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segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

 



O Mundo perdeu o medo!

(Hugo Dionísio, in CanalFactual, 04/12/2023)


Embora os Estados Unidos tenham vindo a resistir à pressão para a desdolarização, conseguindo colocar o dólar a crescer 1% em relação ao ano passado (até Setembro), enquanto moeda de reserva, esta resiliência é conseguida à custa de muito endividamento. Com efeito, a estratégia utilizada pela Casa Branca para manter o dólar no topo e impedir a indesejada (também para a China) bola de neve em que se transformará a saída desta moeda, assenta em taxas de juro muito altas, entre as mais altas do mundo ocidental.

Ou seja, a informação para o mercado é que a economia americana está em expansão, mas, ao mesmo tempo, ao invés desta boa saúde se refletir em juros baixos para a emissão de títulos do tesouro, acontece, precisamente o contrário. Como forma de atrair compradores para o dólar, a estratégia da reserva federal tem sido a de garantir yields (rentabilidades) mais elevadas. Ver aqui.

O problema, desta estratégia, é que aumenta exponencialmente o serviço da dívida pública americana, prevendo-se que, dentro de poucos anos, o serviço chegue a 25% da receita fiscal anual. Daí que, se em Setembro a Reuters dava boas indicações para quem comprava dólares, agora, no final do corrente ano, o discurso mudou de forma diametral.

A maioria dos analistas que a Reuters inquiriu na sua pool, realizada entre dia 03 e 07 de Novembro, retirou a conclusão de que, para o ano de 2024, o dólar perderá espaço para outras moedas regionais e provenientes de mercados emergentes. Ver aqui.

Existem já várias movimentações que apontam nesse sentido: Lena Petrova, no seu canal Youtube, noticiou que, neste momento, os bancos americanos estão com mais de 684 biliões de dólares em perdas relacionadas com de títulos do tesouro americano não vendidos. Ver aqui .

Acresce agora que, para tornar tudo mais negro e depois da própria Reuters voltar a publicar que os investidores estão a despejar dólares no mercado, para poderem realizar ganhos, pois sabem que, para o ano a taxa de juro irá ser reduzida (não é preciso ser esperto, pois, o endividamento não pode continuar a este ritmo), depois do Iraque, vêm agora os Emirados Árabes Unidos anunciar que, para o ano de 2024, acabam-se os almoços grátis. Com efeito, com a entrada para os BRICS, os EAU deixarão de negociar petróleo em dólares, passando a fazê-lo apenas em moedas nacionais, tendo já começado a fazê-lo com a India, vendendo petróleo em rúpias. Ver  aqui. Está tudo farto de um papel que nem o papel vale. Só vale para se ser invadido, bloqueado, sancionado e ameaçado.

Ora, esta é apenas a face visível do processo de complexificação das relações internacionais entre os estados, processo esse a que se convencionou designar de “Multipolaridade”, por oposição a “Unipolaridade”. A este processo não estarão alheios dois factos:

·         O apoio inequívoco a Israel que visa segurar aquele que é a guarda avançada do petrodólar e que tem custado tanto apoio interno ao projeto hegemónico, nomeadamente, por parte da juventude que não consegue conviver com o genocídio ao vivo e a cores.

·         À entrada de dois porta-aviões, um no Mediterrâneo e outro no Mar Vermelho, que visavam praticar a chamada “deterrence” (dissuasão), usando uma arma que os EUA ainda possuem, a força naval.

Há que meter medo para tentar travar uma tendência que, no pensar da Casa Branca, nem deveria ter começado. Não parece é que esteja a dar certo, pelo menos pelas impressões que do Irão têm vindo. Com efeito, face à falta de armas que a NATO tem evidenciado, são os EUA, agora, a não estarem interessados em guerras militares de elevada escala.

Não podendo, ou querendo, ir já para a fase militar (pelo menos no Médio Oriente, como acredito), os EUA jogam tudo noutros campos. Neste processo enquadram-se também as recentes denúncias que acusam o presidente da COP-28 de usar a sua posição para fazer charme a favor do uso de combustíveis fósseis. Afinal, o Sultão Ahmed Al Jaber é apenas CEO da Abu Dhabi National Oil Company (Adnoc), que no ano passado vendeu 2.7 milhões de barris. Sabendo-se que os EAU querem aumentar a produção em 2024, não era preciso ser-se um génio para saber para que quereria o Sultão tal poiso.

E se isto diz tanto do que é a COP-28 e de como veem estes tipos o problema da poluição, também diz muito do porquê de só agora se ter levantado o problema. Por que razão, só agora, logo BBC e New York Times vieram denunciar a situação? Pois… O meu palpite está precisamente nas ações dos Emirados em matéria de petrodólar e de reposicionamento geopolítico. Ou seja, mais preocupação com o meio ambiente.

Mas, para aqui chegarmos, ao ponto em que os EUA tentam esconder a queda, em que já vão, por todos os meios ao seu alcance, inclusive, à custa de afundarem a vassalagem europeia; algo foi acontecendo que, na essência e no substrato, representou o despertar para a liberdade de muitas nações, antes prisioneiras, passarem a pensar pelas suas cabeças. O que é que se terá passado, então, que tão grande segurança dá a estas nações?

Enquanto descansavam à sombra da arquitetura hegemónica construída a partir da Segunda Guerra Mundial, segundo a qual dominam as instâncias saídas de Bretton Woods, fazendo-as dançar ao som do consenso de Washington, o resto do mundo, os chamados “países emergentes”, tão desprezados pelas elites oligárquicas americanas, foram-se reorganizando e cooperando mutuamente.

O estudo “multipolar ou Multiplex? Interaction capacity, global cooperation and world order” dá-nos uma visão do barro com que o mundo multipolar (ou o mundo multiplex como lhe chamam no estudo) foi sendo construído.

Analisando cerca de 33.104 tratados comerciais assinados entre 1945 e 2017, este trabalho permite retirar conclusões muito importantes:

·         É após a queda da URSS que se dá a construção da base sobre a qual irá assentar o “mundo multipolar”, sendo o período de 1991-2005 aquele em que mais tratados de cooperação comercial se assinaram;

·         Até 1990, os EUA eram o país que, todos os anos mais contratos assinavam, sendo ultrapassados pela Alemanha entre 1991-2005 e 2006-2017;

·         O Reino Unido que era sempre o segundo, entre 1976-1990 foi ultrapassado pela Alemanha;

·         Nos períodos 1991-2005 e 2006-2017, o Reino Unido foi ultrapassado por Brasil, França, Holanda, Coreia do Sul, Austrália, Turquia, Argentina, Japão, México Espanha, Suíça, Africa do Sul…;

·         Os próprios EUA, entre 2006-2017 estão na casa das duas centenas de acordos celebrados, tal como Austrália, Turquia, Argentina, Arica do Sul.

·         Ao longo dos anos, a própria centralidade dos EUA em matéria de cooperação foi-se mantendo, mas observa-se uma aproximação desse centro por vários países, principalmente europeus.

·         A China, por exemplo, passou do 37.º país a 13.º com mais acordos celebrados.

·         Interessante é também o aprofundamento do agrupamento de países (clusters), com muito relevo para um cluster nórdico estabelecido a partir de 1991, entre a Federação Russa e os países escandinavos, mais a Islândia e a Etiópia (sim, a Etiópia), a que se juntou, depois, Israel;

·         A partir de 1991 a Alemanha surge a liderar o segundo maior cluster mundial (a seguir ao dos EUA);

·         A Alemanha, a ASEAN, México, Brasil, China e Coreia do Sul parecem ser os que mais se fortaleceram com o adormecimento dos EUA.

Estes dados, que podem ser consultados aqui, dão-nos pistas extremamente importantes para caracterizar o declínio do império hegemónico, bem como para explicar o que aconteceu com a Europa.

Os EUA, está bom de ver, adormeceram à sombra da vitória. Derrotada a URSS, não mais os EUA se preocuparam como antes no estabelecimento e crescimento das suas redes transnacionais. Foi o tempo da arbitrariedade, da hegemonia, do quero, posso e mando. O que esta realidade reflete, a meu ver, é também a crescente incapacidade por parte dos EUA em fazerem acordos que não fossem exatamente como queriam. O mundo viu a verdadeira cara dos EUA, a sua arrogância e supremacismo, e não gostou, começando a trabalhar na base e surdamente, para a viragem que agora estamos a presenciar.

Quando acordaram, os EUA viram o perigo de autonomização da Europa, principalmente a União Europeia, resquício da guerra fria e instrumento de combate político anticomunista. A Alemanha crescia fortemente, à custa da energia e matérias-primas baratas da Rússia e dos tratados que ia fazendo por todo o mundo. Foi o tempo da Alemanha motor da EU e do Eixo Franco-Alemão. Não nos podemos esquecer do papel da NATO (keep Germany down; Russia out and other in – colocar a Alemanha em baixo, a Rússia fora e os outros dentro). As coisas estavam a sair “dos eixos”.

A norte, os países escandinavos iam resistindo às formas mais brutais de neoliberalismo, protegendo o seu modelo com recurso à energia e matérias-primas baratas da Rússia, bem como a um mercado de mais de 200 milhões de pessoas (Rússia e EAEU) para escoar os seus excedentes.

É aqui que se torna ainda mais trágico o suicídio europeu, em particular o alemão e o francês. Mas como é que, de uma assentada, entre 2017 e 2022, estes países prescindem dos seus fatores mais vantajosos? Degradação democrática à parte, infiltração da CIA e muita corrupção e tráfico via mundo académico e comunicação social, à parte, foi o reabrir do capítulo da guerra fria que permitiu o acordar dos arquétipos adormecidos que tinham estado na origem da EU – o anticomunismo primário, o reacionarismo e o pensamento neocolonial em relação aos países considerados “menores”.

Uma autêntica tragédia, que se agravou com a tragédia da NATO na Ucrânia e que se acelerará logo que já não se possa esconder que a NATO é supérflua, anacrónica e ultrapassada como estrutura. O mundo, a natureza e a história não precisa dela. Todos sabem que, quando olham para a NATO, é Washington que veem. A própria EU não está longe dessa visão também, pois quem aceita autoflagelar-se como o fez a Comissão Europeia, colocando em depressão os países que a alimentam, em nome de interesses que se situam do outro lado do Atlântico, não pode ir muito longe.

A guerra que opõe a NATO à Rússia, em solo Ucraniano e usando o povo ucraniano como exército, e, agora, a limpeza étnica sionista em curso, serão dois dos episódios trágicos da queda da “hegemonia liberal” como lhe chama o estudo.

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