O capital de Marx – notas dissonantes do segundo violino
Por FRANCISCO TEIXEIRA & RODRIGO CAVALCANTE DE ALMEIDA*
Considerações sobre as três edições que compõem O Capital
“Deixar o erro sem refutação é estimular a imoralidade intelectual” (Karl Marx).
“Durante toda a
minha vida tenho feito aquilo para que fui talhado: ser um segundo
violino – e creio que me tenho saído muito bem nesta função. Eu sou
feliz por ter tido um maravilhoso primeiro violino: Marx” (Friedrich
Engels).
A produção do mais-valor e a troca justa
Dos três livros que compõem O Capital de Karl Marx, apenas o
primeiro volume foi publicado quando seu autor ainda era vivo; uma
primeira edição em 1867, uma segunda, em 1872. Os livros II e III,
editados por Engels, só viriam a público muito tempo depois. O livro II,
em 1885; o livro III ainda teve de esperar por quase de 10 anos: surge
em 1894.
Numa carta dirigida a Siegfried Meyer, de abril de 1867, Marx parecia
bastante animado, como deixa transparecer nessa correspondência, na
qual fala sobre o estado em que se encontrava seu trabalho. É com ironia
que se desculpa pelo tempo que passou para responder ao amigo. “Por que
não lhe respondi?”, pergunta Marx, para, em seguida, se justificar:
“Porque durante todo esse período eu estava com o pé na cova (…). Rio-me
das pessoas pretensamente ‘prática’ e da sua sabedoria. Se se deseja
comportar-se como um animal, pode-se evidentemente voltar as costas aos
tormentos da humanidade e preocupar-se apenas com a própria pele”. Isso
que Marx acaba de expressar é apenas para dizer a Meyer que “se
consideraria realmente como não prático se morresse sem ter terminado
meu livro, pelo menos o manuscrito”.
No parágrafo seguinte, informa ao seu interlocutor que “o volume I da
obra aparecerá dentro de algumas semanas, pela editora de Otto
Maissner, de Hamburgo. Seu título: O Capital. Crítica da Economia Política.
Para trazer pessoalmente o manuscrito, vim à Alemanha, onde estou
passando alguns dias em casa de um amigo, em Hannover, a caminho para
Londres” (MARX, 2020, p.199).
Marx tinha esperança de que “dentro de um ano, a obra toda [estaria] publicada”, isto é, os três livros de O Capital,
mais um quarto volume dedicado à pesquisa das teorias sobre Economia
Política e que veio a público somente no começo do século XX, com o
título Teorias da Mais-Valia.
A expectativa de Marx não se concretizou. Que Pena! Contra a sua
vontade, não “morreu como um homem prático”. Mas isso por imposição de
certas circunstâncias. A primeira delas, é a de que o autor de O Capital
não teve tempo para dar um acabamento final aos outros dois livros (II e
III). Seu agudo senso estético lhe exigia que somente deveria entregar
seus escritos à impressão, quando os tivesse como um todo artístico
acabado, como assim demonstra a feitura do Livro I, cuja elegância do
estilo fazem dele uma verdadeira obra literária.[i]
Uma segunda razão é de natureza histórico-empírica. No apagar das luzes
da década dos anos 70, do século XIX, Marx dizia que só poderia
publicar o livro II e III, quando a crise da indústria inglesa atingisse
seu ponto culminante. E por fim, uma razão de natureza fisiológica, sua
precária e debilitada saúde recorrentemente interrompia o seu trabalho.
Mesmo assim, Marx deixou um amontoado de manuscritos, que Engels,
após a morte de seu querido Mouro, utilizou-os para editar os livros II e
III. Infelizmente, não pôde aplicar a esses dois livros o estilo e a
beleza estética do livro I, por razões que serão conhecidas mais
adiante.
Uma comparação entre os livros I e os outros dois (livros II e III)
daria ao leitor uma boa ideia das diferenças que separam essas três
obras. Mas um cotejo dessa natureza está fora de cogitação. Aqui não há
espaço para uma empresa de tamanha monta. No entanto, valeria a pena
ousar esboçar, em linhas gerais, o conjunto do livro I, deixando para o
leitor a tarefa de, posteriormente, investigar e confrontar o resultado
dessa ousadia com a arquitetura dada por Engels aos dois restantes
livros da obra em seu todo.
Sem dúvida, trata-se de uma tarefa nada fácil para quem não tem conhecimento da totalidade de O Capital
em seus momentos diferenciados e de como eles se entrelaçam num todo
organicamente articulado. Contra essa desvantagem nada se pode fazer, a
não ser prevenir o leitor de quão árduo é o trabalho que impõe a ciência
a todos aquele que a ela se dedicam. De posse dessa advertência, não há
mais o que esperar…
Conversão das leis de produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista
O livro I expõe o processo de produção do capital em sua totalidade,
isto é, como unidade de dois momentos diferentes: aparência e essência. A
aparência, como é de todos conhecidos, é a esfera da circulação, o
mundo no qual os indivíduos existem uns para os outros apenas como
“possuidores de mercadorias”.
Se os indivíduos só existem como proprietários, a sociedade onde
vivem se lhes apresenta como “o melhor dos mundos possíveis”, pois a
percebem como o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da
propriedade e de Bentham. “Liberdade, pois os compradores e vendedores
de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas
por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos
mesmos direitos (…). Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu.
Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os
une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua
vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque
cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o
outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das
coisas ou sob os auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam
em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do
interesse geral” (MARX, 2017a, p.250-251).
É assim que as pessoas percebem esse mundo de todos os dias, não só
porque se trata de um conhecimento adquirido sensorialmente (ver,
sentir, tocar), mas porque esse é o aspecto fenomênico da realidade,
produto espontâneo da práxis cotidiana. Com efeito, quando alguém fala
do dinheiro, por exemplo, a única coisa que lhe vem à cabeça é que se
trata de uma matéria, uma quantidade de papel ou moeda metálica, que lhe
serve para adquirir os bens necessários à sua sobrevivência. Nem por um
instante desconfia que o dinheiro é, antes de tudo, uma categoria
econômica e social que expressa uma forma de relacionamento entre os
homens e que, por isto, não é simplesmente matéria, é também uma forma
social e, como tal, expressão de diversas relações de classes inseridas
num modo de produção determinado.
O dinheiro utilizado por um capitalista, por exemplo, para contratar
trabalhadores, é muito diferente do dinheiro que os trabalhadores
despendem para comprar os bens e serviços de que necessitam. No primeiro
caso, o dinheiro é capital, pois o seu proprietário o gastou, pagando
salários, para poder ganhar mais dinheiro; trata-se, portanto, de uma
relação de exploração entre duas classes: capitalistas e trabalhadores.
Por sua vez, o dinheiro que o trabalhador gasta na compra de roupa,
calçados, comida, etc., é apenas um simples meio de troca com o qual
adquire o que necessita para viver.
Disto ninguém sabe nem tampouco está preocupado em conhecer. É-lhe
suficiente saber que o dinheiro é uma coisa útil porque dele todos os
indivíduos se valem para comprar os produtos de que necessitam em seu
dia a dia. Isso basta, é tudo que precisam saber! E é assim porque o
mundo que se lhe apresenta ao pensamento lhe aparece como se fora a
realidade tal como verdadeiramente ela o é. Por isso, ao final do
capítulo IV, do livro I, Marx convida o leitor, para juntos
“[abandonarem][ii] essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris
[vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade
do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa
transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae
[personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta
agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu
trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por
negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua
própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da…
esfola. (MARX, 2017a, p.251).
E assim, o leitor é levado por Marx a abandonar aquela “esfera
rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e
[acompanhar]os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o
terreno oculto da produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business
[Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. Aqui se revelará
não só como o capital produz, mas como ele mesmo, o capital, é
produzido. O segredo da criação de mais-valor tem, enfim, de ser
revelado” (MARX, 2017a, p.250).
No entanto, o segredo da criação do mais-valor, que começa a ser
desvelado a partir do capítulo V, só será plenamente conhecido quando o
leitor chegar ao capítulo XXII, do livro I. Somente aí, aquele mundo
onde reinava exclusivamente liberdade, igualdade e propriedade,
converte-se em seu contrário direto: a liberdade se transforma em não
liberdade; a igualdade, em não igualdade; a propriedade, no direito de
se apropriar do trabalho alheio não-pago.
Mas essa conversão não anula as garantias constitucionais, segundo as
quais todos são iguais perante a lei e como tais lhes são garantidos a
inviolabilidade do direito à liberdade, à igualdade e à propriedade,
como regem todas as constituições burguesas?
A resposta é um rotundo não! Para Marx, a propriedade não é um roubo.
E não o é porque “a lei da troca só exige igualdade entre os valores de
troca das mercadorias que são alienadas reciprocamente. Ela exige até
mesmo, desde o início, a desigualdade de seus valores de uso, e não
guarda nenhuma relação com seu consumo, que só começa depois de o
negócio estar concluído” (MARX, 2017a, p.660).
A justiça burguesa não é sequer arranhada com a produção do
mais-valor, pois as transações que se realizam entre os agentes da
produção derivam das leis de produção de mercadorias como uma
consequência natural, como melhor será elucidado mais adiante. “As
formas jurídicas”, diz Marx, “nas quais essas transações econômicas
aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de
sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta às
partes contratantes pelo Estado, não podem determinar, como meras formas
que são, esse conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando
corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é
justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo
de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à
qualidade da mercadoria” (MARX, 2017c, p.386-387).
Por isso, Marx tem de explicar a produção do mais-valor sem que, para
tanto, o capitalista tenha de se valer de trapaças ou do roubo no
sentido corrente da palavra. Muito pelo contrário, o mais-valor nasce
como produto da troca como um ato perfeitamente legal, sem abolir as
leis guardadas pelo direito penal, como se mostra a partir daqui.
O negativo da acumulação de capital
Marx inicia o primeiro capítulo do livro I, abrindo as portas do
mundo capitalista com o que há de mais conhecido de todas as pessoas: a
mercadoria, como forma elementar em que aparece a riqueza de uma
sociedade, na qual todos indivíduos se reconhecem mutuamente como donos
de coisas das quais delas só abrem mão em troca de outras de igual
valor. Num mundo assim, todos se julgam como iguais, pois se relacionam
uns com os outros como proprietários de mercadorias e trocam equivalente
por equivalente. Como proprietários, cada um dispõem apenas do que é
seu e, assim, sentem-se livres para permutar entre si os produtos de
seus trabalhos. É o verdadeiro Jardim do Éden dos direitos inatos do
homem!
Se nesse Paraíso terrestre a compra e a venda da força de trabalho,
como qualquer outro tipo de intercâmbio comercial, obedecem ao princípio
da equivalência, como se explica, então, o lucro e, consequentemente, o
enriquecimento dos capitalistas? Não seria o lucro uma recompensa pelo
suor que cada capitalista derramou, ao longo de várias gerações, para
amealhar o seu valioso patrimônio? Aceitar tal pressuposto é o mesmo que
imaginar que os trabalhadores também poderiam ter acumulado seu
patrimônio da mesma forma como supostamente fizeram aqueles, para quem
hoje vendem sua força de trabalho. Não é, pois, valendo-se desse tipo de
argumento, cuja analogia com o mito da maldição bíblica é patente, que
Marx explica a origem do lucro.
Tampouco supondo que a troca entre capital e trabalho não obedece ao
princípio da equivalência. Nada disso! Não é burlando o princípio de que
a troca é sempre troca de valores iguais, que o autor de O Capital
demonstra que o salário se torna cada vez mais num meio miserável de
ganhar a vida, se comparado com os lucros, que aumentam quanto mais
gastam os capitalistas com a compra de meios de produção e de força de
trabalho. Aí estão dadas as condições do problema. Hic Rhodus, Hic Salta!
A origem do lucro aparece para a economia política clássica (EPC)
como um verdadeiro enigma. Essa ciência, na figura de seus maiores
expoentes – Adam Smith e David Ricardo –, viu-se confrontada com uma
problemática que lhe aparecia sem solução: como explicar a troca entre
capital e trabalho sem ferir o princípio da equivalência e, ao mesmo
tempo, dessa igualdade, demonstrar como se origina o mais-valor, ou, em
sua expressão fenomênica, o lucro.
Smith e Ricardo descobriram que a produção do mais-valor nasce da
troca entre capital e trabalho. No entanto, não puderam compatibilizar
essa troca com o princípio da equivalência. Mas isso, como diria Marx, é
consequência necessária do método analítico com que empreenderam a
crítica da economia (MARX, 1980c, p.1548).
Coube o autor de O Capital realizar o que a economia
política clássica jamais conseguiu decifrar: como da igualdade, da troca
de valores iguais, surge a desigualdade, isto é: o mais-valor. É dessa
aporia, em que se viram enredados Smith e Ricardo, que parte Marx para
explicar a origem do mais-valor. Para tanto, não contrapõe àquela
ciência uma teoria simplesmente diferente. Muito pelo contrário, divide
com os economistas clássicos o mesmo pressuposto por eles assumido, isto
é, de que o direito de propriedade se funda sobre o trabalho próprio. E
tinha que se valer de tal pressuposição, pois, num mundo onde todos os
indivíduos só existem como proprietários de mercadorias, cada um só
poderá se apropriar das coisas alheias, mediante a alienação da sua
própria propriedade. Por isso, diz Marx, de início: “esse suposto tinha
de ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais
direitos se confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da
mercadoria alheia era apenas a alienação [Veräußerung] de sua mercadoria própria, e está só se podia produzir mediante o trabalho” (MARX, 2017a, p.659).
Mas, então, como demonstrar que a troca entre capital e trabalho se
dá de acordo com o princípio da equivalência e que dessa igualdade nasce
a desigualdade na apropriação da riqueza social? A resposta que se
encontra em Marx estar na exposição que ele faz da dialética interna do
processo de acumulação. Essa dialética se encarrega de transformar
aquele princípio (equivalência) em seu contrário direto; qual seja: a
troca de não-equivalência. E isso acontece, nunca é demasiado ressaltar,
sem que, nem por um instante, sejam anuladas as leis da troca de
mercadorias, isto é, o referido princípio da equivalência.
Marx expõe esse revolucionamento da dialética interna das trocas de mercadorias nos capítulos XXI e XXII do Livro I de O Capital.
Pressupondo a ideia, tão cara à filosofia liberal, de que, num passado
remoto, a classe capitalista adquiriu sua propriedade com o suor do seu
próprio rosto, Marx se pergunta o que aconteceria quando esse patrimônio
é utilizado recorrentemente para pagar os salários dos trabalhadores?
Resposta: ao cabo de certo tempo, todo esse patrimônio se constituirá de
trabalho alheio não-pago. É o que mostra o autor de O Capital
valendo-se de um exemplo. Imagina que a classe capitalista, depois de
muitas gerações de trabalho, acumulou uma riqueza de 1.000 unidades de
dinheiro e que, agora, pode dispor dela para contratar trabalhadores
assalariados.
Em seguida, supõe que esse capital gera anualmente um mais-valor de
200 unidades de dinheiro, destinadas ao consumo dos capitalistas. Que
acontece quando esse capital é recorrentemente empregado para assalariar
trabalhadores? Simples! Se a cada ano é gerado um mais-valor de 200
unidades monetárias, ao cabo do quinto ano, o mais-valor total,
produzido e consumido integralmente pela classe capitalista, será de
1000 unidades. E o que é mais importante: a classe capitalista ainda
dispõe dessas 1000 unidades de capital para reiniciar, no ano seguinte, a
contratação de novos trabalhadores.
Ora, se a partir do quinto ano todo o patrimônio da classe
capitalista, que ela supostamente amealhou com o suor de seu próprio
rosto, foi totalmente pago, como sustentar que tudo isso aconteceu sem
ferir o princípio da equivalência? Com mais razão ainda se se considerar
que a partir do sexto ano, a troca entre capital e trabalho
converteu-se numa não-troca, uma vez que todo o patrimônio da classe
capitalista é, agora, constituído integralmente de mais-valor, isto é,
de trabalho não-pago, de mais-valor capitalizado.
Se a dialética interna do processo de acumulação transforma a troca
entre capital e trabalho numa não-troca, isso não anula o princípio da
equivalência que exige que todo ato de troca seja uma troca de valores
iguais? Não! Que Marx explique então como se resolve essa aparente
aporia. Concedendo-lhe a palavra, ele mostra que, “na medida em que cada
transação isolada obedece continuamente à lei da troca de mercadorias,
segundo a qual o capitalista sempre compra a força de trabalho e o
trabalhador sempre a vende – e, supomos aqui, por seu valor real –, é
evidente que a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada
na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo a
sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A
troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se
ao ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em
primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho
não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado
sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só
tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A relação de
troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera
aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma,
estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica. (MARX, 2017a,
p.659).
Por isso, em consequência desse contínuo e ininterrupto processo de
acumulação, acrescenta Marx, em seguida, “a propriedade aparece,
[agora], do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho
alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como
impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre
propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que,
aparentemente, tinha origem na identidade de ambos”. (MARX, 2013a,
p.659).
Cai assim por terra a ideia rasteira e, ao mesmo tempo tão cara à
concepção liberal de mundo, de que a propriedade capitalista é fruto do
trabalho pessoal. E tudo isso ocorre em consonância com a lei da troca
de mercadorias, que somente exige a igualdade entre os valores
permutados, quando cada ato de troca é visto fora de sua conexão com
outros atos de troca. Quanto a isso, Marx não deixa nenhuma dúvida.
Depois de expor a dialética interna da troca de mercadorias, ele
demonstra que a contínua e ininterrupta compra e venda da força de
trabalho não altera em nada a lei geral da produção de mercadorias. “A
quantia de valor adiantada para pagar os salários dos trabalhadores, não
ressurge no produto pura e simplesmente, mas sim aumentada de um
mais-valor”.
Esse mais-valor, diz Marx, em seguida, “não resulta de que se tenha
ludibriado o vendedor, pois este recebeu efetivamente o valor de sua
mercadoria, mas do consumo dessa mercadoria pelo comprador. A lei da
troca só exige igualdade entre os valores de troca das mercadorias que
são alienadas reciprocamente (…) A transformação original do dinheiro em
capital consuma-se, portanto, na mais rigorosa harmonia com as leis
econômicas da produção de mercadorias e com o direito de propriedade
delas derivado. Mas, apesar disso, ela tem por resultado: (i) que o
produto pertence ao capitalista, e não ao trabalhador; (ii) que o valor
desse produto, além do valor do capital adiantado, inclui um mais-valor,
o qual, embora tenha custado trabalho ao trabalhador e nada ao
capitalista, torna-se propriedade legítima deste último; (iii) que o
trabalhador conservou consigo sua força de trabalho e pode vendê-la de
novo, sempre que encontrar um comprador. A reprodução simples não é mais
do que repetição periódica dessa primeira operação; volta-se, sempre de
novo, a transformar dinheiro em capital. A lei não é, pois, violada; ao
contrário, ela apenas obtém a oportunidade de atuar duradouramente
(MARX, 2017a, p.660).
E assim Marx desvenda o segredo da produção do mais-valor; este
aparece não como produto de um roubo, mas como uma troca perfeitamente
legal, no sentido do direito penal. A exploração não se confunde com o
roubo, porque na produção de mercadorias confrontam-se, independentes um
do outro, apenas o vendedor e o comprador, “suas relações recíprocas
chegam ao fim quando do vencimento do contrato concluído entre eles. Se o
negócio se repete, é em consequência de um novo contrato, que não
guarda nenhuma relação com o anterior e no qual somente o acaso reúne
novamente o mesmo comprador e o mesmo vendedor (MARX, 2017a, p.662).
Por conseguinte, enquanto em cada ato de troca – tomado isoladamente –
são conservadas as leis da troca, “o modo de apropriação pode sofrer um
revolucionamento total sem que o direito de propriedade adequado à
produção de mercadorias se veja afetado de alguma forma. Esse mesmo
direito segue em vigor tanto no início, quando o produto pertencia ao
produtor, e este, trocando equivalente por equivalente, só podia
enriquecer mediante seu próprio trabalho, como também no período
capitalista, quando a riqueza social se torna, em proporção cada vez
maior, a propriedade daqueles em condições de se apropriar sempre de
novo do trabalho não pago de outrem”(MARX, 2017a, p.662).
Engels, editor do segundo e terceiro livros de O capital
Marx anuncia no prefácio à primeira edição de O Capital, em
julho de 1867, que “o segundo volume deste escrito tratará do processo
de circulação do capital (Livro II) e das configurações do processo
global (Livro III); o terceiro (Livro IV), da história da teoria. Todos
os julgamentos fundados numa crítica científica serão bem-vindos. Diante
dos preconceitos da assim chamada opinião pública, à qual nunca fiz
concessões, tomo por divisa, como sempre, o lema do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti!”[iii] (MARX, 2017a, p.81).
Não é difícil daí inferir que O Capital é uma obra que
articula a inteligibilidade do sistema do modo de produção capitalista a
partir de uma concepção de totalidade, como unidade do processo de
produção e processo de circulação de mercadorias. Não é por menos a
relutância de Marx de não publicar O Capital enquanto não os
tivesse, diante seus olhos, os três livros (I, II, III) em sua versão
completa. Numa carta dirigida a Engels, de 31 de julho de 1865, ele
confessa que ainda restavam “três capítulos por escrever para terminar a
parte teórica (os três primeiros livros)”. Em seguida acrescenta que
“depois, virá um quarto livro, dedicado à história e às fontes;
resolvidas nos três primeiros livros; este último será sobretudo uma
repetição sob forma histórica”.
Nessa mesma carta, Marx justifica essa sua resistência. Considera tal
dificuldade como sendo a maior vantagem de seus escritos, pois estes
“constituem um todo artístico e não posso chegar a este resultado senão
graças a meu sistema de não dar nunca à impressão enquanto não os tiver
completos diante de mim (MARX, 2020, .p.186).
Mas esse não é o único cuidado alegado por Marx. Em abril de 1879,
muito tempo depois daquela carta dirigida a Engels, ele escreve a
Nikolai Frantsevich Danielson dando-lhe conta que não poderia publicar o
segundo volume de O Capital enquanto continuar, na Alemanha,
“o regime vigente (…) com seu rigor atual”. Marx refere-se aí às leis de
exceção contra os socialdemocratas, promulgadas por Bismarck em outubro
de 1878.
Mas essa não era a principal causa que o impedia de editar o segundo volume de O Capital.
Dentre outras razões, ele alegava que não “publicaria o segundo volume
antes que a atual crise industrial inglesa alcançasse seu ponto
culminante” (MARX, 2020, p.331).
Marx morreu sem ver publicados os três volumes de O Capital.
Seu esmero estético e sua preocupação com as condições históricas da
época, além de sua precária condição de saúde e miséria financeira,
impediram-no de concluir sua principal obra.
Coube a Engels o trabalho de publicação dos livros II e III de O Capital.
Mas este encargo iria lhe custar mais de vinte anos de trabalho. Uma
das possíveis razões desse desafio, Engels confessa, numa carta dirigida
a August Bebel, datada de 30 de agosto 1883, que a partir de então se
dedicaria a publicação do livro II. No entanto, espanta-se com o
material que encontra. Uma verdadeira montanha de rascunhos, com
centenas de citações empilhadas, à espera de um trabalho posterior.
Naquela carta assevera que “tu [Bebel] me perguntas como foi possível
que ele [Marx] me tenha ocultado, justamente de mim, o estado do
material? Muito simples: se eu soubesse, tê-lo-ia assediado dia e noite
até que a obra estivesse acabada e impressa. E [Marx] sabia disso melhor
que ninguém; e sabia também que, na pior das eventualidades, que
ocorreu agora, o manuscrito poderia ser editado por mim conforme o seu
espírito – coisa, aliás, que já dissera a Tussy” (MARX, 2020, p.368-369).
O desconhecimento do espólio deixado por Marx iria demandar, da parte
de Engels, um esforço excessivo; quase sobre-humano. E ele sabia disso.
Mais do que ninguém, tinha consciência das dificuldades que iria
encontrar em seu trabalho de editoração. No prefácio ao livro II,
confessa que “Preparar para a impressão o segundo livro de O capital,
e de maneira que, de um lado, ele aparecesse numa forma coerente e o
mais acabada possível e, de outro, como obra exclusiva do autor, e não
do editor, não foi um trabalho fácil”. Ele explica as razões dessa
dificuldade: “O grande número de versões existentes, a maioria delas
fragmentária, dificultou a tarefa. Apenas uma dessas versões (o
manuscrito IV[a]), quando muito, fora revisada e preparada para a
impressão, mas a maior parte dela também se tornou obsoleta, devido a
reelaborações posteriores. Parte do material, embora acabada quanto ao
conteúdo, não o estava com relação à forma; fora redigida na linguagem
em que Marx costumava elaborar suas anotações: num estilo descuidado,
repleto de expressões coloquiais, frequentemente sarcásticas, além de
termos técnicos ingleses e franceses e, muitas vezes, frases e até
páginas inteiras em inglês; as ideias pousavam sobre o papel da forma
como iam se desenvolvendo no cérebro do autor. Se boa parte do conteúdo
fora exposta em detalhes, outra parte, de igual importância, estava
apenas esboçada; os fatos que servem de ilustração ao material estavam
reunidos, mas pouco ordenados, e muito menos elaborados; muitas vezes,
no fim de um capítulo, na pressa do autor de passar ao capítulo
seguinte, não havia mais do que algumas sentenças fragmentárias, a
indicar o desenvolvimento ali deixado incompleto; por fim, havia a
notória caligrafia, que às vezes nem o próprio autor lograva decifrar”
(MARX, 2017b, .p.79).
Para a editoração do livro II, Engels utilizou os manuscritos
enumerados de “I a IV pelo próprio Marx. Destes, o manuscrito I (150
páginas), presumivelmente escrito em 1865 ou 1867, é a primeira
elaboração separada, porém mais ou menos fragmentária, do Livro II em
sua composição atual. Também desse texto nada pôde ser utilizado. O
manuscrito III é, em parte, uma compilação de citações e referências aos
cadernos de excertos de Marx – a maioria deles referente à primeira
seção do Livro II – e, em parte, elaborações de pontos específicos,
sobretudo uma crítica das teses de Adam Smith sobre o capital fixo e o
capital circulante e sobre a fonte do lucro; além disso, contém uma
exposição da relação entre a taxa de mais-valor e a taxa de lucro,
pertencente ao Livro III. As referências ofereciam poucos elementos
novos, e muitas versões tanto para o Livro II como para o III, tornadas
obsoletas por redações posteriores, foram descartadas em sua maior parte
(MARX, 2013b, p.81).
De todo esse material, Engels esclarece que “o manuscrito IV é uma
versão pronta para a impressão da seção I e dos primeiros capítulos da
seção II do Livro II, e o utilizamos quando adequado. Embora soubéssemos
que esse material fora redigido anteriormente ao manuscrito II, ele
pôde – por sua forma mais acabada – ser utilizado com vantagens para a
parte correspondente deste livro; foi preciso apenas complementá-lo com
algumas passagens do manuscrito II. Este último data de 1870 e constitui
a única elaboração de algum modo completa do Livro II. As anotações
para a redação final, que mencionarei em seguida, dizem expressamente:
“A segunda versão deve ser usada como base” (MARX, 20137, p.81).
A luta de Marx para finalizar os escritos sobre os livros II e III é
travada por seguidos períodos intercalados entre diversas moléstias que o
acometiam e breves, muito breves períodos de recuperação e saúde. Em
fins dos anos 1870, Marx, afirma Engels, “já parecia ter clareza de que,
sem uma reviravolta completa em seu estado de saúde, jamais ele
conseguiria produzir uma versão plenamente satisfatória dos Livros II e
III. Com efeito, os manuscritos V a VIII frequentemente evidenciam as
marcas de uma luta violenta contra as doenças que o mortificavam. O
conteúdo mais difícil da seção I foi novamente desenvolvido no
manuscrito V; o restante da seção I e a seção II inteira (com exceção do
capítulo XVII) não apresentavam grandes dificuldades teóricas; em
contrapartida, Marx considerava que a seção III, dedicada à reprodução e
à circulação do capital social, carecia prioritariamente de uma
reelaboração.
De fato, no manuscrito II a reprodução fora estudada, num primeiro
momento, sem levar em conta a circulação monetária que lhe serve de
mediação e, em seguida, levando-a em consideração. Isso tinha de ser
eliminado, e a seção inteira precisava ser reelaborada para ajustar-se
ao campo de visão ampliado do autor. E assim surgiu o manuscrito VIII,
um caderno de apenas setenta páginas inquarto; mas a quantidade de
material que Marx foi capaz de comprimir em espaço tão exíguo fica
demonstrado quando se compara esse manuscrito com a seção III, impressa,
depois de eliminados os fragmentos inseridos do manuscrito II (MARX,
20137, p.82-83).
Eis aí o material do qual Engels lançou mão para publicar o Livro II.
Para editoração do livro III, ele contou com a primeira versão
manuscrita de Contribuição à crítica da economia política, dos
fragmentos supramencionados do manuscrito III e de algumas curtas
anotações ocasionais espalhadas por vários cadernos de excertos”. Além
disso, usou os seguintes materiais: “o citado manuscrito in-fólio
de 1864-1865, elaborado aproximadamente com o mesmo grau de acabamento
que o manuscrito II do Livro II, e um caderno de 1875, “A relação entre a
taxa de mais-valor e a taxa de lucro”, que aborda o assunto
matematicamente (em equações). A elaboração desse livro para a impressão
avança rapidamente. Na medida em que já posso emitir um juízo sobre
esse trabalho, creio que, com exceção de algumas seções muito
importantes, ele apresentará fundamentalmente dificuldades de caráter
técnico (MARX, 2013b, p.83).
Em geral, o trabalho de editoração de Engels exigiu dele intervir na
redação dos manuscritos naqueles pontos que lhe pareciam carente de
elucidação. Somente nas páginas dos manuscritos onde não encontrava
elemento correspondente, ele alterava e completava independentemente.
Suas modificações, como assim revela a excelente pesquisa de Regina
Roth, “compreendem padronização e ajuste de conceitos, notações,
exemplos numéricos, várias transposições, a inclusão de notas de rodapé
no texto principal, a adição de títulos, introduções e transições, além
disso, formação e supressão de parágrafos, omissões, atualizações e
dispensa de ênfases, demonstrações de contas, explicitação, complemento e
tradução de citações, assim como modificações de estilo (MARX; ENGELS,
2003, pp.407-427).[iv]
*Francisco Teixeira é professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Autor, entre outros livros, de Pensando com Marx: Uma leitura crítico-comentada de O Capital (Ensaio).
Rodrigo Cavalcante de Almeida é professor do Instituto Federal do Ceará (IFCE).
Notas
[i]
Importante ressaltar que mesmo o livro I não deixou seu autor
completamente satisfeito. Ele acrescentou um apêndice, ainda em 1867,
sobre a seção I, a pedido de Engels, com o objetivo de deixar a leitura
mais clara para um público não acostumado com a dialética. Fez
modificações substanciais para a segunda edição de 1872; reviu e
modificou a tradução francesa que, após as modificações, atribuiu a esta
edição uma autonomia que deveria ser lida como obra à parte. Noutras
palavras, se mesmo o livro I, que teve um acabamento final de Marx para a
impressão, sofreu diversas alterações, o que dirá dos livros II e III
que foram editados por Engels e que, portanto, não contaram com o esmero
crítico do seu autor.
[ii] O tempo verbal foi por nós alterado.
[iii] Segue o teu curso e deixa a gentalha falar!
[iv]
A segunda parte do presente texto será apresentada noutro artigo, que
começa com as alterações que Engels introduziu nos manuscritos deixado
por Marx parapublicação dos livros II e III. Em seguida, os autores
apresentarão a leitura que Engels faz de O Capital, para assim submetê-la à crítica.