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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Uma crónica bem a propósito

 

Mérito é para pobre

Um dos maiores feitos de Hollywood foi exportar para quase todo o mundo o mito do “sonho americano”. A ideia de que com trabalho e esforço qualquer um pode singrar na “terra das oportunidades” serve para os pobres se responsabilizarem pela sua pobreza e reconhecerem a justiça do privilégio. Fora do ecrã, os EUA são um dos países com menor mobilidade social, a léguas do norte da Europa. O 27º no índice da mobilidade social do Fórum Económico Mundial (Portugal está em 24º). Ajuda o sistema universitário muitíssimo estratificado. Um jovem licenciado em universidades como Yale ou Harvard recebe, em média, 86 mil dólares por ano em vez dos 58 mil para os vindos de outras universidades e os 30 mil para quem não tem diploma. Um fosso que se vai aprofundando à medida que a carreira vai evoluindo. O futuro de cada um é decidido antes de ter 25 anos. Muito antes, porque o sistema de acesso já reproduz a diferença social e cultural na sociedade. Há mais jovens oriundos das famílias dos 1% mais ricos nas universidades da Ivy League do que dos 50% com menores rendimentos.

Tirando a origem étnica, nenhuma diferença é tão evidente no boletim de voto como a que existe entre os que têm e não têm formação superior. Biden teve 60% dos votos dos eleitores com formação académica, Trump 65% dos que não concluíram a universidade. Numa sociedade estratificada, onde o discurso meritocrático responsabiliza o indivíduo pelo seu sucesso, a revolta com a desigualdade é substituída pelo ressentimento perante o fracasso. E é dele que se alimentam figuras como Trump.

Há duas semanas, o Supremo Tribunal validou uma queixa de uma organização conservadora de estudantes contra o sistema de acesso às universidades de Harvard e Carolina do Norte, pondo fim a todos os programas de discriminação positiva. Criados na década de 1960, pretendiam garantir uma representação mínima de minorias étnicas nas universidades, diminuindo o fosso social criado por séculos de escravatura e discriminação. Os juízes acham que a sociedade norte-americana já não precisa deste estímulo, ignorando a experiência das universidades que acabaram com estes programas. A discriminação positiva foi proibida, por referendo ou decisão dos eleitos, em nove estados. Um deles foi a Califórnia e, dois anos depois, a percentagem de alunos negros a entrar na UCLA desceu de 7% para 4%. Dez anos depois, em 5 mil alunos apenas entraram 96 negros. O mesmo aconteceu no Michigan.

O Supremo Tribunal acabou com a discriminação positiva para minorias no acesso às universidades. Mas um terço dos lugares de Harvard são ocupados por filhos de antigos alunos, boa parte doadores. A meritocracia serve-se aos pobres para justificar o privilégio. No dia em que pusesse em causa o direito de comprar o futuro chamar-lhe-iam “socialismo”

Se a decisão do Supremo não é surpreendente, somando-se a outras perdas de direitos civis desde que os três juízes nomeados por Trump tomaram posse, as exceções explícitas ou implícitas são interessantes. A explícita é às academias militares e foi pressionada por uma carta escrita por quatro antigos chefes do Estado-Maior defendendo a necessidade de manter a diversidade racial nas chefias militares: “A história tem-nos demonstrado que ter umas Forças Armadas diversificadas sob o comando de uma liderança homogénea é uma receita para o ressentimento, a discórdia e a violência. Pelo contrário, unidades diversas a todos os níveis são mais coesas, colaborativas e eficazes.” Uma réstia de bom senso numas Forças Armadas onde, ainda assim, um em cada cinco militares são negros, mas só duas das 41 principais patentes pertencem a esta minoria. E que é extensível a toda a sociedade: uma nação diversificada sob o comando de lideranças homogéneas é receita para ressentimento, discórdia, violência e falta de coesão.

E há a exceção implícita, que tem sido sublinhada por muitos e levará a uma queixa de uma associação cívica de advogados: a decisão do Supremo suporta-se na ideia de que “o estudante deve ser tratado com base na sua experiência individual”, mas este espírito de igualdade e mérito não o levou a tomar medidas contra a discriminação positiva dos privilegiados. Um terço dos lugares de Harvard são ocupados por filhos de antigos alunos, informação que a universidade se esforçou por ocultar. São, boa parte, filhos de doadores. O Supremo acabou com os incipientes programas que tentam garantir alguma diversidade, mas mantêm intocados os privilégios sociais de nascimento. A exigência de mérito individual fica para os pobres.

A base da desigualdade é a perpetuação de um sistema afunilado à partida. Dos 31 milhões de jovens entre os 18 e os 34 anos, apenas 68 mil passaram pela Ivy League. O absurdo prémio de rendimentos garantido por esta entrada, num sistema elitista onde os que já têm mais capital social e formação extracurricular compram um lugar na fila da frente da prosperidade, perpetua uma sociedade muito mais próxima das castas indianas do que o fantasioso sonho americano. Se a preocupação dos juízes do Supremo fosse o mérito individual, mesmo seguindo o caminho equivocado de acabar com a discriminação para os negros, teriam, antes de tudo, acabado com a discriminação para filhos de doadores. Mas nunca o fariam, porque a meritocracia é a mentira que se serve aos pobres para justificar o privilégio. No dia em que ela pusesse em causa o direito de comprar o futuro chamar-lhe-iam “socialismo”.

Daniel Oliveira

Público

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