Eduardo Grüner∗
Leituras culpadas
marx(ismos) e a práxis do conhecimento∗∗
∗ Professor Titular de Teoria Política, Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de
Buenos Aires, e Professor Titular de Antropologia da Arte, Faculdade de Filosofia e
Letras, UBA.
«Porém que nos torna a colocar no centro de nossa questão: o conhecimento
objetivo da realidade é impossível? O próprio Marx em sua oposição ao idealismo, caiu
na armadilha do positivismo, de um “objetivismo” tão ingênuo como o dos materialistas
vulgares?
Desta forma, não: ainda que os problemas aqui apresentados sejam
inumeravelmente mais complexos do que poderemos abarcar nesta exposição,
sustentamos que, mesmo sendo algo esquematicamente (para um maior aprofundamento
não restará remédio senão remeter à bibliografia), sim há em Marx –e desde o início em
muitos dos “marxistas ocidentais” posteriores– elementos suficientes a partir dos quais
abrir um leque de hipóteses de trabalho, novamente, não para resolver definitivamente,
mas sim para colocar em seus justos termos, essa problemática. Isso sim, com duas
condições:
1] A partir das quais, acabamos de sublinhar: é inútil, além de danoso, pretender
encontrar já acabados de uma vez para sempre esses elementos no próprio
Marx; semelhante pretensão somente pode conduzir, no melhor dos casos, a
preguiça intelectual, e no pior, a mais grosseira rigidez dogmática;
2] para compreender a verdadeira importância –e a lógica de funcionamento–
desses elementos, é necessário deslocar o que poderíamos chamar um discurso
“binário” (e profundamente “ideológico” no mal sentido do termo), que pensa a
questão do conhecimento sobre o eixo dos “pares de oposição” mutuamente
excludentes (exemplo: sujeito/objeto; material/simbólico; pensamento/ação; indivíduo/sociedade; estrutura/história, etc.): melhor se trataria de pensar em
cada caso a tensão dialética, o conflito entre esses “pólos”, que somente podem
ser percebidos como tais precisamente porque a relação entre eles é o que os
constitui, o que lhes destina seu lugar.
Tendo em conta essas duas premissas básicas, podemos começar a abordar a questão.
Um critério fundante: a práxis
“Até agora os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo; trata-se agora é de
transformá-lo”. A famosíssima tese XI sobre Feuerbach pode ser tomada, entre outras
coisas, como um enunciado de epistemologia radical, ou como um ultra condensado
“discurso do método” de Marx. Demasiado amiúde, por desgraça, tem sido lido
unilateralmente, no espírito de um materialismo vulgar ou um hiperativismo mais ou
menos espontaneísta que desfaz todo trabalho “filosófico” de interpretação (vale dizer,
ao menos em certo sentido do que já falamos sobre produção de conhecimento) a favor
da pura “transformação” social e política. Não faz falta enfatizar quão alijada das
intenções de Marx –um dos homens mais cultos e mais teoricamente sofisticados da
modernidade ocidental– pode estar este tipo de antiintelectualismo estreito. Contudo, o
que aqui nos importa é outra coisa. Na verdade, Marx está dizendo em sua tese algo
infinitamente mais radical, mais profundo, inclusive mais “escandaloso” que a idiotice
de abandonar a “interpretação do mundo”: está dizendo que:
1] a transformação do mundo é a condição de uma interpretação correta e
“objetiva”; e
2] vice-versa, dada essa condição, a interpretação já é, de certa forma, uma
transformação da realidade, que implica, em um sentido amplo, mas estrito, um
ato político, e não meramente “teórico”»
in A Teoria Marxista Hoje, coletânea de textos
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