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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023
Discípulo de Gilles Deleuze o filósofo português José Gil analisa ontologicamente o fenómeno da IA. Julgo que, entre os factores que ele enumera e analisa, faltará à IA o sentimento da morte inevitável, e as paixões tristes e alegres (potenciadoras) segundo Espinosa.
JOSÉ GIL
Para responder à pergunta “a IA poderá substituir ou mesmo superar a criatividade artística dos seres humanos?” temos, primeiro, de a enquadrar no debate actual sobre os poderes e os efeitos da tecnologia digital. O discurso actual sobre os efeitos sociais da inteligência artificial centra-se na revolução que vai provocar, nos perigos que ela traz e nos meios possíveis de os enfrentar.
Comecemos pelos perigos. Parecem ser, essencialmente, de três tipos: perigos socioeconómicos, perigos políticos e perigos existenciais. Os primeiros ameaçam provocar, a curto prazo, verdadeiros desastres na vida material das pessoas: um aumento exponencial acelerado do desemprego e das desigualdades. Kai-Fu Lee, o engenheiro que instalou a Google na China, calcula que, por volta de 2030, 40 a 50% dos empregos nos Estados Unidos poderão ser substituídos pela IA. Quanto às desigualdades, estamos já a assistir à concentração astronómica da riqueza mundial em empresas digitais, como a Google, a Amazon ou a Huawei. Também começam a sentir-se os perigos políticos: desinformação, montagem rápida de vídeos falsos, proliferação de propaganda deepfake, que, graças à tecnologia da IA, faz uma realidade virtual substituir rostos, corpos, mensagens verbais reais, podendo criar no telespectador a convicção imediata de que tal ou tal personagem (político ou simplesmente mediático), ou uma instituição ou Estado, cometeram delitos ou crimes, por exemplo. Vê-se a que extraordinária perversão da vida política esta prática pode levar.
Tão importantes como os que acabámos de evocar, são os perigos existenciais. O alastramento da influência das tecnologias digitais em todos os domínios da vida social e individual dará cada vez mais força à ideia de que as máquinas dominarão os homens. O homem terá deixado de reinar no centro do mundo. É a própria imagem que o homem tem de si mesmo que mudará radicalmente. O seu estilhaçamento abalará a identidade humana e os seus valores.
Se todas as tarefas actualmente executadas por seres humanos — tarefas económicas, médicas, jurídicas, educativas, políticas e mesmo artísticas — forem exponencialmente optimizadas pela simples aplicação de tecnologias inteligentes, desaparecerá o domínio do ser humano sobre o mundo. Será o fim do antropocentrismo e do humanismo. A superinteligência artificial tomará conta das decisões humanas em todos os planos; e, porque elas se tornarão mais eficientes e mais económicas, serão consideradas melhores, no sentido moral. As máquinas ditarão os nossos comportamentos éticos. E substituirão os artistas e os escritores.
A esta ameaça, os defensores do velho humanismo, laico ou religioso, contrapõem a crença inabalável na supremacia ontológica do homem sobre as máquinas e, consequentemente, sobre o mundo. Supremacia que pertenceria à essência do homem, enquanto ser dotado de razão. Ora, o humanismo define-se pelo lugar e pelo estatuto que atribui ao homem no centro do universo, enquanto sujeito dominador do objecto composto pelo resto dos entes.
Enquanto tal, o homem assegura a coerência e a harmonia do todo e, na ideologia do progresso que daí decorre, do seu próprio destino — isto, mesmo nas doutrinas religiosas em que o fundamento divino suporta a existência humana. Esta fé absoluta na superioridade do ser humano sobre todo o universo condiciona as políticas actuais quanto ao estatuto e à função a atribuir à tecnologia da IA na sociedade do futuro.
Os humanistas actuais que se elevam contra a supremacia das máquinas utilizam um argumento surpreendente. Ao invocar o facto de os robôs serem incapazes de emoções e sentimentos, de empatia, de amor e compaixão, elegem a afectividade em essência da humanidade do homem, contrariando a sua definição clássica como “ser racional”, exclusivo de toda a diversidade animal. Como se, de repente, os “instintos”, as “paixões”, tradicionalmente hostis à Razão definidora do ser humano, fossem reactivados para o distinguir das máquinas. Recorre-se à afectividade para a opor à, e desvalorizar a hiper-racionalidade pura, “sem alma”, dos dispositivos e operações da IA. Mas trata-se de uma afectividade que já não implica irracionalidade e perda de controlo do sujeito, é antes uma afectividade domada, sensata, ao serviço da razão. Estas confusões, ajustes e contradições na história do humanismo mostram bem a perturbação causada pela irrupção da tecnologia digital na imagem que o homem tinha e tem de si mesmo, tornando-se cada vez mais difícil atribuir-lhe uma identidade e um estatuto ontológico determinados. O corpo e a animalidade vêm hoje, ironicamente, ajudar a salvar a visão iluminista e humanista do homem no mundo.
Humano, demasiado humano
Em resumo, dois discursos opõem-se actualmente no debate sobre a IA, e ambos parecem não descrever adequadamente as transformações em curso: os cultores das máquinas pecam por eliminar totalmente o homem da vida social e individual; enquanto os humanistas não vêem o que está já a acontecer, a saber, a substituição, em inúmeros domínios, do pensamento e da acção humanas pela IA. Os dois discursos implicam uma metafísica. Esboçámos os princípios do humanismo; explicitemos os pressupostos metafísicos do trans-humanismo dos defensores da IA.
Admitir que a superinteligência das máquinas supera todas as capacidades cognitivas do ser humano e mesmo toda a sua inventividade e criação é supor, primeiro, que a actividade criativa depende inteiramente da cognição; em segundo lugar, que a tecnologia digital é capaz, em princípio, de substituir não só todas as tarefas dos humanos, mas, sobretudo, de construir uma realidade paralela mais perfeita do que a actual. Afirma-se que uma obra arquitectónica ou literária poderá ser reproduzida integralmente por operações da IA. E que o ChatGPT e o Bard, da Google, serão capazes de criar textos tão bons como os de um poeta. Admitiríamos, assim, que não há limites de princípio ao desenvolvimento deste tipo de criatividade, de tal modo que nada impede que uma máquina venha a produzir textos tão originais como os de um escritor em carne e osso. Haverá singularidades artísticas, objectos de arte únicos e tão ou mais geniais do que os dos grandes autores que conhecemos. Generalizando este poder de criação das máquinas superinteligentes, é toda a realidade do mundo, todos os produtos do engenho, da acção e do trabalho que serão replicados e superados. Um outro universo paralelo nascerá e substituirá o nosso, humano, demasiado humano.
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As máquinas ditarão os nossos comportamentos éticos. E substituirão os artistas e os escritores
José Gil
Mas, se as máquinas inteligentes conseguissem, em teoria, substituir toda a obra humana, então qualquer invenção ou produção actual estaria já, desde sempre, virtualmente composta pela IA. Por exemplo, esta esgotaria as possibilidades de criação de um escritor, mesmo não ainda concretizadas; e, portanto, esgotaria a obra de todos os escritores, de toda a literatura e toda a arte. E identicamente para a realidade possível. Nada do que os humanos produziram no passado e no presente e produzirão no futuro escaparia aos poderes criativos da IA. A totalidade do mundo real e do mundo possível estaria virtualmente inscrita nos programas da superinteligência artificial. Para lá dos seus algoritmos, nenhum elemento desconhecido, em nenhum infinito, viria perturbar os contornos bem definidos do que teria sido já determinado. Encontrar-nos-íamos, então, perante uma situação paradoxal: se toda a realidade é dada como uma totalidade fechada e finita, haveria um tempo, também finito e limitado, em que se esgotaria a sua produção. Depois desse limite, só haveria repetição do mesmo, o eterno retorno do mesmo. O que implicaria o fim do novo e da formação de singularidades. O que, por seu turno, pressuporia que o poder das máquinas de criar obras únicas e singulares se traduziria, virtualmente também, pela incapacidade de as produzir infinitamente, quer dizer pela limitação desse poder e, por isso, pela sua anulação concreta na sua repetição.
Temos de admitir que as máquinas não sabem e não podem criar. Poderão reproduzir obras aparentemente originais, mas faltar-lhes-á sempre a fonte de onde nasce a singularidade. Essa fonte é a indeterminação infinita, quer dizer o caos, que dá vida à obra. Resta saber como é que o caos infinito imprime na obra a marca da unicidade. Sobre esta questão, que não analisarei aqui, direi apenas que a singularidade não deve ser confundida com a unicidade da pessoa ou do eu, como uma instância interior privada. Pelo contrário, a singularidade diz-se não só de um ser, mas de uma coisa, de um som, de uma cor, de uma atmosfera, de uma hora do dia ou de uma obra de arte. A singularidade desta última advém da capacidade de se ligar, combinar, agenciar com outras matérias e outras singularidades. A “assinatura” do autor traz a marca do poder incomparável de a obra se conectar com outras “coisas” e outras obras, produzir outras singularidades. Este poder provém da arte, por exemplo, do pintor de insuflar acaso ao nexo das linhas e das cores, de combinar acaso e nexo para dar vida — uma vida “inorgânica” — à obra. Sem esta vida, não há objecto de arte. E é pelo corpo que a vida vem ao artista e que ele a recria na obra — o que a máquina inteligente não pode fazer. Por exemplo, não é possível programar o que poderíamos chamar o desejo de criar, o impulso criativo que irrompe subitamente, fruto do acaso, no metabolismo do artista e que o faz começar a trabalhar.
Mas, aparentemente não é o que afirmam os cultores da IA. Se a máquina não é capaz de criar singularidades, não seria porque não possui afectividade ou emoções. A simulação maquinal de emoções, a partir de expressões do rosto, timbres da voz ou gestos, é hoje realizada facilmente pela IA. Ao que se pode contrapor que os robôs não possuem a experiência emocional de um humano. Mas que sabemos nós, na verdade, da experiência do outro? Que prova segura podemos ter de que o robô que manifesta dor não está a senti-la? Mais uma vez, desloquemos o problema: a criatividade do homem, no pensamento, na arte e na cultura, vem do seu poder de emitir singularidades, não da unicidade da pessoa humana ou das suas “faculdades”, sensibilidade, imaginação, entendimento ou razão, como se admitia classicamente na filosofia do conhecimento ou na estética. Não há, pois, que atribuir aos poderes da inteligência ou da “imaginação” das máquinas a capacidade de criar. Não se superará a originalidade humana com o superpoder da inteligência algorítmica.
O corpo em devir
Mas os humanos não se devem escudar por trás do argumento da sua “essência” espiritual superior para reivindicarem o domínio exclusivo sobre a matéria, o corpo e o mundo. Porque essa essência está mais que manchada, corroída e desfigurada. Não só os animais têm inteligência, mas as máquinas funcionam com a racionalidade dos humanos. Em múltiplas disciplinas a imagem do homem foi destronada, não se conhecendo, hoje, distintamente, o que separa a cultura da natureza, a humanidade da animalidade, a moral da biologia, o sujeito da suposta impessoalidade de um grande símio.
Comparando a inteligência artificial com a inteligência “natural” descobrem-se afinidades e diferenças. Das primeiras ressalta o facto de a IA resolver problemas com uma velocidade muitíssimo superior à do que o homem é capaz, tão rápida que escapa à consciência. De tal modo que se pode dizer que as operações da máquina inteligente formam o “inconsciente” humano. A crítica a uma tal concepção teria, primeiro, de provar que o inconsciente freudiano — ou, mais geralmente, o inconsciente das terapias “psi” (se uma tal generalização é pertinente) — seria subsumido pela categoria mais vasta de “inconsciente inteligente”. A cura de um trauma ou de um bloqueio psíquico seria redutível à resolução de um problema cognitivo. Em segundo lugar, teria de mostrar que o poder da “intuição inconsciente” do cérebro que, por exemplo, soluciona subterraneamente funções matemáticas, difere da computorização de algoritmos. Enquanto esta parte de múltiplos dados para chegar a um resultado geral, através de operações, sobretudo, de deep learning, o cérebro parece “intuir” imediatamente, desde o início, a solução geral. Para determinar o trajecto mais curto entre duas cidades, a máquina compara dados diferentes, a uma velocidade astronómica, indo de patamar em patamar — como para encontrar a melhor jogada de xadrez. O cérebro não faz o mesmo trabalho, a uma velocidade reduzida, mas parece alcançar de um golpe a solução.
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José Gil: "Esta fé absoluta na superioridade do ser humano sobre todo o universo condiciona as políticas actuais quanto ao estatuto e à função a atribuir à tecnologia da IA na sociedade do futuro" Getty Images
Estas diferenças entre as operações da IA e da inteligência natural não nos dão uma ideia clara do que as distingue: afinal, a primeira parece não fazer mais — e já é muitíssimo — do que elevar à potência na complexidade e a velocidade do que o cérebro humano pode realizar no plano cognitivo. Mais elucidativo seria evocar as diferenças que as separam noutros planos, na esfera do infraverbal, por exemplo. Um artista pensa, faz trabalhar uma inteligência própria a que se pode chamar sensível e imaginativa e não somente intelectual. Las Meninas, de Velásquez, ou o Quadrângulo Preto sobre Branco, de Malevitch, requereram muito trabalho inteligente, resolveram muitos problemas de natureza diferente. Uma Fuga de Bach ou a Odisseia, de Homero, são produtos sofisticadíssimos da inteligência natural. Analogamente, um pintor pensa com imagens e ritmos e um compositor com sons e intensidades.
Se bem que se construam já partituras “schubertianas”, se imaginem quadros “rafaelitas” ou peças shakespearianas fabricadas pela IA, não se vê como uma máquina pode criar, produzir uma obra nova e original que revolucione toda uma tradição e abra caminhos imprevistos à criação artística. Para tanto, seria preciso que a máquina tivesse um corpo. Ora, o corpo humano compõe-se de outros corpos, de corpos animais, de plantas, de luz e sombra selvagens, de partículas cósmicas. Um pintor devém cão quando transpõe o ladrar numa cor; Hokusai devinha pato para pintar um pato; Cézanne tornava-se espaço para pintar o flanco da montanha de Sainte-Victoire. O corpo de que falamos é um corpo em devir.
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Quadrângulo Preto sobre Branco (1918), de Kasimir Malevich
O poder da transformação inumana do homem
As relações do robô com o espaço dependem de sensores que dividem e localizam os objectos de modo preciso. Não recebem impressões “extra-sensoriais”, pequenas percepções e atmosferas. Nem o seu espaço do corpo (que não possui) se confunde com o espaço objectivo, como acontece no corpo humano (e se vê claramente manifestar-se no bailarino). O “corpo” do robô não segrega um espaço, como o corpo real segrega o seu espaço do corpo, todo indivisível que envolve, dilata e encolhe, prolonga o corpo próprio para além dos seus limites. O do robô não tem interior nem exterior, não tem plasticidade interna nem intuição do mundo. Não segrega um tempo próprio, uma duração. Não tem antepassados nem herdeiros. Não conhece o tempo, não morre, nem se reproduz como uma célula viva. O tempo dos computadores e de todo o tipo de aparelhos de IA tende para a instantaneidade, como se o objectivo último fosse a abolição da duração.
É toda esta simbiose com o espaço e o tempo que falta às máquinas, e faz do corpo humano o corpo-devir que suporta a criação. O devir-animal do corpo humano advém de ele herdar filogeneticamente toda a cadeia evolutiva da animalidade. Por isso, é o único ser capaz de um devir-animal tão abrangente, devir-verme, devir-borboleta ou devir-jaguar. Impossível de conceber um legado análogo no ADN de um robô.
Diremos, então: o que faz a característica própria da inteligência humana é a capacidade do corpo de se tornar outro, animal, planta ou mineral, poder único que escapa às máquinas e à definição racionalista do ser humano. Longe do antropocentrismo do humanismo tradicional, é o poder de transformação inumana do homem que melhor o caracteriza como humano e distingue a sua inteligência da IA. Mas saber que a IA não poderá jamais superar as capacidades criativas da mente humana não nos deve sossegar. As consequências futuras — que já hoje se desenham — da aplicação prática das máquinas inteligentes dependem do uso que se lhes der.
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Saber que a IA não poderá jamais superar as capacidades criativas da mente humana não nos deve sossegar
José Gil
Ora, esse uso vai numa direcção precisa: ditado fundamentalmente por imperativos económicos e pelo mercado, o desenvolvimento das novas tecnologias impõe tarefas que tendem a tornar-se únicas e exclusivas. O trabalho e o campo da experiência tendem, pois, a limitar-se ao que é concebido pelos algoritmos da IA. O leque da experiência sensível, das pulsões, das ideias, da volição e da imaginação reduzir-se-á e fechar-se-á sobre si, condicionando as necessidades e o desejo. A experiência empobrecerá, tornando-se finita.
A linguagem da IA — o léxico e as expressões próprias do funcionamento da IA, mas, sobretudo, as transformações a que a linguagem natural ficará sujeita, como se vê já com os likes e os emojis —, os chatbots, os programas de respostas ao cliente, os assistentes virtuais, as centrais de atendimento, as criações de conteúdos algoritmizados modificarão a experiência afectiva e cognitiva de todo o tipo de utentes — quer dizer, de todos nós. O mundo dos serviços, da economia e das interacções sociais transformar-se-á profundamente. Reduzir-se-á drasticamente a criação linguística e cultural. Toda essa linguagem vai provocar uma outra aprendizagem, outras maneiras — empobrecidas — de sentir e de se comportar. Formar-se-ão partituras emocionais inéditas, novos códigos de pensamento. Cada vez mais os seres humanos raciocinarão como máquinas, falarão e sentirão como elas.
O pior, nesta situação, é que ela será aceite sem que as subjectividades disso se apercebam. Numa palavra, a limitação e a previsibilidade a que a IA obrigará a experiência humana, e até a imprevisibilidade programada, o número restrito de sensações e pensamentos a que estará condenada, consagrarão, na prática, a vitória das máquinas sobre o poder inventivo dos seres humanos. Mais, as obras de arte algoritmizadas serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme complexidade — nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.
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