filósofo marxista implica
determinar que abordagens e doutrinas filosóficas são dominantes no
presente e quais os efeitos que essa dominação, por excelência
temporária, pode acarretar, tanto dentro quanto fora da filosofia. É
necessário mapear também, o mais claramente possível, as filosofias que
resistem a tal dominação, ainda que apenas objetivamente, sem o
conhecimento ou consentimento dos filósofos envolvidos. Compreender uma
filosofia – incluindo, sobretudo, a nossa própria – com base em seus
efeitos mensuráveis, implica um constante ajustamento de nossas teses e
categorias, a fim de romper com as filosofias dominantes e abrir caminho
para novos desenvolvimentos teóricos.
É fascinante ler as análises de Althusser
da conjuntura filosófica de meados dos anos 1960, um momento
extraordinário em todos os sentidos. Ele compreende o poder de uma
espécie de humanismo, com raízes na tradição liberal, de um lado, e o
poder do formalismo e do funcionalismo, de outro, bem como a força da
unidade que se havia formado entre os dois. Tais posições não
correspondem de modo algum a partidos políticos específicos ou a
movimentos, exceto, talvez, no sentido de que o fim do regime stalinista
e a parcial social-democratização de alguns dos Partidos Comunistas
europeus (por exemplo, o PCI), desencadearam um movimento
“anti-dogmático”, o que implicava rechaçar qualquer ênfase nos textos de
Marx, Engels e Lênin (com exceção aos escritos do jovem Marx, então
recém-publicados.) O maoísmo, que surgiu na França em meado dos anos 60,
marcou uma reação contra esse “revisionismo”. Sabemos que Althusser se
opôs tanto ao stalinismo que ainda grassava na França (e cujas relações
com o maoísmo sempre foram bastante complicadas) quanto ao revisionismo
de matiz estruturalista ou fenomenológico. Até o final dos anos 70,
quando Althusser criticava abertamente as formas organizacionais e a
política do PCF, as correntes trotskistas tendiam a esposar Lukács e a
Escola de Frankfurt contra o que consideravam a teoria stalinista de
Althusser.
JDM: Sobre a questão da política e
da conjuntura teórica: qual foi a relação entre a obra de Althusser e
Maio de 68? Ranciére está correto em sua crítica a Althusser?
WM: Althusser passou maio de 68 num
hospital psiquiátrico e não pode participar pessoalmente das lutas. Isso
não significa, no entanto, que ele não considerasse os eventos de Maio
de 68 como o momento definidor da história francesa moderna. A crença de
que Althusser partilhava da análise negativa, típica das lideranças do
PCF, que via em Maio de 68 um “esquerdismo infantil” ou uma “anarquia”, é
ao mesmo tempo amplamente divulgada e completamente falsa. Poucos de
seus críticos sabem que ele respondeu aos ataques de Michel Verret
contra os estudantes revolucionários num texto intitulado A propósito do Artigo de Michel Verret Sobre o Maio Estudantil,
publicado em 1969, em La Pensée. Althusser defendeu a mobilização dos
estudantes, ao mesmo tempo em que reconhecia seu caráter contraditório.
Ademais, criticou o PCF e o CGT por não perceberem a radicalização dos
jovens trabalhadores no “Maio dos Trabalhadores”, rejeitando o populismo
e anti-intelectualismo da crítica aos estudantes. Althusser inclusive
apontou como um erro grave o isolamento do PCF em relação aos estudantes
e à juventude, erro pelo qual o partido deveria assumir
responsabilidade.
Talvez mais importante, eu diria que
Althusser foi um do poucos a reconhecer, talvez já na primavera de 1968,
que a ocasião, no sentido maquiaveliano, a abertura na qual a revolução
é possível, havia se fechado, e que a tarefa mais importante era
explicar o fracasso de um revolta aparentemente tão favorecida pela
fortuna. Vale recordar que, no manuscrito publicado após sua morte,
Althusser identifica o PCF como um AIE e, portanto, parte da reprodução
da dominação de classe. Eu vejo o ensaio sobre os AIE como uma resposta
às consequências de Maio, como que respondendo à pergunta que Spinoza
coloca no início de seu Tratado Teológico-Político: o que faz
com que os homens lutem tão bravamente por sua servidão quanto por sua
salvação? Era uma análise desse tipo, ao invés de um messianismo
secularizado que tudo prometia a seus fiéis, que tornaria possível uma
estratégia revolucionária.
A crítica de Ranciére a Althusser
baseava-se em sua superestimação de ambos o poder e a malevolência do
PCF (e do próprio Althusser, retratado por Ranciére como um funcionário
intelectual, cuja doutrina se modificava de acordo com a linha do
partido). Dizer que “o marxismo de Althusser era uma ‘filosofia da
ordem’, cujos princípios nos distanciavam das revoltas que então
ameaçavam o coração da ordem burguesa” e que até mesmo sua ênfase na
análise de conjuntura seria meramente uma manobra para preservar um
lugar para uma ciência e um cientista da conjuntura e, portanto, para os
especialistas, elites intelectuais etc, é tratar sua obra filosófica
como uma série de contos de fadas que devem ser denunciados como tal. O
livro de Ranciére nos diz muito pouco sobre Althusser, mas muito sobre
as próprias posições de Ranciére e as contradições que levaram ao
colapso do maoísmo francês e de uma força significativa da esquerda.
Felizmente, as posições que ele aparenta esposar em A Lição de Althusser,
particularmente sua oposição à crítica do sujeito de Althusser, são
logo deixadas de lado, e Ranciére continua a conduzir importantes
explorações teórico-políticas.
JDM: Você falou das leituras
trotskistas de Althusser. Não há alguns trotskistas, especialmente no
Reino Unido, que consideram a obra de Althusser como uma importante
contribuição ao marxismo?
WM: Certamente, o grupo em torno da New
Left Review (sobretudo Perry Anderson) teve um papel fundamental na
publicação dos textos de Althusser e, em menor grau, como comentadores,
especialmente no período crucial entre 1968 e 1976. Durante esse
período, a maioria dos que se reuniam em torno da NLR, com a exceção do
próprio Perry Anderson, não eram apenas membros ativos da seção
britânica da Quarta Internacional (o Grupo Marxista Internacional), mas
desempenhavam também papel importante em entidades internacionais da QI.
Na NLR encontravam-se traduções de obras marxistas recentes da França,
Itália, Alemanha, bem como da América do Sul, representando várias
escolas de pensamento. Poderia-se encontrar um artigo de Ernest Mandel
ao lado de um artigo de Althusser – algo extremamente raro naquela
época. Dito isso, muitos dos comentários sobre Althusser publicados na
NLR ou na New Left Books/Verso não tinham grande valor. A notável
exceção é o livro de Gregory Elliot, que tornou possível uma leitura
inovadora de Althusser. O Althusser de Anderson era demasiado
estruturalista, fato que tornou ineficaz sua crítica a Miséria da Teoria, de Thompson.
Enquanto os Socialistas
Internacionalistas Britânicos (mais tarde o Partido Socialista dos
Trabalhadores) foram extremamente hostil a Althusser, acusando-o de ser
um stalinista e um idealista, foi dessa corrente que surgiu o melhor
livro em inglês sobre Althusser na década de 70: O Marxismo de Althusser,
de Alex Callinicos. Em certa medida, ele conseguia ver Althusser como
um pensador da conjuntura e ligar a noção de sobredeterminação à análise
de Trotski em História da Revolução Russa. Foi um passo
simples, na medida em que Callinicos conheci bem a obra de Lênin.
Infelizmente, ele não deu sequência a essa investigação.
Nos Estados Unidos, Michael Sprinker,
membro do Solidarity, uma organização cujas raízes se encontram em ambos
a tradição da IS e o trotskismo da QI, fez importantes contribuições
tanto para o estudo de Althusser quanto para o esforço de publicação de
seus trabalhos em língua inglesa.
IN LAVRA PALAVRA
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