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quarta-feira, 22 de junho de 2022

Partilho porque a verdade nunca é única. Contudo, nesta análise de um importante analista marxista não subscrevo um determinado radicalismo ceticista que às vezes conduz à paralisia

 


Greg Godels

Entender o imperialismo como um conflito entre o desenvolvimento avançado e atrasado baseado nos termos desiguais da atividade económica – uma espécie de roubo organizado – é entender mal a natureza da exploração sob o capitalismo. A intensa competição entre os atores – grandes e pequenos – por mercados, recursos, trabalho e capital são a essência do capitalismo e do imperialismo. Não há uma linha nítida entre esta competição e a guerra.

 

 

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A guerra na Ucrânia é uma guerra de propaganda, com todos os beligerantes, patrocinadores e seus aliados produzindo – através de uma mídia abjetamente subserviente – amontoados de mentiras e desinformação. Nesse sentido, eles assemelham-se a outras guerras, mas com uma dose adicional de falta de vergonha.

 

Por essa razão, é difícil discernir como a guerra está a ser conduzida ou quem tem a vantagem militar a qualquer momento. Como todas as guerras modernas, as histórias de atrocidades são abundantes e as perdas são exageradas.

 

Mas o que separa esta guerra das guerras do passado recente, e não tão recente, é a quase ausência de um movimento antiguerra organizado. É mais do que uma curiosa estranheza que existam poucas ações nas ruas ou campanhas de influência ou resistência para parar o caos desta guerra brutal. Claro, há apelos genéricos para cortar orçamentos militares ou  a  opor filosoficamente à guerra, mas pouca ação para parar esta guerra em particular.

 

Apesar do chamado “nevoeiro” da guerra, todos sabem que soldados e civis estão a morrer em número significativo, que há corpos dilacerados, casas destruídas e pessoas desalojadas de suas casas. Nenhum “nevoeiro”  mais ou menos denso pode esconder isto.

 

Claro, existem algumas vozes proeminentes – Papa Francisco, até Henry Kissinger – que pediram a cessação dos combates e negociações. E comunistas e sindicalistas na Itália, Grécia e Turquia bloquearam os carregamentos de armas da NATO, organizaram manifestações e fizeram piquetes em embaixadas.

 

Mas, na maioria das cidades, Estados e países há poucas ações direcionadas contra a guerra na Ucrânia. E o mais surpreendente é que as pessoas de esquerda na Europa e nas Américas, que geralmente lideram o caminho contra a guerra, estão em grande parte silenciosos. Eles não exigiram minimamente que os seus próprios países fiquem de fora dessa guerra.

 

Em vez disso, eles aliaram-se tácita ou abertamente a um ou outro beligerante. Escrevi e falei em diferentes ocasiões contra tomar partido no conflito. Além disso, procurei colocar a guerra no contexto do imperialismo clássico e sugeri que o apoio da esquerda tanto aos beligerantes quanto aos seus patrocinadores  está errado, semelhante ao colapso da oposição de esquerda no início da Primeira Guerra Mundial. Naquele caso, esquerda sucumbiu aos apelos nacionalistas estreitos.  Neste caso, a esquerda está a sucumbir a um conceito confuso de imperialismo e anti-imperialismo. 

 

Em vez de repetir o argumento, pode ser útil analisar como e por que as pessoas de esquerda justificam o seu apoio a um lado ou outro e se abstêm de acrescentar a sua voz à causa da paz na Ucrânia.

 

É fácil descartar aqueles que apoiam a Ucrânia de forma acrítica. Além dos nacionalistas raivosos da multidão “Glória à Ucrânia”, que dão as boas-vindas ao conflito e esperam atrair os países capitalistas ocidentais para uma cruzada contra a Rússia, há aqueles que veem a guerra de forma simplista como uma agressão pura e sem história. Por ignorância da história pós-soviética ucraniana de corrupção, reação, intromissão e agressão ocidentais, ou por colaboração voluntária com as intrigas dos EUA e da NATO esses novos  soldados da Guerra Fria procuram uma derrota russa e não têm interesse num acordo pacífico imediato ou preocupação com o caos.

 

Contra eles estão os camaradas mais comedidos que, lembrando o impasse da Guerra Fria entre os EUA e os seus aliados e a União Soviética e seus aliados, confundem a Rússia de hoje com a União Soviética. Eles reconhecem como a União Soviética constituiu um polo de resistência que se opôs e às vezes reverteu os desígnios da aliança imperialista da Guerra Fria sobre o mundo. O imperialismo dos EUA, a potência imperialista dominante na época, foi efetivamente controlado pela União Soviética de 1945 até o fim da União Soviética em 1991.

Esses anti-imperialistas veem a Rússia, na sua guerra contra a Ucrânia, como um polo emergente semelhante contra  o imperialismo dos EUA  e veem a invasão da Rússia como uma expressão de uma rutura do domínio militar e económico absoluto dos EUA sobre o mundo estabelecido após a queda da União Soviética. Para eles, um mundo multipolar está a nascer.

 

Há fragmentos de verdade nessa visão, mas a Rússia não é a União Soviética. Não compartilha a sua ideologia; em vez disso, os seus motivos substituem o internacionalismo soviético por um aspirante ao nacionalismo de grande potência. Enquanto explora as brechas na hegemonia global dos EUA, não oferece uma visão alternativa ou assistência incondicional às vítimas do capitalismo e do imperialismo. Nesse sentido, a Rússia também não é Cuba.

 

A política externa da Rússia é o oportunismo capitalista: amigos da Turquia ou de Israel num momento, em conflito no momento seguinte. A Rússia alinha-se com a Arábia Saudita quando é economicamente lucrativa, ao mesmo tempo que luta contra os representantes sauditas na Síria. Não há princípios consistentes que a orientem. Nem pode haver, para um país que rejeitou o socialismo a favor do capitalismo. Aqueles que veem a política externa e as alianças russas como progressistas são muito seletivos nos seus exemplos.

Os líderes da Rússia prontamente abraçam os valores capitalistas e rejeitam o projeto soviético, embora apelem, quando necessário, aos símbolos e tradições soviéticas quando úteis.

 

Pode ser verdade que a invasão russa acabe por atingir os objetivos almejados pela sua classe dominante. E pode ser verdade que esses ganhos venham à custa do imperialismo dos EUA e da sua classe dominante, mas como é que isso nos aproxima de um mundo de paz e justiça social? As rivalidades permanecem, os objetivos das respetivas classes dominantes permanecem incertos e instáveis, apesar das suas proclamações de amantes da paz que procuram  a democracia; e o perigo de conflito permanece alto ou ainda maior.

 

Há outros que veem a guerra – na medida em que a Rússia está a desafiar o poder dos EUA – como um golpe a favor daqueles que estão no fundo do que podemos imaginar como a “pirâmide” imperialista – os países em desenvolvimento. Jenny Clegg, por exemplo, ao escrever no The Morning Star , vê o desenvolvimento de “concorrentes”  ao domínio dos EUA como o estabelecimento dos primeiros passos em direção a um mundo multipolar. Ela observa corretamente que a multipolaridade “não é uma política, mas uma tendência objetiva emergente…”

Além disso, ela vê  a troca desigual entre os países altamente desenvolvidos e os países em desenvolvimento como a principal contradição – a contradição que define o imperialismo e o anti-imperialismo.

 

Embora essa distinção centro-periferia fosse popular e influente entre os “marxistas” ocidentais independentes na época em que as classes trabalhadoras do centro – do Ocidente – eram geralmente domadas pelo oportunismo social-democrata, não era particularmente interpretativa nem de relevância contínua.

 

Marx fez um grande esforço para mostrar que a troca, sob as relações capitalistas de produção, não era geralmente desigual – valores trocados por valores. Mas essas mesmas relações de produção produzem  sempre e reproduzem a desigualdade. O âmago da desigualdade – a exploração capitalista – está embutido no sistema capitalista, não no roubo da troca desigual.

 

Como Lenine mostrou, o desenvolvimento desigual é uma característica das relações entre pessoas, instituições sociais, empresas da mesma indústria, entre indústrias e entre países e até continentes. Não é a troca desigual que explica o desenvolvimento desigual, mas as diferenças no ritmo de desenvolvimento, práticas culturais e sociais, instituições políticas e outras e, mais importante, especialmente na época do imperialismo, os efeitos atrofiadores do colonialismo, do neocolonialismo, e o seu legado.

 

No último meio século, os desenvolvimentos tecnológicos libertaram os capitalistas para movimentarem, acederem e empregarem as forças produtivas materiais – fábricas, redes de transporte, recursos – a fim de obter acesso a mercados de trabalho anteriormente inacessíveis, tornando mais barato o trabalho em geral. Ao mesmo tempo, esse desenvolvimento criou padrões de vida crescentes em alguns países em desenvolvimento, enquanto os reduzia em alguns países capitalistas avançados.

 

Consequentemente, alguns países capitalistas – como Índia, Turquia, Brasil, Indonésia – tornaram-se poderosos rivais das grandes potências do final do século XX.

O conceito de troca “desigual” como explicação para a desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento (e para a diferença entre imperialismo e anti-imperialismo) falha porque implica que, se as trocas se igualassem, essa mesma desigualdade entre os estados evaporar-se-ia. Ainda mais importante, sugere que a troca igualitária – e não o fim do capitalismo – sinalizaria o fim do imperialismo.

 

Entender o imperialismo como um conflito entre o desenvolvimento avançado e atrasado baseado nos termos desiguais da atividade económica – uma espécie de roubo organizado – é entender mal a natureza da exploração sob o capitalismo. A intensa competição entre os atores – grandes e pequenos – por mercados, recursos, trabalho e capital são a essência do capitalismo e do imperialismo. Não há uma linha nítida entre esta competição e a guerra.

 

Clegg quer que acreditemos que, num mundo multipolar, com o poder dos EUA diminuído, o estabelecimento de trocas iguais trará um período de competição civilizada, bem-comportada e respeitosa. Ela insiste que esse contraste com o mundo perigoso de hoje é explicado pela distinção entre competição e rivalidade, uma distinção que acho que poucos acharão satisfatória. Num aparte, ela explica: “competição não é o mesmo que rivalidade – imaginem competir numa corrida em vez de passarem rasteiras deliberadamente ao rival nessa corrida”. Pensar que a competição desportiva não evolui comummente para um conflito sem limites e para a violência está certamente fora de sintonia com a história do desporto e da política internacional no século XX.

 

Da confiança na escolha racional ou teoria dos jogos, agora intelectualmente em moda e proeminente, aplicada ao comportamento das empresas capitalistas, desde a constante disputa de fronteiras, rotas marítimas e águas territoriais até o estabelecimento de alianças militares e económicas, há pouca evidência de que os países capitalistas  lutem num campo de jogo económico justo com regras fixas, transparentes e respeitadas. O “todos ganham” não faz parte do vocabulário capitalista.

 

Clegg escreve sobre “o antigo poder hegemónico dos EUA” como tendo “estado em relativo declínio” e como se o “novo – uma distribuição mais igualitária de riqueza e poder” se estivesse a desenvolver, embora lentamente. Apesar de se poder admitir alegremente que aspetos do poder e da influência dos EUA foram desafiados e atenuados, embora se possa acrescentar que os EUA mostram muitos sinais de declínio económico, político e social, isso não significa, nem é provável, que qualquer “ nova distribuição de riqueza e poder” seja mais equitativa ou justa. E o mais importante, mesmo que a riqueza e o poder fossem distribuídos de forma mais equitativ entre os  países, há poucas razões para acreditar que seriam distribuídos de forma mais equitativa dentro desses países. A multipolaridade de Clegg não pode fazer tais promessas às classes laboriosas.

 

Finalmente, há aquelas pessoaas de esquerda que lutaram ao longo da vida contra o imperialismo dos EUA e só podem ver um inimigo do nosso inimigo como nosso amigo. Existem poucas pessoas  verdadeiramente de esquerda que ainda estejam vivas, que se possam lembrar de uma época em que os EUA não eram a grande potência líder e a âncora da aliança capitalista contra o socialismo, o socialismo como uma corrente política legítima, como um rival do capitalismo global e como um polo reunindo as forças do anti-imperialismo.

 

Portanto, é difícil imaginar que o mundo não beneficie do desamparo do imperialismo norte-americano, da sua queda como grande potência. Nenhum grande poder bo nosso tempo causou danos mais mortais. Mas isso certamente mostra uma compreensão fraca do capitalismo e dos seus estágios de desenvolvimento.

 

Havia líderes nacionalistas em vários países sob a bota do imperialismo britânico no período entre guerras que saudaram a ascensão de Hitler e Tojo1, agradecendo-lhes como possíveis salvadores de centenas de anos de repressão pelo Império Britânico, o principal imperialista da época.

 

Subhas Chandra Bose, por exemplo, um líder nacionalista indiano que já foi presidente do Congresso Nacional Indiano, estava tão profundamente comprometido em derrubar o domínio britânico na Índia que colaborou ativamente e sem desculpas com os nazis e japoneses na Segunda Guerra Mundial. Essa miopia é uma versão extrema das palas usadas por muitos anti-imperialistas que não conseguem entender a lógica do imperialismo e o seu vínculo inquebrável com o capitalismo.

 

A luta contra o imperialismo norte-americano, como a luta contra o seu predecessor, o Império Britânico, acabará por ser resolvida em casa quando o povo finalmente se recusar a continuar a pagar o preço pelos grandes projetos dos seus governantes. É claro que os oprimidos pelo imperialismo desempenham um papel igualmente importante, o de resistentes; embora o imperialismo como a ferrugem, nunca dorme. É um imperativo, uma   exigência  da acumulação capitalista – se for derrotada num lugar, certamente encontrará outro lugar para satisfazer a sua luxúria. Essa dinâmica só termina quando o nosso mundo encontrar o socialismo. O pensamento piedoso de um capitalismo benigno com todos os participantes pacificamente num campo de jogo equilibrado é apenas isso – um pensamento piedoso.

 

A multipolaridade – uma noção discutida pela primeira vez por académicos burgueses em busca de ferramentas para entender a dinâmica das relações globais – foi adotada por um segmento da esquerda anti-imperialista. Embora certamente descreva uma tendência real emergente, como Jenny Clegg reconhece, muitas vezes tem sido apresentada como um estádio anti-imperialista mudando o equilíbrio de forças mundial na direção de um mundo melhor.

 

Tenho dito que iste é um recuo em relação ao imperialismo clássico como foi entendido por V.I. Lenine e os seus seguidores. No contexto de um mundo instável em desordem ideológica e sofrendo crises incalculáveis, não há garantias de que os polos que emergem ou desafiam o superpolo pós-Guerra Fria estejam um passo à frente ou um passo atrás simplesmente porque são polos alternativos. Sem dúvida, qualquer resistência que enfraqueça a assimetria de poder que os EUA detêm deve ser bem-vinda. Mas não devemos presumir que todo oponente se tornará uma força de estabilidade, justiça e paz. Saber o que sabemos sobre a história do capitalismo desde a  sua primeira era expansionista, acumulando capital humano involuntário para explorar as riquezas do novo mundo, deve moderar as nossas expectativas sobre novos rivais do imperialismo norte-americano.

 

Com a queda da União Soviética como pano de fundo e a incerteza deixada no seu rasto, devemos ser cautelosos ao enaltecer quaisquer novos candidatos ao papel de arquirrival não apenas do imperialismo dos EUA, mas de todo o imperialismo, bem como a sua génese, o capitalismo.

 

Enquanto a esquerda disputa futilmente a vítima e o vitimizador, os trabalhadores estão a morrer desnecessariamente, a padecer sofrimentos horríveis, falta de habitação e desespero – todos os produtos da guerra moderna. As vidas da classe operária não devem ser reféns em debates ideológicos. Os acontecimentos decidirão quem tem o entendimento correto do imperialismo, mas a história não será gentil com aqueles que falharem, entretanto, em   opor-se à guerra e procurar uma solução pacífica.

1Hideki Tojo (1884 - 1948) foi um  general do Exército Imperial Japonês  e criminoso de guerra condenado, que serviu como primeiro-ministro do Japão  durante a maior parte da Segunda Guerra Mundial. Assumiu vários outros cargos, incluindo Chefe do Estado Maior do Exército Imperial antes de ser retirado em julho de 1944. Durante os seus anos no poder, a sua  ação política foi marcada pela extrema violência perpetrada pelo Estado em nome do ultranacionalismo japonês.

 

Fonte: https://mltoday.com/the-peace-question-and-imperialism/, publicado e acedido em 06.06.2022

 

Tradução de TAM

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