A Propaganda Imperialista e a Ideologia da Intelligentsia da Esquerda Ocidental
(Parte II/II)
Zhao Dingqi
O seu objetivo global foi claramente afirmado pelo diretor da CIA, William Casey, na sua primeira reunião de pessoal em 1981: "Saberemos que o nosso programa de desinformação está completo quando tudo aquilo em que o público americano acredita for falso.
ZD: Slavoj Žižek é um académico que tem tido uma grande influência nos atuais círculos académicos da esquerda global e, claro, há muitas controvérsias. Porque é que o vê como um "bobo da corte capitalista"?[i]
GR: Žižek é um produto da indústria da teoria imperial. Como Michael Parenti salientou, a realidade é radical, o que significa que as pessoas que trabalham no mundo capitalista enfrentam lutas muito reais e materiais pelo emprego, habitação, cuidados de saúde, educação, um ambiente sustentável, e assim por diante. Tudo isto tende a radicalizar as pessoas, e muitas gravitam em torno do marxismo porque este explica realmente o mundo em que vivem, as lutas que enfrentam e apresenta soluções claras e acionáveis. É por esta razão que aparelho cultural capitalista tem de lidar com um interesse muito real no marxismo por parte das massas trabalhadoras e oprimidas. Uma tática que desenvolveu, particularmente para o público-alvo dos jovens e dos membros do estrato profissional da classe dirigente, é a de promover uma versão altamente mercantilizada do marxismo que perverte a sua substância fundamental. Tenta, assim, transformar o marxismo numa marca da moda a ser vendida como qualquer outra mercadoria, em vez de um quadro teórico e prático coletivo para a emancipação da sociedade orientada para a mercadoria.
Žižek é perfeito para este projeto em muitos aspetos. É um informador nativo anticomunista que cresceu na República Socialista Federativa da Jugoslávia (RSFJ). Afirma regularmente que a sua experiência subjetiva como intelectual pequeno-burguês que procurou uma carreira mais elevada no Ocidente lhe confere um direito especial de testemunhar a verdadeira natureza do socialismo. As anedotas pessoais sobre a sua experiência na RSFJ substituem assim a análise objetiva. Não surpreende que, para um oportunista à procura de glória, Žižek tenha sentido a sua pátria socialista como inferior aos países capitalistas ocidentais, que lhe proporcionaram uma ascensão tal que o levaram a ser reconhecido como um dos principais pensadores globais pela revista Foreign Policy (um braço virtual do Departamento de Estado dos EUA).
Žižek gaba-se abertamente do papel que desempenhou pessoalmente no desmantelamento do socialismo na RSFJ. Foi o principal colunista político de uma proeminente publicação dissidente, Mladina, que o Partido Comunista Jugoslavo acusou de ser apoiada pela CIA. Também foi cofundador do Partido Liberal Democrático e candidatou-se à presidência da primeira república separatista da Eslovénia, prometendo que iria "ajudar substancialmente na decomposição do aparelho ideológico real-socialista do Estado [sic]".[ii] Embora tenha perdido por uma margem estreita, apoiou abertamente o Estado esloveno e o seu partido no poder após a restauração do capitalismo e, portanto, durante todo o processo brutal de terapia de choque capitalista que levou a um declínio catastrófico do nível de vida da maioria da população (mas não para ele!). O partido pró-privatização que cofundou estava também claramente orientado para a integração no campo imperialista, uma vez que era o principal defensor da adesão à União Europeia e à NATO.
Vejo este liberal da Europa de Leste como o bobo da corte do capitalismo, porque faz do marxismo motivo de chacota, e é precisamente por isso que tem sido tão amplamente promovido pelas forças dominantes da sociedade capitalista. Em vez de uma ciência coletiva de emancipação enraizada em lutas materiais reais, o marxismo, tal como ele o entende, é, acima de tudo, um discurso provocador de chicana intelectual que se resume à postura política pequeno-burguesa de um enfant terrible oportunista. As suas artimanhas e o seu fato de fantasia de comuna fazem as delícias da burguesia e captam a curta atenção dos incultos. Como um bobo da corte, tem o dom de provocar o riso das pessoas, o que se traduz facilmente em "likes" e "hits" na era digital. É também particularmente bom a vender os produtos de Hollywood e do aparelho cultural burguês em geral. O capital rei adora obviamente este malandro, que lhe encheu os bolsos. Como qualquer bom bobo da corte, ele conhece os limites do decoro cortês e acaba por respeitá-los, denegrindo o socialismo realmente existente, promovendo a acomodação capitalista e, muitas vezes, até apoiando diretamente o imperialismo. Se ele é de facto o "intelectual mais perigoso do mundo", como é por vezes descrito pela imprensa burguesa, é porque põe em perigo o projeto marxista de lutar contra o imperialismo e construir um mundo socialista.
Confirmando a relação bem estabelecida entre a elevação objetiva e a deriva subjetiva para a direita, Žižek tem-se tornado cada vez mais reacionário no seu apoio anticomunista ao imperialismo. Considere-se o seu juízo perentório relativamente aos esforços atuais para desafiar o neocolonialismo em África: "é evidente que as revoltas 'anticoloniais' na África Central são ainda piores do que o neocolonialismo francês. "[iii] Noutra intervenção pública recente, ele forneceu uma ilustração notavelmente clara do tipo de revolução que apoia. Discutindo as revoltas do verão de 2023 em França, na sequência do assassínio de Nahel Merzouk pela polícia, baseou-se na importante visão marxista - como faz frequentemente em relação a tudo o que afirma ser coerente - de que as revoltas falharão se não houver uma estratégia organizacional que as leve à vitória. Depois, deu um exemplo de uma revolução bem sucedida: "Os protestos públicos e as revoltas podem desempenhar um papel positivo se forem sustentados por uma visão emancipatória, como a revolta de Maidan de 2013-14 na Ucrânia. "[iv] Como foi amplamente documentado, a revolta de Maidan foi um golpe de estado fascista que foi fomentado e apoiado pelo aparelho de segurança nacional dos EUA.[v] Isto significa que ele considera que um golpe fascista apoiado pelo imperialismo, a que Samir Amin se referiu como um "putsch euro-nazi", é um exemplo "positivo" de uma "visão emancipatória" que conduziu a uma revolução bem sucedida.[vi] Esta posição, bem como o seu apoio firme à guerra por procuração entre os EUA e a NATO na Ucrânia, clarifica o que significa ser o "intelectual mais perigoso do mundo": ele é um filo-fascista mascarado de comunista.
ZD: Os Estados Unidos são há muito considerados pelo Ocidente como um modelo de democracia liberal. Mas pensa que a América nunca foi uma democracia[vii] . Pode explicar o seu ponto de vista?
GR: Objetivamente, os Estados Unidos nunca foram uma democracia. Foram fundados como uma república, e os chamados pais fundadores eram abertamente hostis à democracia. Isto é evidente nos Federalist Papers, nas notas da Convenção Constitucional de 1787 em Filadélfia e nos documentos fundadores dos Estados Unidos, bem como na prática material de governação que foi originalmente estabelecida na colónia de colonos. Como toda a gente sabe, a população indígena dos Estados Unidos, referida como os "selvagens índios impiedosos" na Declaração de Independência, não foi dotada de poder democrático na recém-criada república, nem as pessoas escravizadas de África ou as mulheres.[viii] O mesmo se aplica aos trabalhadores brancos comuns. Tal como estudiosos como Terry Bouton documentaram em pormenor: "a maioria dos homens brancos comuns... não pensava que a [chamada] Revolução Americana tivesse terminado com governos que fizessem dos seus ideais e interesses o objetivo principal. Pelo contrário, estavam convencidos de que a elite revolucionária tinha refeito o governo para se beneficiar a si própria e para minar a independência das pessoas comuns".[ix] Afinal, a Convenção Constitucional não estabeleceu eleições populares diretas para o Presidente, o Supremo Tribunal ou os senadores. A única exceção foi a Câmara dos Representantes. No entanto, as qualificações eram definidas pelas legislaturas estaduais, que quase sempre exigiam a posse de propriedade como base para o direito de voto. Não surpreende, portanto, que os críticos progressistas da altura tenham chamado a atenção para este facto. Patrick Henry afirmou categoricamente em relação aos Estados Unidos: "Não é uma democracia. "[x] George Mason descreveu a nova constituição como a "mais ousada tentativa de estabelecer uma aristocracia despótica entre homens livres, que o mundo alguma vez testemunhou. "[xi]
Embora o termo república fosse largamente utilizado para descrever os Estados Unidos na altura, a situação começou a mudar no final da década de 1820, quando Andrew Jackson - também conhecido como "Assassino de Índios" pelas suas políticas genocidas - fez uma campanha presidencial populista. Apresentou-se como um democrata, no sentido de um americano médio que iria pôr fim ao domínio dos patrícios de Massachusetts e da Virgínia. Apesar de não terem sido introduzidas quaisquer alterações estruturais no modo de governação, políticos como Jackson e outros membros da elite e seus gestores começaram a utilizar o termo democracia para descrever a república, insinuando assim que esta servia os interesses do povo.[xii] Esta tradição manteve-se, evidentemente: a democracia é um eufemismo para o domínio burguês oligárquico.
Ao mesmo tempo, houve dois séculos e meio de luta de classes nos Estados Unidos, e as forças democráticas obtiveram frequentemente concessões muito significativas da classe dominante. O domínio das eleições populares foi alargado para incluir os senadores e o presidente, apesar de o colégio eleitoral ainda não ter sido abolido e de os juízes do Supremo Tribunal ainda serem nomeados vitaliciamente. O direito de voto foi alargado às mulheres, aos afro-americanos e aos nativos americanos. Estes são ganhos importantes que devem, evidentemente, ser defendidos, alargados e tornados mais substanciais através de reformas democráticas profundas de todo o processo eleitoral e de campanha. No entanto, por muito importantes que sejam estes avanços democráticos, não alteraram o sistema global de domínio plutocrático.
Num estudo muito importante baseado em análise estatística multivariável, Martin Gilens e Benjamin I. Page demonstraram que "as elites económicas e os grupos organizados que representam interesses empresariais têm impactos independentes substanciais na política governamental dos EUA, enquanto os cidadãos comuns e os grupos de interesse de massas têm pouca ou nenhuma influência independente".[xiii] Esta forma plutocrática de governação não é apenas operativa a nível interno, claro, mas também a nível internacional. Os Estados Unidos têm tentado impor a sua forma antidemocrática de governo empresarial onde quer que possam. Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 2014, de acordo com a pesquisa sedutora de William Blum, tentaram derrubar mais de cinquenta governos estrangeiros, a maioria dos quais tinha sido democraticamente eleita.[xiv] Os Estados Unidos são um império plutocrático, não uma democracia em qualquer sentido significativo ou substantivo do termo.
Reconheço, claro, que expressões como democracia burguesa, democracia formal e democracia liberal são frequentemente utilizadas, por várias razões, para indexar esta forma de plutocracia. Também é verdade, e vale a pena sublinhar, que a existência de certos direitos democráticos formais sob o domínio plutocrático é uma grande vitória para o povo trabalhador, cuja importância não deve agora ser minimizada. O que precisamos, em última análise, é de uma avaliação dialética que tenha em conta a complexidade dos modos de governação, que incluem, nos Estados Unidos, o controlo oligárquico do Estado e direitos importantes que foram conquistados através da luta de classes.
ZD: Como é que avalia a "liberdade de expressão" defendida pela burguesia? A "liberdade de expressão" existe realmente no mundo burguês atual?
GR: A ideologia burguesa procura isolar a questão da liberdade de expressão da questão do poder e da propriedade, transformando-a assim num princípio abstrato que rege as ações de indivíduos isolados. Esta abordagem tenta excluir qualquer análise materialista dos meios de comunicação e a questão importantíssima de quem os possui e controla. Esta ideologia desloca, assim, todo o campo de análise da totalidade social para a relação abstrata entre princípios teóricos e atos de fala individuais isolados.
Uma das vantagens desta abordagem é que pode ser atribuído a alguém o direito abstrato à liberdade de expressão precisamente porque está desprovido do poder de ser ouvido. Esta é a condição da maioria das pessoas que vivem no mundo capitalista. Em princípio, podem exprimir as suas opiniões individuais da forma que entenderem. No entanto, na realidade, essas opiniões tornar-se-ão em grande parte irrelevantes se não corresponderem aos pontos de vista que os proprietários dos meios de comunicação gostariam de transmitir. Simplesmente não lhes será dada uma plataforma. Uma vez que a classe dominante tem um poder tão grande sobre os meios de comunicação que convenceu muitas pessoas de que a censura não existe, estas opiniões podem até ser abertamente suprimidas ou proibidas sem que o público em geral dê muita importância.
Se os pontos de vista fora da corrente dominante capitalista são capazes de ganhar uma vasta audiência e começar a construir um poder real, então sabemos o que a classe proprietária e o Estado burguês são capazes de fazer. Eles têm um longo historial de eliminar todo e qualquer apelo à liberdade de expressão em nome da destruição dos seus inimigos de classe e de qualquer infraestrutura que apoie a livre circulação das suas ideias. Poderíamos citar como exemplos os Alien and Sedition Acts, os Palmer Raids, o Smith Act, o McCarran Act, a era McCarthy ou a "nova" Guerra Fria. Desde o início da operação militar especial russa na Ucrânia, o mundo tem recebido uma lição objetiva do controlo quase total da burguesia sobre os meios de comunicação nos Estados Unidos. Para além da extensa censura no YouTube e nas redes sociais, em particular à Russia Today e ao Sputnik, todos os principais meios de comunicação social têm marchado a par e passo com a sua propaganda anti-Rússia e anti-China, bem como com o rufar de tambores para um apoio inquestionável à guerra por procuração dos EUA (embora, mais recentemente, alguns conservadores tenham passado a ver isto como uma oportunidade para se apresentarem como, de alguma forma, anti-guerra). O direito à liberdade de expressão defendido pela burguesia equivale à liberdade da classe dominante de possuir os meios de comunicação, de modo a poder decidir livremente quais os pontos de vista que merecem ser amplificados e amplamente divulgados e quais os que podem ser marginalizados ou silenciados.
ZD: Num dos seus artigos, mencionou que "os modos fascistas de governação são uma parte muito real e presente da chamada ordem mundial liberal".[xv] Porque pensa assim?
GR: Na minha investigação para um livro, provisoriamente intitulado Fascism and the Socialist Solution, tenho estado a desenvolver um quadro explicativo que põe em causa o paradigma dominante de um Estado e um governo. De acordo com a visão recebida, cada Estado - se não estiver numa guerra civil aberta - tem apenas um modo de governação num determinado momento. O problema com este modelo não dialético pode ser facilmente observado nas chamadas democracias burguesas liberais do Ocidente, como os Estados Unidos.
Tal como documentei num artigo sobre o tema, o governo dos EUA reabilitou dezenas de milhares de nazis e fascistas no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.[xvi] Muitos receberam passagem segura para os Estados Unidos através de operações como a Paperclip e foram integrados nos seus estabelecimentos científicos, de informação e militares (incluindo a NATO e a NASA). Muitos outros foram incorporados em exércitos secretos de retaguarda em toda a Europa, bem como em redes de informação europeias e até no governo (como o Marechal Badoglio em Itália).[xvii] Outros ainda foram canalizados através de linhas de transporte para a América Latina ou para outras partes do mundo. No caso dos fascistas japoneses, eles foram em grande parte recolocados no poder pela CIA. Assumiram o controlo do Partido Liberal e transformaram-no num clube de direita para os antigos líderes do Japão imperial. Esta rede global de anticomunistas experientes, com o poder do império americano, participou em guerras sujas, golpes de Estado, esforços de desestabilização, sabotagem e campanhas de terror. Se é verdade que o fascismo foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, principalmente devido ao sacrifício monumental de cerca de vinte e sete milhões de soviéticos e vinte milhões de chineses, não é de todo verdade que tenha sido eliminado, incluindo no seio das chamadas democracias liberais.
Poderíamos sentir-nos tentados a dizer, como por vezes afirmam os especialistas liberais progressistas, que os Estados Unidos aplicam formas fascistas de governação no estrangeiro, mas mantêm uma democracia na frente interna. No entanto, isso não é exatamente verdade. A análise histórico-materialista, como defendi em alguns dos meus trabalhos, tem sempre de ter em conta três dimensões heuristicamente distintas: a história, a geografia e a estratificação social. É importante, a este respeito, examinar toda a população, e não apenas aqueles que ocupam o mesmo segmento de classe que os especialistas liberais. Veja-se, por exemplo, a população indígena. Sujeitos a uma política genocida de eliminação e depois sequestrados em reservas controladas e supervisionadas pelo Estado americano, muitos deles - sobretudo os mais pobres - continuam a ser alvo do terror policial racista e lutam por direitos humanos e democráticos básicos.[xviii] O mesmo se aplica a segmentos da população afro-americana pobre e da classe trabalhadora, bem como aos imigrantes. É assim que temos de compreender a crítica contundente de George Jackson aos Estados Unidos, a que ele chamou "o Quarto Reich".[xix] Certas partes da população, nomeadamente os pobres racializados e a classe trabalhadora que estão a lutar pela sobrevivência, são muitas vezes governadas principalmente através da repressão estatal e para-estatal, e não através de um sistema de direitos e representação democráticos. Por que razão, então, havemos de assumir que vivem numa democracia? Além disso, para que não nos esqueçamos, os próprios nazis viram nos Estados Unidos a forma mais avançada de apartheid racial e usaram-no explicitamente como modelo.[xx]
O paradigma dos modos múltiplos de governação é dialético, na medida em que está atento às dinâmicas de classe que operam na sociedade capitalista e ao facto de os diferentes elementos da população não serem governados da mesma forma. Os membros do estrato profissional da classe dirigente nos Estados Unidos, por exemplo, gozam de certos direitos democráticos no sentido formal, e estes podem ser invocados com êxito em várias formas de luta de classes legal. Aqueles que estão sob a bota do capitalismo como uma população superexplorada são frequentemente governados de uma forma muito diferente, particularmente se começarem a organizar-se para tirar a bota do pescoço, como foi o caso do Dragão (como Jackson era conhecido). Estão sujeitos ao terror policial e à violência dos vigilantes, e os seus supostos direitos são muitas vezes espezinhados indiscriminadamente, como os vinte e nove Panteras Negras e sessenta e nove ativistas índios americanos mortos pelo FBI e pela polícia entre 1968 e 1976 (segundo os cálculos de Ward Churchill). Teóricos como Jackson, que passou a sua vida adulta na prisão e depois foi morto em circunstâncias suspeitas, não têm tido problemas em chamar a isto fascismo.
Para compreender o verdadeiro funcionamento da governação no capitalismo, é importante adotar uma abordagem dialética fina e atenta às suas diferentes modalidades. A chamada democracia liberal funciona como o polícia bom do capitalismo, prometendo direitos e representação aos súbditos cumpridores. É largamente utilizada para governar os estratos da classe média e média alta, bem como aqueles que a eles aspiram. O polícia mau do fascismo é lançado sobre os segmentos pobres, racializados e descontentes da população, tanto a nível interno como externo. É obviamente preferível ser governado pelo polícia bom, e a defesa e a expansão de formas ainda que limitadas de democracia são objetivos táticos dignos de nota (particularmente quando comparados com o horror de uma completa tomada de controlo fascista do aparelho de Estado). No entanto, é estrategicamente importante reconhecer que - tal como no caso de um interrogatório policial - o polícia bom e o polícia mau trabalham em conjunto para o mesmo Estado e com um objetivo idêntico: manter, ou mesmo intensificar, as relações sociais capitalistas, usando a cenoura da democracia burguesa ou o pau do fascismo.
ZD: Muitas pessoas acreditam que o surgimento do "fenómeno Trump" significa que o perigo do fascismo está a aumentar. Qual é a sua opinião sobre este ponto de vista? Como comenta o facto de os apoiantes de Donald Trump terem invadido o Capitólio em 6 de janeiro de 2021?
GR: Trump encorajou as forças fascistas e incentivou as suas acividades. Ele é um supremacista branco ultranacionalista e um capitalista e imperialista raivoso.[xxi] O fenómeno Trump é, no entanto, um sintoma de uma crise maior dentro da ordem imperialista. Devido ao desenvolvimento persistente de um mundo multipolar, à ascensão da China, aos fracassos do neoliberalismo financeirizado e ao enfraquecimento do poder dos principais estados imperialistas, o fascismo está a crescer em todo o mundo capitalista.
No contexto dos EUA, a campanha presidencial de Joe Biden para as eleições de 2020 foi largamente organizada em torno da ideia de que ele era capaz de salvar o país do fascismo porque respeitaria a transferência pacífica de poder e o Estado de direito. É certamente verdade que uma democracia burguesa é de longe preferível a uma ditadura fascista aberta, e a luta pela primeira em detrimento da segunda é da maior importância. Por mais corrupta, disfuncional e mentirosa que a democracia burguesa tenda a ser, ela permite a certos segmentos da população uma importante margem de manobra para organização, educação política e construção de poder. No entanto, é um erro grave assumir que o Partido Democrata nos Estados Unidos é um baluarte contra o fascismo. Ao assumir o cargo, Biden não tomou medidas imediatas para prender Trump por conspiração sediciosa, e os fascistas no terreno têm sido geralmente tratados com luvas de pelica (notavelmente poucos foram acusados de conspiração sediciosa, e muitas das sentenças foram invulgarmente leves). Só agora, anos depois do acontecimento - e na preparação propagandística para as eleições presidenciais de 2024 - é que alguns dos conspiradores estão a enfrentar penas de prisão e Trump está a ser processado em várias frentes. Além disso, a administração de Biden não tomou medidas sérias para fazer recuar o estado policial dos EUA, a violência policial racista e o sistema de encarceramento em massa (que ele ajudou a construir), nem deu passos significativos para desmantelar as organizações e milícias fascistas. Apesar de Scranton Joe não ter apoiado verbalmente movimentos fascistas locais como o de Trump, o que é claramente um desenvolvimento positivo, a sua equipa tem prosseguido a agenda imperialista dos EUA e apoiado agressivamente o desenvolvimento do fascismo em países como a Ucrânia.[xxii]
Relativamente à invasão do Capitólio, este evento não foi simplesmente uma revolta espontânea contra a eleição de Biden. Como documentei num artigo detalhado sobre o assunto, foi apoiado por um segmento da classe dominante capitalista, e os mais altos níveis do governo dos EUA permitiram que acontecesse.[xxiii] A herdeira do supermercado Publix, Julie Jenkins Fancelli, forneceu cerca de 300 mil dólares para o comício Stop the Steal. O círculo familiar de Trump também esteve diretamente envolvido no financiamento do protesto, para o qual angariou milhões de dólares: "A operação política de Trump pagou mais de 4,3 milhões de dólares aos organizadores do dia 6 de janeiro. "[xxiv] Longe de ser um projeto de base, esta foi uma operação de astroturfing. (marketing de guerrilha) Além disso, há sinais muito claros de que o alto comando dos serviços de informação, os militares e a polícia permitiram - no mínimo - que o Capitólio fosse invadido. Qualquer pessoa familiarizada com as medidas de segurança draconianas em vigor para os protestos progressistas no Capitólio reconheceu isso imediatamente, simplesmente com base nas imagens de vídeo e no facto de que apenas um quinto da Polícia do Capitólio estava de serviço nesse dia e estava mal equipada para os tumultos amplamente previstos. No entanto, sabemos agora que o alto comando do Exército foi diretamente responsável por atrasar o envio da Guarda Nacional e que os agentes do Departamento de Segurança Interna que estavam de prevenção perto do Capitólio não foram mobilizados. Tudo isto, e muito mais, aponta para a cumplicidade dos mais altos níveis do governo dos EUA no saque do Capitólio.
Para qualquer pessoa que tenha estudado seriamente a extensa história das operações psicológicas levadas a cabo pelo aparelho de segurança nacional dos EUA, há elementos do 6 de janeiro que se sobrepõem a essa história. Para ser claro, isto não significa que se tratou de uma conspiração no sentido idiota propagado pelos meios de comunicação burgueses, como se as pessoas que invadiram o Capitólio estivessem todas envolvidas, ou fossem atores pagos, ou algo absurdo desse tipo. Estas operações são levadas a cabo numa base de "necessidade de saber", o que significa que, numa situação ideal, existem apenas algumas pessoas no topo das cadeias de comando que são cúmplices conscientes. Abaixo deles, há muitos que são involuntários e atuam por conta própria. Isto cria um elevado nível de imprevisibilidade e, por conseguinte, fomenta a desejada aparência de ação espontânea vinda de baixo, que dá cobertura aos decisores no topo.
É preciso saber muito mais sobre os operadores de elite envolvidos no financiamento, na promoção e na autorização da tomada do Capitólio. Até que mais informações estejam disponíveis, o que provavelmente acontecerá com o tempo, sabemos pelo menos que foi um evento extremamente útil para a administração Biden. Permitiu que Sleepy Joe (Biden) chegasse ao cargo com a surpreendente auréola de "salvador da nossa democracia", o que não serviu de cobertura para os seus movimentos para a direita e para a guerra contínua da classe dominante contra os trabalhadores. Trump foi quase imediatamente reabilitado, em vez de ser posto na cadeia. Os fantoches de metade da sua administração - pessoas como Tucker Carlson e Alex Jones - ajudaram a construir uma narrativa vaga, segundo a qual ele e os seus seguidores eram vítimas de uma terrível conspiração governamental. Apresentando-se como um renegado amante da liberdade que se opõe ao Grande Governo, preparou-se para outra corrida presidencial como um suposto outsider. Não se sabe até onde irão os atuais processos contra ele, mas o momento é altamente suspeito, uma vez que surgem três anos depois dos factos, numa altura em que o próximo ciclo de eleições presidenciais se prepara para outra corrida de cavalos entre dois candidatos imperialistas.
ZD: Para a esquerda global atual, como devemos resistir à hegemonia ideológica da burguesia? Que tipo de teoria revolucionária devemos construir?
GR: No mundo capitalista, a hegemonia ideológica da burguesia é mantida pelo controlo arrebatador que exerce sobre o aparelho cultural, ou seja, todo o sistema de produção, distribuição e consumo cultural. "Cinco corporações gigantescas", escreve Alan MacLeod, "controlam mais de 90 por cento do que a América lê, vê ou ouve. "[xxv] Estas megacorporações trabalham em estreita colaboração com o governo dos EUA, como discutimos brevemente acima. O seu objetivo global foi claramente afirmado pelo diretor da CIA, William Casey, na sua primeira reunião de pessoal em 1981: "Saberemos que o nosso programa de desinformação está completo quando tudo aquilo em que o público americano acredita for falso. "[xxvi]
São estas as condições objetivas da luta ideológica num país como os Estados Unidos. Por isso, é ingénuo pensar que basta desenvolver uma análise correta e partilhar os nossos pontos de vista individuais, convencendo as pessoas através da argumentação racional e da conversa. Para termos alguma força real, temos de trabalhar coletivamente e temos de encontrar formas de alavancar o poder a nosso favor. Num livro em que estou atualmente a trabalhar com Jennifer Ponce de León, que examina a cultura como um local de luta de classes, distinguimos heuristicamente três táticas diferentes. Em primeiro lugar, a tática do Cavalo de Tróia consiste em utilizar o aparelho cultural burguês contra si próprio, tirando partido da sua extraordinária infraestrutura para contrabandear - e assim disseminar amplamente - mensagens contra-hegemónicas (Boots Riley é um excelente exemplo de alguém que fez isto com sucesso). Uma segunda tática importante é o desenvolvimento de um aparelho alternativo para a produção, circulação e receção de ideias. Há muitos esforços importantes em curso nesta frente, desde meios de comunicação e publicações alternativas a plataformas educativas, espaços culturais, redes de ativistas e centros comunitários. Ponce de Léon e eu estamos ambos envolvidos no Critical Theory Workshop/Atelier de Théorie Critique, que se dedica a este tipo de trabalho.[xxvii] Por último, há os aparelhos socialistas que foram desenvolvidos em países que retiraram o poder à burguesia. As notícias, a informação e a cultura que estão a produzir constituem uma verdadeira alternativa ao aparelho cultural capitalista. Para citar apenas dois grandes exemplos no hemisfério ocidental, a Prensa Latina em Cuba e a Telesur na Venezuela estão a fazer um trabalho incrivelmente importante.
Relativamente ao tipo de teoria revolucionária de que necessitamos, não podia estar mais de acordo com Cheng Enfu. Ele argumentou de forma convincente, seguindo e desenvolvendo o trabalho de muitos outros, que o marxismo é criativo e precisa de ser regularmente adaptado a situações em mudança.[xxviii] Longe de ser uma doutrina gravada na pedra, é aquilo a que Losurdo chamou um processo de aprendizagem que muda com os tempos. No nosso momento atual, há muito trabalho a fazer nesta frente. Para destacar apenas três das questões mais prementes, precisamos de continuar a desenvolver uma teoria revolucionária capaz de compreender e pôr fim ao fascismo, à guerra mundial e ao colapso ecológico.[xxix] Uma vez que vivo e me organizo no núcleo imperial, acrescentarei que também é essencial desenvolver a teoria e a prática revolucionárias nesta região específica, que até agora tem sido imune às tomadas de poder do Estado.
De um modo geral, a teoria revolucionária mais importante é aquela que ajuda na tarefa complicada e difícil de construir o socialismo. Houve muitas surpresas e aprendeu-se muito desde 1917. A situação mundial é hoje muito diferente da que existia nos tempos áureos da Terceira Internacional ou durante a chamada Guerra Fria. Os países socialistas estão a trabalhar em conjunto com os países capitalistas empenhados no desenvolvimento nacional para construir novos quadros internacionais que contrariem a ordem mundial imperial (BRICS+, a Iniciativa Uma Faixa, Uma Estrada, a Organização de Cooperação de Xangai, a ASEAN, etc.). As recentes revoltas na África Ocidental e Central puseram em causa o regime neocolonial francês na região e a prisão do imperialismo ocidental. Compreender e fazer avançar estas e outras lutas de libertação anticolonial e o mundo multipolar emergente é uma tarefa teórica e prática vital. Ao mesmo tempo, é da maior importância ser capaz de elucidar como a contestação da ordem mundial imperialista e o desenvolvimento da multipolaridade podem ser trampolins para a expansão do projeto socialista. Esta é uma das questões mais prementes da atualidade.
Autores:
Gabriel Rockhill é diretor executivo do Critical Theory Workshop/Atelier de Théorie Critique e professor de filosofia na Universidade de Villanova, na Pensilvânia. Está atualmente a terminar o seu quinto livro de autor único, The Intellectual World War: Marxism versus the Imperial Theory Industry (Monthly Review Press, a publicar).
Zhao Dingqi é investigador assistente no Instituto de Marxismo da Academia Chinesa de Ciências Sociais e editor da revista World Socialism Studies.
Esta entrevista foi originalmente publicada em chinês no décimo primeiro volume de Estudos sobre o Socialismo Mundial, em 2023. Foi ligeiramente editada para o Monthly Revue.
[i]Gabriel Rockhill, “Capitalism’s Court Jester: Slavoj Žižek,” CounterPunch, January 2, 2023.
[ii]Ver o debate das eleições de 1990, transmitido na TV arquivado no YouTube: “Slavoj Žižek—1990 Election Debate in Slovenia,” YouTube video, 9:40, posted May 18, 2021, youtube.com/watch?v=942h8enHCZs.
[iii] Slavoj Žižek, “Why the West Will Keep Losing in Africa: Neocolonialism Is Giving Birth to a Wretched Authoritarianism,” New Statesman, September 4, 2023.
[iv]Slavoj Žižek, “The Left Must Embrace Law and Order,” New Statesman, July 4, 2023.
[v]Ver, por exemplo, Collon, Ukraine: La Guerre des images and Pepe Escobar, “Why the CIA Attempted a ‘Maidan Uprising’ in Brazil,” The Cradle, January 10, 2023, new.thecradle.co.
[vi]Amin escreveu: "A tríade organizou em Kiev aquilo a que se deveria chamar um 'putsch euro-nazi'. A retórica dos media ocidentais, afirmando que as políticas da Tríade visam promover a democracia, é simplesmente uma mentira" (Samir Amin, "Contemporary Imperialism", Monthly Review 67, no. 3 [julho-agosto de 2015]: 23-36).
[vii] Ver Gabriel Rockhill, “The U.S. Is Not a Democracy, It Never Was,” CounterPunch, December 13, 2017.
[viii]John Grafton, ed., The Declaration of Independence and Other Great Documents of American History 1775–1865 (Mineola, New York: Dover, 2000), 8. Ver também Roxanne Dunbar-Ortiz, An Indigenous Peoples’ History of the United States (Boston: Beacon Press, 2015) and David Michael Smith, Endless Holocausts (New York: Monthly Review Press, 2023).
[ix]Terry Bouton, Taming Democracy: “The People,” the Founders, and the Troubled Ending of the American Revolution (Oxford: Oxford University Press, 2007), 4.
[x]Ralph Louis Ketcham, ed., The Anti-Federalist Papers and the Constitutional Convention Debates (New York: Signet, 2003), 199.
[xi]Herbert J. Storing, ed., The Complete Anti-Federalist, vol. 2 (Chicago: University of Chicago Press, 2008), 13.
[xii]Embora tenha alguns problemas com o enquadramento geral, apresento muitas das provas empíricas das minhas afirmações no terceiro capítulo deste livro: Gabriel Rockhill, Contre-histoire du temps présent: Interrogations intempestives sur la mondialisation, la technologie, la démocratie (Paris: CNRS Éditions, 2017). Também está disponível em inglês: Contra-História do Presente: Untimely Interrogations into Globalization, Technology, Democracy (Durham: Duke University Press, 2017).
[xiii]Martin Gilens and Benjamin I. Page, “Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens,” Perspectives on Politics 12, no. 3 (September 2014): 564.
[xiv]Ver William Blum, Killing Hope: US Military and CIA Interventions Since World War II (London: Zed Books, 2014), assim como “Overthrowing Other People’s Governments: The Master List” at williamblum.org.
[xv]Gabriel Rockhill, “Liberalism and Fascism: The Good Cop and Bad Cop of Capitalism,” Black Agenda Report, October 21, 2020, blackagendareport.com.
[xvi]Gabriel Rockhill, “The U.S. Did Not Defeat Fascism in WWII, It Discretely Internationalized It,” CounterPunch, October 16, 2020
[xvii]"O Marechal Badoglio, um antigo colaborador de Benito Mussolini, responsável por terríveis crimes de guerra na Etiópia, foi autorizado a tornar-se o primeiro chefe de governo da Itália pós-fascista. Na parte libertada de Itália, o novo sistema assemelhava-se suspeitamente ao antigo e foi, por isso, considerado por muitos como fascismo senza Mussolini, ou 'fascismo menos Mussolini'" (Jacques R. Pauwels, The Myth of the Good War [Toronto: Lorimer, 2015], 119).
[xviii]Ver Dunbar-Ortiz, An Indigenous Peoples’ History of the United States and Smith, Endless Holocausts.
[xix] George L. Jackson, Blood in My Eye (Baltimore: Black Classic Press, 1990), 9.
[xx] Ver, por exemplo, James Q. Whitman, Hitler’s American Model (Princeton: Princeton University Press, 2018).
[xxi]Ver John Bellamy Foster, Trump in the White House: Tragedy and Farce (New York: Monthly Review Press, 2017).
[xxii]Ver Gabriel Rockhill, “Nazis in Ukraine: Seeing through the Fog of the Information War,” Liberation News, March 31, 2022, liberationnews.org.
[xxiii] Ver Gabriel Rockhill, “Lessons from January 6th: An Inside Job,” CounterPunch, February 18, 2022.
[xxiv]Anna Massoglia, “Details of the Money behind Jan. 6 Protests Continue to Emerge,” OpenSecrets News, October 25, 2021, opensecrets.org.
[xxv]Alan MacLeod, ed., Propaganda in the Information Age: Still Manufacturing Consent (New York: Routledge, 2019).
[xxvi]Relativamente à sua origem, ver esta discussão sobre esta afirmação frequentemente citada: Tony Brasunas, "Is the CIA Trying to Deceive All Americans?", 9 de fevereiro de 2023, tonybrasunas.com.
[xxvii]Ver criticaltheoryworkshop.com.
[xxviii]Ver Cheng Enfu, China’s Economic Dialectic (New York: International Publishers, 2021).
[xxix] Um dos marxistas mais importantes dos Estados Unidos, John Bellamy Foster, tem feito um trabalho extremamente importante nestas três frentes.
Fonte: Imperialist Propaganda and the Ideology of the Western Left Intelligentsia – MLToday, publicado e acedido em 04.01.2024
Tradução: IL