Michael Löwy∗
Marxismo e religião: ópio do povo? ∗∗
*Filósofo e diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França
(CNRS).
∗∗ Tradução de Rodrigo Rodrigues
(excertos)
(...) Mas seus escritos mais importantes sobre religião se encontram nos Cadernos
do Cárcere. Apesar de sua natureza fragmentária, pouco sistêmica e alusiva, estes
contêm observações penetrantes. Sua irônica crítica às formas conservadoras de religião
–particularmente o ramo jesuítico do catolicismo, pela qual sente sincera aversão– não
lhe impediu de perceber também a dimensão utópica das idéias religiosas:
a religião é a utopia mais gigante, a mais metafísica que a história jamais
conheceu, desde que é a tentativa mais grandiosa de reconciliar, em forma
mitológica, as reais contradições da vida histórica. Afirma, de fato, que o gênero
humano tem a mesma ‘natureza’, que o homem [...] como criado por Deus, filho
de Deus, é portanto irmão de outros homens, igual a outros e livre entre e como
outros homens [...]; mas também afirma que tudo isto não pertence a este mundo
mas sim a outro (a utopia). Desta forma, as idéias de igualdade, fraternidade e
liberdade entre os homens [...] estiveram sempre presentes em cada ação radical
da multidão, de uma ou outra maneira, sob formas e ideologias particulares
(Gramsci, 1971).
Gramsci também insistiu nas diferenciações internas da Igreja segundo orientações
ideológicas –liberal, moderna, jesuítica e correntes fundamentalistas dentro da cultura
católica– e segundo as diferentes classes sociais: “toda religião [...] é realmente uma
multiplicidade de distintas e às vezes contraditórias religiões: há um catolicismo para os
camponeses, um para a pequena burguesia e trabalhadores urbanos, um para a mulher, e
um catolicismo para intelectuais”. Além disso, acredita que o cristianismo é, sob certas
79 Gramsci parece estar também interessado, no começo da década de 20, em um movimento camponês
liderado pela esquerda católica, Guillo Miglioli.
As observações de Gramsci são ricas e estimulantes, mas em última análise
seguem o padrão clássico marxista de analisar a religião. Ernst Bloch é o primeiro autor
marxista que trocou radicalmente a estrutura teórica –sem abandonar a perspectiva
marxista e revolucionária. De forma similar a Engels, distinguiu duas correntes sociais
opostas: por um lado, a religião teocrática das Igrejas oficiais, ópio dos povos, um
aparelho mistificador a serviço dos capitalistas; pelo outro, a secreta, subversiva e
herética religião dos albigenses, husitas, de Joaquim de Flores, Thomas Münzer, Franz
von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoi. Entretanto, distintamente de Engels,
Bloch negou-se a ver a religião unicamente como um “manto” de interesses de classe:
criticou expressamente esta concepção, enquanto a atribuía somente a Kautsky. Em suas
manifestações contestadoras e rebeldes, a religião é uma das formas mais significativas
de consciência utópica, uma das expressões mais ricas de O Principio Esperança.
Através de sua capacidade de antecipação criativa, a escatologia judaico-cristã –
universo religioso favorito de Bloch– contribui a dar forma ao espaço imaginário do
ainda não–existente (Bloch, 1959; 1968)
A obra de Lucien Goldmann é outra tentativa de abrir o caminho para a
renovação do estudo marxista da religião. Embora de uma inspiração muito distinta da
de Bloch, estava também interessado no valor moral e humano da tradição religiosa. Em
seu livro O Deus oculto (1955) desenvolveu uma muito sutil e criativa análise
sociológica da heresia jansenista (incluindo o teatro de Racine e a filosofia de Pascal)
como uma visão trágica do mundo, expressando a peculiar situação de um estrato social
(a nobreza togada) na França do século XVII. Uma de suas inovações metodológicas é
relacionar a religião não só aos interesses da classe, mas também a sua total condição
existencial: examina, portanto, como este estrato legal e administrativo, entre sua
dependência de e sua oposição à monarquia absoluta, deu uma expressão religiosa a
seus dilemas na visão trágica do mundo do jansenismo. De acordo com David
McLellan, esta é a “análise específica mais impressionante da religião produzida pelo
marxismo ocidental” (McLellan, 1987: 128).
A parte mais surpreendente e original do trabalho é, entretanto, a tentativa de
comparar –sem assimilar um ao outro– crença religiosa e crença marxista: ambas têm
em comum o rechaço do puro individualismo (racionalista ou empirista) e a crença em
valores trans-individuais –Deus para a religião, a comunidade humana para o
socialismo. Em ambos os casos, a crença está apoiada em uma aposta –a aposta
pascaliana na existência de Deus e a marxista na libertação da humanidade– que
pressupõe o perigo do fracasso e a esperança do êxito. Ambos implicam algumas
crenças fundamentais que não são demonstráveis no nível exclusivo de julgamentos
80 Ver, de minha autoria, os artigos “Revolution against Progress: Walter Benjamin's Romantic
Anarchism” (1985) e “Religion, Utopia and Countermodernity: The Allegory of the Angel of History in
Walter Benjamin” (1993).
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objetivos. O que os separa é obviamente o caráter supra-histórico da transcendência
religiosa:
A crença marxista é uma crença no futuro histórico que o ser humano cria por si
mesmo, ou melhor dizendo, que devemos fazer com nossa atividade, uma
“aposta” no êxito de nossas ações; a transcendência da que é objeto esta crença
não é nem sobrenatural nem trans-histórica mas sim supra-individual, nada mais
mas tampouco nada menos (Goldmann, 1955: 99).
Sem pretender de maneira nenhuma “cristianizar o marxismo”, Lucien Goldmann
introduziu, graças ao conceito de crença, uma nova maneira de ver a relação conflitiva
entre convicção religiosa e ateísmo marxista.
A idéia de que existe um campo comum entre o espírito revolucionário e a
religião já foi sugerida, em uma forma menos sistemática, pelo peruano José Carlos
Mariátegui, o marxista latino-americano mais original e criativo. No ensaio “O Homem
e o mito” (1925), propôs uma visão heterodoxa dos valores revolucionários:
Os burgueses intelectuais ocupam seu tempo em uma critica racionalista do
método, da teoria e da técnica revolucionária. Que mal-entendido! A força dos
revolucionários não está baseada em sua ciência, mas sim em sua crença, sua
paixão, seu desejo. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito
[...] A emoção revolucionária é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se
mudaram do céu para a terra. Não são mais divinas, mas sim humanas e sociais”
(Mariátegui, 1971a: 18-22).
Celebrando Georges Sorel, o teórico do sindicalismo revolucionário, como o primeiro
pensador marxista em entender o “caráter religioso, místico e metafísico do socialismo”,
escreve poucos anos depois em seu livro Defesa do marxismo (1930):
Graças a Sorel, o marxismo pôde assimilar os elementos e aquisições substanciais
das correntes filosóficas que vieram depois de Marx. Substituindo as bases
positivistas e racionalistas do socialismo em seu tempo, Sorel encontrou em
312
Bergson e nas idéias pragmáticas que fortaleceram o pensamento marxista,
restabelecendo sua missão revolucionária. A teoria dos mitos revolucionários, ao
aplicar a experiência dos movimentos religiosos ao movimento socialista,
estabeleceu as bases para uma filosofia da revolução (Mariátegui: 1971b: 21).
Tais formulações –expressão de uma rebelião romântica-marxista contra a interpretação
dominante (semi-positivista) de materialismo histórico– podem parecer muito radicais.
Em qualquer caso, deve estar claro que Mariátegui não quis fazer do socialismo uma
igreja ou uma seita religiosa, mas sim tentou restaurar a dimensão espiritual e ética da
luta revolucionária: a crença (“mística”), a solidariedade, a indignação moral, o total
compromisso, a disposição em arriscar a própria vida (o que chama “heróico”). O
socialismo para o Mariátegui era inseparável de uma tentativa de re-encantar o mundo
através da ação revolucionária. Transformou-se em uma das referências marxistas mais
importantes para o fundador da teologia da liberação, o peruano Gustavo Gutiérrez. (...)
in MARXISMO HOJE, A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas Titulo
Boron, Atilio A. - Compilador/a o Editor/a; Amadeo, Javier - Compilador/a o Editor/a;
Gonzalez, Sabrina - Compilador/a o Editor/a;
Autor(es)
Buenos Aires Lugar
CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor
2007
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