Hoje trago boas notícias
É refrescante ouvir falar em insatisfação esclarecida. Digo uma insatisfação a que a charlatanice política não consegue dar resposta e que exige efetivamente justiça social.
O European Social Survey (ESS) é um dos mais respeitados inquéritos europeus. É coordenado por uma equipa científica e está fortemente ligado à academia também em Portugal. As suas conclusões merecem ser tidas em atenção e interpretadas. Soubemos esta semana do último inquérito sobre os portugueses.
Concluíram que estão insatisfeitos com o estado da democracia no que diz respeito à igualdade perante a lei nos tribunais e à capacidade dos governos de reduzirem a desigualdade e de protegerem os pobres. O índice mais negativo é precisamente o que mostra o descontentamento pela falta de “igualdade perante a lei nos tribunais.” Logo a seguir, os índices negativos ligados à insatisfação com a “proteção contra a pobreza” e à “redução da desigualdade de rendimentos”.
Entendo que este é um grande tema e explico-vos porquê.
Os resultados deste inquérito revelam que os portugueses têm as prioridades certas e as preocupações legítimas. Habituámo-nos a ouvir falar no descontentamento dos portugueses e na facilidade com que o populismo de extrema-direita se aproveita dele para corromper a democracia. Diz-se que os portugueses descontentes são presas fáceis para o oportunismo.
É pois refrescante ouvir falar em insatisfação esclarecida. Digo uma insatisfação a que a charlatanice política não consegue dar resposta e que exige efetivamente justiça social. Os portugueses querem que o sistema democrático permita que todos tenham o mesmo tratamento perante a lei nos tribunais. Perfeito. O sistema democrático tem obrigação de lhes assegurar isso mesmo.
Reparem que esta insatisfação não tem nada que ver com desejos de justicialismo, que têm velada a ideia de que quase todos são corruptos, e a exigência de meter bandidos na prisão. Não, o ESS não detectou que os portugueses exigem uma “limpeza”. As suas insatisfações, e as correspondentes exigências, só podem ser preenchidas com propostas sérias e eficazes de intervenção no sistema judicial, que garantam a todos o acesso à Justiça. Isto não decorre de uma justiça vingativa e severa, com penas duríssimas ou de qualquer outra proposta populista com que temos sido bombardeados.
Por outro lado, os portugueses exigem uma maior proteção contra a pobreza e medidas tendentes à redução da desigualdade de rendimentos. Nesta conclusão do inquérito está contida a parte mais importante do programa político de qualquer força de esquerda. Esta é a matriz essencial do combate político. Sobretudo acredito que, novamente, esta é uma reivindicação de cidadãos esclarecidos, de sujeitos políticos e politizados.
A ideia de que a luta contra as desigualdades sociais é unicamente uma questão de justiça social está ultrapassada. Estudos têm revelado que representa também um factor de desenvolvimento económico. Chamo a atenção para um estudo do Banco Mundial, publicado em 2005, que revelava que a desigualdade social contribui para o atraso económico. Esta ideia é politicamente revolucionária, na medida em que vemos consolidado no discurso político que a luta contra as desigualdades sociais é conflituante com as aspirações de prosperidade e desenvolvimento económico dos países. Um pouco como se atender os interesses das pessoas e das famílias – neste caso das mais pobres – representasse um contratempo para quem se preocupa com o crescimento das economias.
Mas não era preciso um estudo do Banco Mundial. A simples observação dos países onde as desigualdades sociais são mais acentuadas obriga a chegar à mesma conclusão. Os países do Norte da Europa são os países do mundo com menores índices de desigualdade e com maior desenvolvimento económico. A África subsariana e a América Latina ocupam a posição contrária. É o próprio mercado que precisa de igualdade social.
Os portugueses não estão satisfeitos com a democracia e são sábios nos reparos que lhe fazem. Existe aqui espaço e oportunidade para o debate de ideias e para a apresentação de propostas que enriquecerão a campanha eleitoral que se avizinha. Temos permitido que seja a extrema-direita a assumir o papel de proximidade com as pessoas, quando não tem nenhuma proposta útil para resolver os seus problemas. Como escreveu William Butler Yeats: “Aos melhores falta convicção e aos piores sobeja apaixonada intensidade.” Não pode ser. Nos resultados do ESS vejo uma réstia de esperança para a política e a prova de que devemos confiar nos portugueses.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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