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sábado, 13 de maio de 2023

 Eduardo Grüner
Leituras culpadas
marx(ismos) e a práxis do conhecimento∗∗
Professor Titular de Teoria Política, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de
Buenos Aires, e Professor Titular de Antropologia da Arte, Faculdade de Filosofia e
Letras, UBA.
∗∗Tradução de Simone Rezende da Silva 

Um critério fundante: a práxis

 
(,,,) “Até agora os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo; trata-se agora é de
transformá-lo”. A famosíssima tese XI sobre Feuerbach pode ser tomada, entre outras
coisas, como um enunciado de epistemologia radical, ou como um ultra condensado
“discurso do método” de Marx. Demasiado amiúde, por desgraça, tem sido lido
unilateralmente, no espírito de um materialismo vulgar ou um hiperativismo mais ou
menos espontaneísta que desfaz todo trabalho “filosófico” de interpretação (vale dizer,
ao menos em certo sentido do que já falamos sobre produção de conhecimento) a favor
da pura “transformação” social e política. Não faz falta enfatizar quão alijada das
intenções de Marx –um dos homens mais cultos e mais teoricamente sofisticados da
modernidade ocidental– pode estar este tipo de antiintelectualismo estreito. Contudo, o
que aqui nos importa é outra coisa. Na verdade, Marx está dizendo em sua tese algo
infinitamente mais radical, mais profundo, inclusive mais “escandaloso” que a idiotice
de abandonar a “interpretação do mundo”: está dizendo que:
1] a transformação do mundo é a condição de uma interpretação correta e
“objetiva”; e
2] vice-versa, dada essa condição, a interpretação é, de certa forma, uma
transformação da realidade, que implica, em um sentido amplo, mas estrito, um
ato político, e não meramente “teórico”.
De outra maneira, é o que encerra o conceito de práxis (que Marx toma, obviamente,
dos antigos gregos). A práxis não é simplesmente, como se costuma dizer, a “unidade”
da teoria e a prática: dito assim, isto suporia que “teoria” e “prática” são duas entidades
originais e autônomas, preexistentes, que logo a práxis (inspirada pelo gênio de Marx,
por exemplo) viria “juntar” de alguma forma e com certos propósitos. Porém, sua lógica
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é exatamente a inversa: é porque sempre há práxis –porque a ação é a condição do
conhecimento e vice-versa, porque ambos pólos estão constitutivamente co-implicados–
que podemos diferenciar “momentos” (lógicos, e não cronológicos nem ontológicos),
com sua própria especificidade e “autonomia relativa”, mas ambos no interior de um
mesmo movimento. E este movimento é o movimento (na maior parte das vezes
“inconsciente”) da própria realidade (social e histórica), não o movimento, nem do puro
pensamento “teórico” (ainda que fosse na cabeça de um Marx) nem da pura ação
“prática” (ainda que fosse a dos mais radicais “transformadores do mundo”).
O que Marx faz –essa é sua “genialidade”– é simplesmente mostrar que esse é o
movimento da realidade, e denunciar que certo pensamento hegemônico (a “ideologia
dominante”, para simplificar) tende a ocultar essa unidade profunda, a manter
separados os “momentos”, promovendo uma “divisão social do trabalho” (“manual”
versus “intelectual”, para dizer o básico), com o objetivo de legitimar o universo teórico
da pura “interpretação” como patrimônio do Amo, e o universo prático da pura “ação”
como patrimônio do Escravo, já que a classe dominante sabe perfeitamente –mesmo
quiçá não sempre o saiba conscientemente– que nem a pura abstração da teoria, nem o
puro “ativismo” da prática, tem realmente conseqüências materiais sobre o estado de
coisas do mundo. Ou, em outras palavras, que não produz verdadeiro conhecimento da
realidade, no sentido de Marx. Nunca melhor ilustrada esta tese que na famosa alegoria
que constroem Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do esclarecimento, a propósito
do episódio das Sereias na Odisséia de Homero: o astuto e racionalizador capitão
Ulisses –metaforicamente, o Burguês–, atado ao mastro de seu barco, pode escutar
(“interpretar”) o canto das sereias, porém não pode atuar; os ansiosos marinheiros –
metaforicamente, o Proletariado–, com seus ouvidos tampados pela cera que Ulisses
lhes administrou, podem atuar, remar o barco, mas não podem escutar. Nenhum dos
dois pode realmente conhecer essa fascinante música: Ulisses não quer fazê-lo –quer
simplesmente recebê-la, gozá-la passivamente–, os marinheiros não podem fazê-lo
ocupados, “alienados” em sua tarefa prática, nem sequer inteiram-se de sua existência.
Desta forma: essa tese de Marx é, desde já, e como dissemos, um enunciado
político-ideológico revolucionário. Porém, é ao mesmo tempo (obedecendo à própria
lógica da práxis) um enunciado filosófico-epistemológico da máxima transcendência. O
é no sentido no qual Marx fala de uma realização da filosofia, isto é, em um triplo
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sentido: 1) é sua culminação; 2) é sua fusão com a realidade material; 3) é sua
(paradoxal) dissolução, ao menos em sua forma tradicional, “clássica”, que em sua
época –e na própria biografia intelectual do primeiro Marx– não é outra que a da
(riquíssima e complexa) tradição idealista alemã que vai –para apenas mencionar os
nomes mais paradigmáticos– de Kant a Hegel, passando por Fichte e Schelling. (...)

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