“Na Indonésia, o extermínio de um milhão de pessoas ainda borbulha à superfície”
No seu primeiro livro, O Método Jacarta, o jornalista norte-americano Vincent Bevins sugere um reenquadramento da Guerra Fria. No centro da história põe o extermínio de comunistas no chamado “Terceiro Mundo”, na segunda metade do século XX, para analisar a forma como esses massacres moldaram o passado e continuam a moldar o presente.
Magdalena Kastinah era uma rapariga como tantas outras. Filha de camponeses, era muçulmana como a maior parte dos habitantes da ilha de Java, na Indonésia; gostava de ouvir música como qualquer adolescente. Mas, quando tinha apenas 15 anos, a mãe morreu e teve de começar a trabalhar. Um ano mais tarde, incapaz de juntar dinheiro na aldeia onde vivia, mudou-se para a capital, Jacarta. Dizia-se que era mais fácil encontrar emprego lá. E era.
Passado pouco tempo, Kastinah começou a trabalhar numa fábrica de camisolas. As condições eram boas, graças em grande parte à SOBSI, a maior rede sindical do país, afiliada ao Partido Comunista Indonésio (PKI). Apesar de nunca se ter interessado por política, juntou-se ao sindicato. “Eles apoiavam-nos, protegiam-nos e a sua estratégia funcionava”, disse. “Funcionava mesmo. Era o que sabíamos.” Kastinah não imaginava que, anos mais tarde, em Outubro de 1965, o facto de pertencer a um sindicato a poria atrás das grades. Nem que os polícias, supostamente encarregados de protegê-la, a fossem violar apenas por ser sindicalizada e, na cabeça deles, uma bruxa comunista. Muito menos que ainda hoje, com mais de 70 anos, fosse uma pária, sem família, nem uma rede de apoio.
Magdalena é uma das personagens reais que povoam O Método Jacarta – A cruzada anticomunista de Washington e o programa de assassínio maciço que moldou o nosso mundo, o primeiro livro do jornalista norte-americano Vincent Bevins e o resultado de um trabalho de campo empático e de uma pesquisa metódica e bem documentada — mais de 30 páginas são ocupadas por notas bibliográficas. À medida que viramos as suas folhas, acompanhamos as histórias de cidadãos anónimos e de líderes mundiais, e viajamos da Indonésia à Guatemala, passando pelo Congo, o Brasil ou o Chile, mas também por capitais europeias e centros de decisão norte-americanos.
A história começa em 1945, quando está a despontar “uma nova era americana”, e desenrola-se ao longo da Guerra Fria. Contudo, o que interessa ao autor não é o embate ideológico entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético. O que lhe importa é o que se passou no chamado “Terceiro Mundo” (um termo que, originalmente, não tinha quaisquer conotações negativas; era sinónimo de esperança e emancipação), nas antigas colónias, onde milhões morreram em conflitos quentes durante a suposta Guerra Fria.
Um desses confrontos — se é que podemos chamar “confronto” ao assassínio e aprisionamento de milhões de pessoas que não pegaram em armas para combater os seus algozes — teve lugar na Indonésia, em meados da década de 60. E, para Vincent Bevins, foi um dos momentos-chave da Guerra Fria, apesar de hoje, no Ocidente, pouca gente saber o que se passou no arquipélago e menos ainda que essa onda de violência inspirou e foi replicada, de forma cirúrgica, por várias ditaduras na América Latina nos anos e décadas seguintes.
“A violência que ocorreu no Brasil e na Indonésia, e em 21 outros países por todo o mundo, não foi acidental, nem incidental, para os principais acontecimentos da história mundial”, escreve, na introdução do livro. “As mortes não foram ‘a sangue-frio e sem sentido’, apenas erros trágicos que não mudaram nada. Foram precisamente o oposto. A violência foi efectiva, uma parte fundamental de um processo mais alargado. Sem uma perspectiva global da Guerra Fria e dos objectivos dos EUA em todo o mundo, os acontecimentos são inacreditáveis, ininteligíveis, ou muito difíceis de processar.”
Na Indonésia, entre 1965 e 1966, depois de uma revolta militar falhada, a chamada “Operação Jacarta” exterminou pelo menos um milhão de pessoas (comunistas, sobretudo). Talvez até três milhões, nas contas de um militar próximo do ditador Suharto. Muitas mais foram presas e torturadas. “E esses assassinatos foram apoiados a cada passo pelos EUA”, sublinha Vincent Bevins. Em poucos meses, o Partido Comunista Indonésio, até então o terceiro maior do mundo e a principal força política daquele país, tinha desaparecido.
Alguns anos mais tarde, em Santiago do Chile, começou a ler-se nas paredes grafitos que anunciavam “Jacarta vem aí”. E veio: a 11 de Setembro de 1973, os militares liderados por Augusto Pinochet derrubaram o Governo socialista de Salvador Allende. Nas semanas seguintes, milhares de esquerdistas morreram no Chile. Nos anos seguintes, no Chile e nos outros países do Cone Sul do continente americano envolvidos na Operação Condor, uma campanha de repressão política e terror estatal, com a bênção dos Estados Unidos, terão morrido quase 100 mil.
Para o autor, contar estas histórias, e mostrar como estes acontecimentos moldaram o nosso mundo e ajudaram a garantir a vitória do bloco capitalista na Guerra Fria, era importante. Tão importante que se despediu do reputado The Washington Post para se dedicar a tempo inteiro a um livro que ainda nem sabia que forma ia tomar. “Só sabia que ia ser um projecto muito vasto, que me ia ocupar muito e que precisava de me dedicar a isso a tempo inteiro durante um bom bocado.”
Hoje, não parece arrepender-se dessa decisão. Apesar de não ter sido um grande sucesso comercial, O Método Jacarta foi considerado um dos melhores títulos de 2020 por meios de comunicação social como o britânico Financial Times ou a rádio norte-americana NPR, e continuam a vender-se tantas cópias, passados dois anos, como na altura em que foi publicado. Além disso, já foi traduzido para “seis ou sete línguas” — a edição portuguesa, com a chancela da Temas e Debates, é a mais recente — e Bevins garante que há pelo menos mais seis traduções confirmadas, inclusive para indonésio. “Uma grande editora, a maior do país, fez uma oferta pelos direitos de edição. Decidimos não os vender, porque achámos que estavam só a adquirir os direitos para enterrarem o livro”, explica. “Mas, entretanto, a Marjin Kiri, uma pequena editora, vai traduzi-lo.”
O Método Jacarta – A cruzada anticomunista de Washington e o programa de assassínio maciço que moldou o nosso mundo
Autoria: Vincent Bevins
Editora: Temas & Debates
416 págs., 17,91€
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O que o levou a escrever O Método Jacarta?
Trabalhei durante seis anos como correspondente [do LA Times] no Brasil, entre 2010 e 2016. E em 2017 fui morar para Jacarta, para cobrir o Sudeste asiático para o The Washington Post. Achava que ia concentrar-me na actualidade, mas percebi duas coisas muito depressa. Primeiro, que era impossível contar a história da Indonésia contemporânea, e da maior parte do Sudeste asiático, sem abordar o que se passou em 1965. O extermínio de aproximadamente um milhão de pessoas continuava a borbulhar à superfície. E, em segundo lugar, que aquela história tinha ligações com outras partes do mundo onde tinha trabalhado, com países como o Brasil e o Chile. Porém, a maior parte do mundo não estava familiarizada com ela, especialmente nos Estados Unidos e nos países do Atlântico Norte — aquilo a que chamamos “o Ocidente”.
E muitas pessoas que estavam familiarizadas com os massacres ouviram falar neles pela primeira vez há cerca de dez anos, no documentário O Acto de Matar, de Joshua Oppenheimer. Como é possível que mais de um milhão de pessoas tenha morrido e isso tenha sido apagado da memória e dos livros de História ocidentais?
Acho que para explicar completamente uma lacuna tão grande na nossa memória histórica é necessário ter em consideração diferentes factores. Um deles foi o racismo. Havia a ideia de que a vida valia menos na Ásia, de que esse tipo de coisas estava sempre a acontecer lá. Só que isso é absolutamente errado. Nunca tinha acontecido uma coisa assim.
Quais são as outras explicações?
O segundo factor que explica este esquecimento é o sucesso da operação levada a cabo pelo Estado de que o general Suharto se apoderou. Com a ajuda dos Estados Unidos e também do Reino Unido, ele espalha a história de que o Partido Comunista Indonésio tinha sido o responsável pela violência e que o que aconteceu depois foi apenas uma espécie de erupção espontânea de confrontos entre as pessoas no terreno, e toda a gente acredita. Outra coisa que tem de ser entendida é que, na concepção liberal norte-americana da história mundial, um país pender para o campo ocidental é visto como natural e positivo. A Indonésia fez o que todos no Ocidente, subconscientemente, achavam que o Sul global devia fazer, que era alinhar-se com os Estados Unidos. Portanto, não era preciso fazer mais perguntas. A quarta razão é que o Vietname começa logo a seguir. Os soldados americanos estão a morrer, está a ser um desastre. A guerra torna-se uma grande questão política doméstica e ofusca tudo o que acontece no Sudeste asiático. Isto, apesar de, ao nível da política externa, a Indonésia ser uma peça mais importante do puzzle na Ásia do que o Vietname.
Quando diz que Suharto convenceu as pessoas de que a culpa era dos comunistas, está a aludir ao golpe de 30 de Setembro de 1965, certo? Ainda hoje há dúvidas sobre o que se passou. O livro avança algumas teorias, mas em qual acredita?
É importante, em primeiro lugar, dizer que não podemos chegar a uma conclusão fundamentada sobre o que realmente foi o Movimento 30 de Setembro. Não podemos sequer fazer suposições educadas sobre a sua natureza e as suas intenções, sem termos acesso a documentos classificados pela CIA e pelos militares indonésios. Não quero estar a especular. O que posso fazer é explicar o contexto em que as coisas aconteceram.
E que contexto é esse?
Depois de uma revolução bem sucedida que impediu a Holanda de reconquistar o país entre 1945 e 1949, o Partido Comunista Indonésio integrou-se na democracia multipartidária nos primeiros anos da Indonésia. Era um partido moderado, sem armas, nem uma teoria de luta armada. Acreditava em ganhar eleições democraticamente. Os arquivos da CIA e do MI-6 indicam que, a partir de 1958, em qualquer eleição justa, o PKI teria obtido o primeiro lugar. Mas havia uma rivalidade entre os comunistas e os militares. Hoje sabemos que, de uma forma ou de outra, os serviços secretos ocidentais estavam a tentar fomentar uma altercação entre esses dois grupos, em 1964 e 1965, sabendo muito bem o que acontece quando um grupo desarmado enfrenta um grupo armado. Mas não sabemos a relação entre esses esforços para gerar um confronto e as motivações das pessoas que sequestraram seis generais [indonésios] a 30 de Setembro; nem quem tomou as decisões que culminaram na sua morte. Contudo, sabemos que as potências ocidentais estavam a tentar fomentar um confronto que lhes seria favorável, e foi exactamente isso que aconteceu.
Também sabemos que, por acaso, o general Suharto não foi raptado. E que era próximo de alguns dos militares envolvidos no Movimento 30 de Setembro...
Suharto conhecia bem os cabecilhas do Movimento 30 de Setembro. E tinha uma história complicada com algumas pessoas que morreram e foram afastadas da liderança nessa data. Porém, qualquer tentativa de explicar o que foi o Movimento 30 de Setembro e quais eram os seus objectivos gera novas perguntas. Por isso tento não me aventurar por aí. Por exemplo, John Roosa, um grande académico, avança uma teoria, baseada numa investigação profunda e num estudo cuidadoso dos materiais existentes. Mas, mais uma vez, há muitas perguntas às quais ele não responde. O que fez em concreto o Movimento 30 de Setembro? Quem eram eles? Quais eram os seus planos? Como é que os generais morreram?
Não sabemos.
Pois. E, por isso, tentei concentrar-me tanto quanto possível naquilo que podemos afirmar com base nos documentos a que temos acesso depois de 56 anos de investigações levadas a cabo por pessoas que percebem muito mais do assunto do que eu, e contar uma história global baseada em provas sólidas, que mostrasse ao leitor comum como estes acontecimentos moldaram não só a história da Indonésia, mas de todo o século XX.
Essa é uma pergunta fantástica. Acho que as respostas estão no livro. Todavia, compreendo que não seja fácil assimilar uma reviravolta tão chocante, tão extrema. No início de 1965, um quarto do país, ou mais, identificava-se muito explicitamente com a esquerda comunista. Um ou dois anos depois, quase ninguém admite que um dia pensou assim. Acho que há duas explicações para isto, de um modo algo simplista. A primeira prende-se com a propaganda, e a segunda com os desaparecimentos. A partir de Outubro de 1965, todos os meios de comunicação do país são controlados por Suharto e reproduzem a narrativa oficial sobre o Partido Comunista ser profundamente pérfido, quase satânico. E o facto de essa narrativa ser aceite pelos governos e meios de comunicação ocidentais muda por completo a maneira como as pessoas pensam e podem falar sobre o que aconteceu. É assim que repressão funciona, e que é reproduzida em tantos países da América Latina nos anos seguintes. É verdade que morreram quase um milhão de pessoas — um militar gabou-se de que tinham matado três milhões. Mas mesmo três milhões é menos do que 20 ou 25 milhões, que era o número de pessoas ligadas ao Partido Comunista Indonésio.
Muito menos. É isso que não encaixa bem.
É aí que entram os desaparecimentos, uma coisa que é terrível de enfrentar. Passei muito tempo a falar sobre esse processo psicológico com as pessoas que passaram por este trauma... Quando se mata o pai e o irmão de alguém, essa pessoa sabe que eles estão mortos e pode querer vingar-se. Mas se o pai e o irmão se entregarem, supostamente para um interrogatório, e nunca mais ninguém tiver notícias deles, as pessoas ficam paralisadas pelo medo. Porque acham que, se fizerem algo, se disserem algo, o pai e o irmão podem morrer. Ao mesmo tempo que isto acontece, todas as pessoas que perderam familiares e amigos e que de alguma forma simpatizavam com o Partido Comunista Indonésio começaram a ouvir, todos os dias, que o partido era satânico. Em última análise, tornou-se terrivelmente claro que Suharto tinha vencido. Podia aceitar-se a nova realidade ou ser devorado por ela.
Um dos relatos que mais impressiona no livro é a história da Magdalena, que foi violada e torturada na prisão e hoje continua a ser tratada como uma pária. Parece que os indonésios ainda não sabem o que realmente aconteceu. Como é possível?
Só depois da estreia de O Acto de Matar [2012, de Joshua Oppenheimer] é que houve um interesse renovado em tentar contar esta história, apesar de existirem dezenas de milhões de vítimas no país; familiares e amigos de pessoas que morreram ou foram presas e torturadas. Mesmo os activistas que muito corajosamente me ajudaram ainda hoje não podem admitir que o avô era comunista e que o mataram. Isso pode causar-lhes problemas, quando forem à procura de trabalho ou podem ser elas próprias consideradas comunistas. Como se o comunismo fosse um traço genético. Dizer que alguém é um simpatizante comunista ainda é uma táctica muito útil. Assisti a isto quando estava no país, em 2017. Um grupo de investigadores que estava a tentar visitar foi cercado e ameaçado de morte durante uma noite inteira. Isto é algo que nunca foi resolvido. É muito diferente do que se passou em países como o Chile e a Argentina, que passaram por um processo de reconciliação nacional e análise histórica. Entristece-me muito dizer isto, mas provavelmente os indonésios só vão confrontar-se com a sua própria história depois de a maioria dos sobreviventes, das vítimas, ter morrido.
O comunismo continua a ser criminalizado na Indonésia?
É ilegal.
Mas, por exemplo, um membro do Partido Comunista Português pode ir à Indonésia. Não?
Se for à praia, por exemplo em Bali, e tiver vestida uma T-shirt com a foice e o martelo pode ser preso. Ou deportado.
Então e se só tiver o cartão de membro do partido na carteira?
É melhor não mostrar a carteira a ninguém, porque pode ser preso.
Parece inacreditável.
Sim. O Eduardo Bolsonaro, talvez o mais ideologicamente coerente dos filhos do [Presidente brasileiro Jair] Bolsonaro, apresentou um projecto-lei para criminalizar o comunismo no Brasil, e um dos países que deu como exemplo foi a Indonésia. Esta lei entrou em vigor em 1966 e ainda pode causar-me sarilhos – porque contar a verdade sobre o que passou em 1965 pode ser considerado uma apologia do marxismo-leninismo pelos juízes. Se alguém apresentasse queixa de mim, é muito possível que me acontecesse alguma coisa. Quer dizer, eu sou dos Estados Unidos, posso sempre abandonar o país. Mas isto torna a vida muito difícil para os activistas e investigadores indonésios, que são muito mais corajosos do que eu e estão há mais tempo a denunciar o que se passou.
O Método Jacarta centra-se muito nas pessoas, nas vítimas. Há um esforço para as humanizar e contar as suas histórias. Por alguma razão em particular?
Não queria escrever um livro salaz, obcecado com tortura e violência e sangue. E também não queria escrever sobre decisões ocidentais e as massas desumanizadas que são destruídas por elas. Quis dar a conhecer pessoas que eram optimistas, que tinham fé no futuro e acreditavam na reconstrução do sistema global. E deixar claro que foi isso que levou ao seu extermínio, porque essa é uma parte muito importante desta história. As pessoas têm de perceber que a vasta maioria das vítimas foi morta por aquilo em que acreditava, e perceber no que é que acreditava – porque isso torna esta história muito mais chocante. E fundamental para perceber o mundo que ganhou forma posteriormente.
Uma grande parte do livro prende-se com a globalização do chamado “método Jacarta”, que foi reproduzido em todo o mundo. E isso levanta uma questão: em Portugal e em Espanha, por exemplo, os comunistas foram alvo de violência, prisão, tortura e morte muito antes de isso ocorrer no Sul global. O que distingue a violência de Jacarta da repressão anticomunista do Estado Novo ou do franquismo?
Os leitores espanhóis fizeram a mesma pergunta: porque é que eu não falei do fascismo na Península Ibérica? Da violência anticomunista cometida na primeira metade do século XX? E de facto os esquadrões da morte indonésios inspiraram-se muito no fascismo europeu. Eles achavam que estavam a reproduzir a repressão anticomunista da Europa ocidental. Começo o livro em 1945 para me focar na construção de uma ordem global liderada pelos Estados Unidos, na Guerra Fria e as suas consequências. Porém, se tivesse mais espaço, e tivesse sabido desde o início que o livro ia sair em Espanha e Portugal, teria começado a história umas décadas antes – porque houve realmente um processo de aprendizagem, de partilha de tácticas e ideologias entre os países, e isso começou antes de 1945.
Mas em Portugal, apesar da repressão, o Partido Comunista nunca desapareceu. Antes pelo contrário, todos os anos ganhava novos membros, na clandestinidade. Não é por acaso que os chilenos ou os brasileiros falam em Jacarta, apesar da maior proximidade de Espanha e Portugal. Porque é que isso acontece?
Porque, embora Espanha e Portugal estivessem longe de ser países ricos na primeira metade do século XX, os níveis de violência na Europa eram muito diferentes do que era aceitável no mundo colonial ou pós-colonial, onde os países no topo do sistema global podiam facilmente ignorar a violência. Como referiu, a esquerda em Portugal e em Espanha não foi dizimada da mesma maneira que foi na América do Sul. Ou na Indonésia, onde hoje ninguém admite que alguma vez foi comunista. Quer dizer, admitem, mas só se te conhecerem muito bem. Tive de entrevistar as pessoas durante meses até se sentirem à vontade para admtir isso. E mesmo assim, muitas nunca quiseram admitir certas coisas.
Se olharmos para a política como uma disputa pelo poder, e para a geopolítica como a disputa entre os Estados mais poderosos a competirem pela supremacia global, faz sentido categorizar a Guerra Fria como uma batalha entre o Primeiro e o Segundo Mundo, como um confronto entre Washington e Moscovo. No entanto, se acreditarmos que todas as vidas são igualmente importantes, se acreditarmos em valores e direitos humanos universais, se acreditarmos que todas as partes do globo são dignas de consideração, quando se avaliam épocas históricas, faz mais sentido afirmar que a Guerra Fria se disputou entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. E essa não é uma conclusão à qual chegam apenas pensadores radicais ou marxistas-leninistas. O historiador Odd Arne Westad, de Harvard, defende que “num sentido histórico, e especialmente na perspectiva do Sul [global], a Guerra Fria foi uma continuação do colonialismo por meios ligeiramente diferentes”. É essa a história que acho que deve ser contada, e que conto no livro.
Quão determinante para o desfecho da Guerra Fria foi o extermínio indonésio?
Há uma narrativa muito simples, e que não está errada: os Estados Unidos e os seus aliados ganharam a Guerra Fria, porque a União Soviética, acidentalmente, se autodestruiu e desabou. Mas para explicar a forma que a ordem global assumiu, e o mundo em que vivemos hoje, os golpes de Estado de 1964, no Brasil, e 1965, na Indonésia, foram muito importantes. E afectaram mais pessoas do que o colapso da União Soviética em 1991.
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