O conceito de temperatura média do mundo tem pouco a ver com a ciência.
Publicação:
Diario Octubre
As ideologias pós-modernas assumem que a atmosfera e os oceanos se
aqueceram nas últimas décadas. Eles insistem que é o que eles chamam de
um todo: a "temperatura dimodial" segue uma tendência ascendente. Essa
temperatura é obtida pela coleta de medidas de ar em um grande número de
estações de metano espalhadas pelo mundo, seu peso de acordo com a área
que representam e, em seguida, o cálculo da média anual de acordo com o
método usual de adicionar todos os valores e dividi-los entre o número
de pontos.
No entanto, o conceito de temperatura global é enganoso, tanto a
termodinâmica quanto matematicamente, diz Bjarne Andresen, professor do
Instituto Niels Bohr da Universidade de Copenhague.
É impossível falar sobre uma única temperatura para algo tão complexo
quanto o clima da Terra, diz Andresen, especialista em termodinâmica.
Uma temperatura só pode ser definida para um sistema homogêneo. Além
disso, o clima não é regido por uma única temperatura. Em vez disso, as
diferenças de temperatura impulsionam os processos e criam tempestades,
correntes marinhas, tempestades, etc., que compõem o clima.
A temperatura do mundo é outro conceito tão pouco válido quanto a
classe média, onde um artifício matemático transforma uma sociedade
dividida em classes sociais em algo homogêneo e uniforme. Eles só
precisam repetir entelequias como a de nós todos iguais perante a lei -
ou que todos nós temos os mesmos direitos.
Embora seja possível tratar a temperatura estatisticamente em uma
escala local, não faz sentido falar sobre uma temperatura geral para a
Terra. O planeta consiste em um grande número de componentes que não
podem ser calculados em média. Em economia, faz sentido comparar a taxa
de câmbio das moedas de dois países, mas você não pode falar sobre uma
taxa de câmbio global média.
Se a temperatura cair em um ponto e aumentar em outro, a média
permanecerá a mesma de antes, mas resultará em uma termodinâmica
completamente diferente e, portanto, em um clima diferente. Se, por
exemplo, a temperatura é de 10 graus em um ponto e 40 graus em outro, a
média é de 25 graus. Mas se, por outro lado, a temperatura é de 25 graus
em ambos os pontos, a média ainda é de 25 graus. Estes dois casos
resultariam em dois tipos de condições climáticas completamente
diferentes, uma vez que no primeiro haveria diferenças de pressão e
ventos fortes, enquanto no segundo não haveria vento.
Se, em vez de temperatura, você quiser calcular o assalariado médio, é
quase certo que a medida não leve em conta os desempregados, cujo
salário é zero, então a média cairia um pouco.
Também é quase certo que, no cálculo, um acadêmico incluirá todos os
tipos de renda econômica que não são salários, isto é, que acrescentará
os emolumentos da burguesia, que ganha muito mais dinheiro, que
continuará a aumentar o salário médio.
Outro problema com a temperatura global é que existem muitas maneiras de calcular a média.
Por exemplo, existem dois copos de água do mesmo tamanho. Em um deles
a água é de 0 graus, na outra a 100. Ao adicionar esses dois números e
dividi-los entre dois, você obtém uma temperatura média de 50 graus.
Chama-se um numeracia. No entanto, a média geométrica desses dois
números é de 46 graus. A diferença de 4 graus é a energia que impulsiona
todos os processos termodinâmicos que geram tempestades, trovões,
correntes marinhas, etc.
Eles são apenas dois exemplos de métodos diferentes para calcular
médias e todos são igualmente corretos, mas uma razão física sólida é
necessária para decidir se a temperatura média deve ser calculada de uma
forma ou de outra. Dependendo dele, o mesmo conjunto de dados medidos
pode mostrar simultaneamente uma tendência ascendente e uma tendência de
queda nas temperaturas médias.
Portanto, as conclusões sobre a tendência das temperaturas globais
podem ser o resultado do método matemático usado para obter a média e se
nunca há uma boa explicação de por que um ou outro é escolhido, também
não existe tal coisa quando é alterada em movimento.
Para fortalecer sua crítica ao capitalismo, o marxismo deve
incorporar uma teoria materialista da língua: signos não são
epifenômenos, mas tecnologias que constroem poder
A relevância do marxismo como ferramenta de análise e crítica social,
bem como instrumento para a ação e organização revolucionária, segue
inegável no século XXI. Suas categorias e filosofia subjacente continuam
a oferecer compreensões poderosas sobre as dinâmicas do capitalismo, as
relações de poder e as lutas por emancipação.
Contudo, para que o marxismo mantenha sua vitalidade e capacidade de
interpelação frente aos complexos desafios da vida sócio-histórica, que
está sempre em movimento, é crucial um esforço contínuo de atualização e
refinamento de seu arsenal teórico e analítico. Nesse sentido, um
fenômeno que demanda uma atenção renovada e aprofundada é o papel da
língua e da semiose na constituição da realidade social, da ideologia e
da própria subjetividade.
Neste curto texto, me proponho a enfrentar essa questão, argumentando
que a tradição marxista, em suas vertentes mais clássicas e mesmo em
algumas de suas releituras posteriores, tende a uma negligência
sistemática ou a um tratamento superficial da língua. Frequentemente
reduzida a um epifenômeno da base material, a um mero instrumento de
comunicação ou a um reflexo passivo das relações de produção, a língua
tem sua agência e sua materialidade própria subestimadas.
Essa lacuna, defendo, limita a capacidade do marxismo de compreender
em toda a sua profundidade os mecanismos de produção e reprodução da
ideologia, a construção da hegemonia e as sutilezas da constituição dos
sujeitos sociais.
Como alternativa e superação, apresento as bases de um realismo
materialista-semiótico. Esta abordagem, fundamentada em uma síntese
transdisciplinar que articula contribuições da linguística
(especialmente a Linguística Sistêmico-Funcional), da Teoria da
Construção de Nicho Semiótico (informada pelas contribuições de biólogos
marxistas como Lewontin e Levins e sua visão sobre a reestruturação
causal na biologia evolutiva a partir da noção de causação dialética) e
de uma reinterpretação da própria tradição marxista, busca entender a
língua como uma força material ativa e constitutiva da realidade social e
das relações de poder que a atravessam.
A semiose, nesta perspectiva, não é um domínio à parte da
materialidade, mas uma dimensão intrínseca a ela, um conjunto de
práticas e tecnologias que moldam ativamente o que podemos pensar,
sentir, perceber e fazer.
A língua no marxismo
A relação entre o marxismo e a teoria da língua é complexa e, em
muitos aspectos, paradoxal. Por um lado, a centralidade da ideologia, da
consciência de classe e da crítica à alienação no pensamento de Marx e
Engels sugeriria uma atenção especial aos mecanismos
simbólico-linguísticos que medeiam as relações sociais e a percepção da
realidade. Por outro lado, uma análise detida de seus textos revela uma
ausência notável de uma teoria da língua sistemática e desenvolvida, uma
lacuna que, com raras e notáveis exceções, tendeu a se perpetuar em
grande parte da tradição marxista subsequente.
Marx e Engels, em obras como A Ideologia Alemã, reconheceram
a língua como “a consciência prática, real, que existe para os outros
homens e que, portanto, existe também para mim mesmo”, e afirmaram que
“a língua é tão antiga quanto a consciência”. Essas formulações apontam
para uma compreensão da língua como intrinsecamente social e ligada à
atividade humana.
No entanto, essa intuição não se desdobrou em uma investigação
aprofundada sobre a estrutura interna da língua, seus mecanismos de
produção de significado ou seu papel ativo na configuração das próprias
relações de produção e das formas de consciência. Prevaleceu, muitas
vezes, uma visão instrumental da língua, ou uma tendência a considerá-la
como parte da superestrutura, determinada em última instância pela base
econômico-material.
Essa perspectiva, embora útil para destacar o condicionamento social
da produção simbólica, acabou por negligenciar a materialidade da
própria língua e sua capacidade de agência na transformação social.
Diante desse cenário, a negligência em relação à especificidade da
semiose como fenômeno com suas próprias leis e dinâmicas teve
consequências significativas. Limitou, por exemplo, a análise marxista
da cultura, da arte e dos fenômenos cotidianos da comunicação, que por
vezes foram tratados de forma reducionista.
A falta de uma teoria da língua robusta dificultou a compreensão de
como o poder se inscreve nos próprios tecidos da língua, como as
categorias linguísticas moldam a percepção da exploração e da dominação,
e como a luta de classes se manifesta também como uma luta por
significados, por narrativas, por hegemonia discursiva.
É verdade que algumas contribuições posteriores buscaram preencher
essa lacuna. Valentin Volóchinov, figura proeminente do Círculo de
Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem, ofereceu uma
crítica contundente ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista
na linguística, propondo uma visão da língua como um fenômeno social e
ideológico por excelência, um campo onde os signos se tornam arena da
luta de classes. Para Valentin Volóchinov, o signo é multiacentual,
refletindo e refratando as contradições sociais.
Antonio Gramsci, com seu conceito de hegemonia, também abriu caminhos
importantes ao destacar o papel da cultura, do senso comum e,
implicitamente, da língua na construção do consentimento e na manutenção
do poder da classe dominante. Seus escritos sobre os intelectuais, a
organização da cultura e a necessidade de uma reforma intelectual e
moral apontam para a centralidade das disputas simbólicas.
Louis Althusser, por sua vez, com a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado,
chamou a atenção para como instituições como a escola, a igreja e a
mídia funcionam para reproduzir a ideologia dominante, interpelando os
indivíduos como sujeitos. A língua é, evidentemente, o veículo
privilegiado dessa interpelação.
Contudo, mesmo nessas contribuições valiosas, a análise muitas vezes
permaneceu no nível do “conteúdo” ideológico veiculado pela língua, ou
no papel das instituições, sem adentrar suficientemente na materialidade
intrínseca da própria prática semiótica como força produtiva e
constitutiva.
A semiose como um sistema material específico, com suas tecnologias,
suas formas de construção de nichos e seus efeitos ontológicos – termos
esses que serão desenvolvidos adiante –, ainda carece de uma exploração
mais sistemática dentro do quadro marxista. O desafio, portanto, não é
apenas reconhecer que a língua tem um papel na ideologia ou na hegemonia, mas compreender como
ela opera materialmente para produzir e sustentar realidades sociais, e
como essa operação está entrelaçada com as relações de poder e
produção.
Fundamentos de um realismo materialista-semiótico
Para superar a lacuna histórica no tratamento da língua pela tradição
marxista, propomos um realismo materialista-semiótico. Esta abordagem
não busca apenas adicionar um “componente linguístico” ao marxismo, mas
reconfigurar a própria compreensão da materialidade e da agência social a
partir da centralidade da semiose. Trata-se de reconhecer que os signos
não são meros reflexos ou ferramentas neutras, mas práticas materiais
que ativamente constituem os mundos sociais, as subjetividades e as
próprias condições de possibilidade da experiência e da transformação.
A defesa de um realismo material-semiótico encontra seu alicerce mais
profundo na própria trajetória evolutiva da língua humana e nas
propriedades singulares que emergiram desse processo. A transição de
sistemas comunicativos mais simples, ou protolínguas, para a língua como
um sistema semiótico de quarta ordem superior (ou seja, um sistema que
herda características de sistemas físicos, biológicos, sociais e
semióticos primários), conforme teorizado por Michael Halliday, não foi
apenas um incremento quantitativo, mas uma transformação qualitativa com
implicações ontológicas.
Central para essa transformação foi a emergência no sistema
linguístico de um nível lexicogramatical abstrato, interposto entre o
nível do conteúdo (semântica) e da expressão (fonologia/grafologia).
Essa complexificação multinível, que Annabelle Lukin descreve como um “big bang semiótico”, dotou a língua de um poder de produção de significado sem precedentes.
A relação entre lexicogramática e semântica, diferentemente da
relação arbitrária entre conteúdo e expressão, tornou-se “natural”, no
sentido de que as escolhas gramaticais sistematicamente constroem e
refletem padrões da experiência humana. A gramática, assim, não é um
código neutro, mas, nas palavras de Halliday, um “interpretador
ideológico embutido na própria língua”, que ativamente molda como a
realidade é percebida e construída.
Ademais, a organização metafuncional da língua – sua capacidade de
simultaneamente construir experiência (ideacional), negociar relações
sociais (interpessoal) e criar relevância contextual (textual) –
significa que toda representação é, intrinsecamente, uma ação e uma
instanciação contextualizada de posicionamento social. Não há como
separar o “conteúdo” de sua “forma” ou de seu “uso”; eles são
coproduzidos.
É precisamente nessa complexificação semiótica – a gramaticalização
do significado, a organização metafuncional e a capacidade de gerar o
que Halliday chamou de “universo paralelo feito de significados” – que a
dicotomia clássica entre materialismo e idealismo se dissolve. A
língua, como prática social corporificada e sistema material (sons,
gestos, inscrições), não é um mero reflexo de uma “base material” ou um
veículo para “ideias” preexistentes.
Ela é a própria arena onde o material e o semiótico se constituem
mutuamente. A “transdução do fenomenal de volta ao fenomenal”, como
Halliday descreve a operação do signo linguístico através das interfaces
de conteúdo e expressão, demonstra que a produção de significado é uma
prática material que engendra o semiótico, e o semiótico só ganha
agência e se manifesta através de práticas semiótico-materiais. A
evolução da língua, portanto, não nos deu apenas uma ferramenta para
descrever o mundo, mas uma tecnologia para ativamente construí-lo e
habitá-lo de formas específicas, tornando a experiência humana
inseparavelmente sócio-histórica e semioticamente mediada.
Os fundamentos desta perspectiva se assentam em alguns conceitos-chave, desenvolvidos em diálogo crítico e transdisciplinar:
(i) Linguística ontológica e relativismo semiótico controlado:
Partimos da premissa de que a língua não é um sistema de etiquetas para
uma realidade preexistente e independente. Ao contrário, as categorias e
estruturas de uma língua (ou de um sistema semiótico mais amplo)
desempenham um papel fundamental na própria constituição do que conta
como “real” para uma determinada comunidade.
Diferentes sistemas semióticos não apenas “descrevem” o mundo de
maneiras diferentes; eles ativamente constroem diferentes mundos de
significado, diferentes ontologias. Isso não implica um relativismo
absoluto onde “tudo vale”, pois, como veremos, a materialidade impõe
constrangimentos. Trata-se, antes, de um relativismo semiótico que
reconhece que nossa apreensão da realidade é sempre mediada e moldada
pelas ferramentas semióticas de que dispomos. A língua, portanto, tem um
estatuto ontológico: ela é condição de possibilidade para a emergência
de certos tipos de seres, relações e fenômenos sociais.
(ii) Construção de nicho semiótico: inspirado na teoria da construção
de nicho da biologia evolutiva, este conceito é transposto para o
domínio da semiose humana. Assim como os organismos modificam seus
ambientes e, com isso, alteram as pressões seletivas sobre si mesmos e
outras espécies, os seres humanos, através de suas práticas semióticas
(principalmente a língua, mas também rituais, artefatos, tecnologias),
constroem ativamente seus nichos semióticos.
Estes são os ambientes simbólico-materiais que habitamos, que
estruturam nossa percepção, cognição, afeto e ação. Um nicho semiótico
não é apenas um “contexto cultural”, mas um sistema dinâmico de
significados e práticas materiais que são coproduzidos e mantidos pelos
seus habitantes. A língua é a principal ferramenta e o principal produto
dessa construção de nicho, definindo o que é relevante, o que é
possível, o que é valorizado dentro de um determinado universo social.
Esses nichos, uma vez estabelecidos, exercem uma poderosa influência
sobre as formas de vida que neles se desenvolvem, naturalizando certas
práticas e marginalizando outras.
Afirmo que os seres humanos vivem imersos em “nichos semióticos” por
considerar como ponto relevante a coevolução entre a língua e o cérebro
humano, um processo brilhantemente explorado por Terrence Deacon.
Deacon argumenta que a língua não surgiu como um produto tardio de um
cérebro já plenamente capacitado. Ao contrário, as primeiras
capacidades simbólicas, mesmo que rudimentares, exerceram uma pressão
seletiva única sobre a evolução cerebral. Cérebros mais aptos a
adquirir, processar e transmitir sistemas simbólicos complexos foram
favorecidos, levando a um ciclo de retroalimentação positiva em que a
crescente complexidade linguística impulsionava a reorganização neural, e
vice-versa.
Esse processo foi modulado por transformações mais amplas na evolução
humana, como dinâmicas de auto-domesticação, que podem ter refinado as
predisposições sociais para a cooperação e o aprendizado cultural
intensivo, e o relaxamento de certas pressões seletivas que permitiram
maior plasticidade e um período de desenvolvimento juvenil prolongado,
crucial para a aquisição de sistemas semióticos complexos.
O resultado dessa trajetória coevolutiva não foi apenas um aumento no
tamanho cerebral, mas uma reconfiguração qualitativa que deu origem a
uma cognição fundamentalmente semiótica. Os seres humanos não são apenas
usuários de símbolos; somos criaturas cuja percepção, pensamento,
emoção e ação são mediados e constituídos por eles. Habitamos um mundo
que é, em sua essência, um artefato simbólico.
É aqui que a analogia com os nichos ecológicos se torna poderosa:
assim como os castores, através de sua atividade, constroem represas que
transformam seu ambiente aquático, criando um nicho específico que
molda sua existência e evolução, os seres humanos, através da língua e
de outras práticas semióticas (rituais, artefatos, instituições),
constroem ativamente seus nichos culturais e simbólicos.
Esses nichos semióticos – que englobam nossas tecnologias,
narrativas, valores, ideologias e as próprias estruturas sociais – não
são superestruturas etéreas, mas ambientes materiais e relacionais
concretos. Eles definem o que é real, possível e desejável, moldam nossa
subjetividade e são transmitidos e transformados através das gerações.
Viver em um nicho semiótico significa que nossa relação com o mundo é
sempre mediada por essa camada de significados e práticas materiais que
nós mesmos coproduzimos, tornando a distinção entre um “mundo externo”
puramente material e um “mundo interno” puramente ideal insustentável.
O argumento central que emerge da articulação desses conceitos é que a
semiose é intrinsecamente material em seus processos, em suas práticas e
em seus efeitos. Não há uma “base material” de um lado e uma
“superestrutura simbólica” de outro. As práticas semióticas são práticas
materiais que produzem efeitos materiais – na organização do trabalho,
na distribuição de recursos, na saúde dos corpos, na estabilidade ou
instabilidade dos ecossistemas.
Superar o dualismo matéria/signo é, portanto, um passo fundamental
para uma análise marxista que possa dar conta da complexidade do mundo
contemporâneo, onde a produção de significados e a produção de
mercadorias estão cada vez mais imbricadas. Esta abordagem oferece uma
saída para a subteorização da língua no marxismo, não ao negar a
importância dos condicionamentos econômico-materiais, mas ao mostrar
como estes são sempre mediados e coproduzidos por sistemas semióticos
específicos.
Implicações para uma teoria marxista da ideologia e da hegemonia
A reconceitualização da língua e da semiose como forças materiais
ativas, proposta pelo realismo materialista-semiótico, acarreta
implicações profundas para uma teoria marxista da ideologia e da
hegemonia. Ela nos permite ir além de certas formulações clássicas,
oferecendo uma compreensão com mais nuances e operacionalizável desses
fenômenos cruciais para a análise do poder.
Ideologia Revisitada Semioticamente: Tradicionalmente, no pensamento
marxista, a ideologia foi frequentemente associada à noção de “falsa
consciência”, a um conjunto de ideias que mascaram as contradições reais
da sociedade de classes ou que servem para legitimar a dominação.
Embora essa dimensão da crítica ideológica permaneça válida, uma
perspectiva materialista-semiótica nos convida a ampliar essa
compreensão. A ideologia não é apenas um “conteúdo” mental ou um
“discurso” que reflete (ou distorce) uma base material.
Antes, a ideologia se manifesta nos próprios sistemas semióticos
materiais que estruturam nossa percepção, cognição, afetividade e
prática social. São as categorias linguísticas que usamos, os rituais em
que participamos, os artefatos simbólicos que nos cercam que, em
conjunto, tornam certas realidades “pensáveis”, “sentíveis” e
“fazíveis”, enquanto outras são sistematicamente marginalizadas ou
interditadas.
A ideologia, nesse sentido, é performativa: ela faz o mundo
social ao mesmo tempo em que o interpreta. A luta ideológica, portanto,
não é apenas uma batalha de ideias, mas uma disputa sobre os próprios
meios de produção semiótica, sobre as tecnologias linguísticas e rituais
que constituem os nichos onde a vida social se desenrola.
Hegemonia como Disputa de Nichos Semióticos Dominantes: O conceito
gramsciano de hegemonia – a capacidade de uma classe dominante de
exercer liderança moral e intelectual sobre as classes subalternas,
obtendo seu consentimento ativo – ganha nova profundidade quando
articulado com a teoria da construção de nicho semiótico.
A hegemonia não se estabelece apenas pela força ou pela coerção, nem
somente pela difusão de ideias abstratas. Ela se constrói e se mantém
através da criação e sustentação de nichos semióticos dominantes. Estes
são ambientes simbólico-materiais onde as “verdades”, os valores e as
práticas da classe hegemônica são naturalizados, tornando-se o “senso
comum”, o pano de fundo inquestionado da vida social.
A “força semiótica acumulada” – o prestígio, a legitimidade e a
autoridade associadas aos signos e rituais do nicho dominante – torna-se
um componente central e material do poder hegemônico. A disputa pela
hegemonia é, então, uma luta pela capacidade de definir e controlar os
nichos semióticos mais influentes, de impor suas gramáticas e seus
rituais, e de marginalizar ou cooptar os nichos alternativos ou
contra-hegemônicos.
Busco, assim, argumentar em favor de uma reconceitualização do papel
da língua e da semiose na tradição marxista, destacando a necessidade de
superar uma negligência histórica que limita, em certa medida, o seu
poder analítico. Proponho então o realismo materialista-semiótico como
uma abordagem que entende a língua não como um mero reflexo da realidade
material, mas como uma força material ativa, uma tecnologia social que
constitui mundos, subjetividades e relações de poder.
A centralidade da linguística ontológica e da construção de nicho
semiótico nos permite ver a ideologia e a hegemonia não como fenômenos
puramente “superestruturais” ou “mentais”, mas como processos encarnados
em práticas semióticas concretas que moldam a experiência e a ação.
Um marxismo enriquecido por uma teoria robusta da materialidade
semiótica estará mais bem equipado para desvendar formas de dominação e
para inspirar práticas de resistência e transformação sociossemiótica
que sejam conscientes do poder constitutivo da língua. Superar as
limitações históricas no tratamento da semiose não é um mero exercício
acadêmico, mas uma tarefa urgente para revigorar o pensamento crítico e a
práxis emancipatória.
O chamado à reflexão sobre o potencial de um realismo
materialista-semiótico é, em última instância, um convite a reafirmar a
capacidade do marxismo de se reinventar e de continuar sendo uma
ferramenta indispensável para a compreensão e a transformação do mundo.
*Gabriel Freitasé mestre em Linguística pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
COMENTÁRIO ;
Não tenho a certeza bem fundada de que esta teorização não se deixe confundir com o idealismo dos signos contraposto ao materialismo, denunciado por V. I. Lenine no seu célebre "Materialismo e Empiriocriticismo" . O autor, pelo menos, não se "defende" desta possível acusação expressa nessa obra de influência tão decisiva na tradição marxista, como se a ignorasse (o que seria lamentável). Contudo, a seu favor, toda a argumentação , sem que refira a obra crítica leninista, é em defesa de uma materialismo dialético que "dissolva" (sic) um desvio idealista no marxismo e aproxime este de teses pertencentes do património filosófico idealista . Isto é, as "ideias" não são epifenómenos do cérebro. Neste sentido, o próprio V. I. Lenine iria mais tarde admitir corrigir o seu materialismo ingénuo primário, após a leitura da LÓGICA de Hegel, e, de resto, o marxista Vygotsky demonstrou , pioneiro nessas teses que ele foi, as origens sociais da mente ou das ideias.
A síntese estendida revela: a evolução não é um jogo de genes
egoístas, mas uma dança dialética onde organismos esculpem seus nichos e
a linguagem tece a realidade material
Em um artigo publicado
no site A Terra é Redonda, argumentei que a tradição marxista tende a
uma negligência sistemática ou a um tratamento superficial da língua e,
dessa forma, apresentei as bases de um realismo materialista-semiótico.
Introduzi conceitos como linguística ontológica, construção de nicho
semiótico e a semiose como força produtiva constitutiva da realidade
social humana, destacando a coevolução entre língua e cérebro.
Neste novo artigo, apresento mais elementos para sustentar minha
proposta, explorando com mais detalhes as contribuições da Teoria da
evolução para a consolidação de um realismo material-semiótico que possa
contribuir para a atualização do marxismo contemporâneo. Mais
especificamente, pretendo demonstrar como a síntese estendida da
evolução, em contraste com o neodarwinismo tradicional, oferece um
quadro teórico profundamente alinhado com o materialismo
histórico-dialético e com as intuições fundamentais de Karl Marx sobre a
relação entre os seres humanos e suas circunstâncias históricas.
Síntese estendida da evolução: superando o neodarwinismo
A síntese estendida da evolução representa o quadro teórico
contemporâneo que busca expandir e superar a síntese moderna (também
conhecida como neodarwinismo), incorporando avanços recentes no campo da
biologia evolutiva que não são adequadamente contemplados no paradigma
neodarwinista. O quadro teórico da síntese estendida, formalizado
principalmente a partir dos anos 2000, tem como principais proponentes,
entre outros, pesquisadores como Massimo Pigliucci, Eva Jablonka e Kevin
Lala, mas suas raízes podem ser encontradas décadas antes, no trabalho
pioneiro de biólogos marxistas como Richard Lewontin e Richard Levins.
A síntese moderna, consolidada entre as décadas de 1930 e 1950,
representou a integração da teoria darwinista da seleção natural com a
genética mendeliana e a genética populacional. Esta síntese estabeleceu
um paradigma centrado em alguns princípios fundamentais: a evolução
ocorre principalmente por meio de pequenas mudanças genéticas (mutações)
e recombinação; a seleção natural é o principal mecanismo direcional da
evolução; os genes são a única unidade de herança; o ambiente é uma
força seletiva externa e independente dos organismos; e o
desenvolvimento é um processo secundário na evolução.
Definido dessa maneira, o paradigma neodarwinista apresenta uma série
de limitações significativas. Ele tende a um determinismo genético, a
uma visão adaptacionista excessiva (criticada por Gould – também um
biólogo marxista – e Lewontin, em um famoso artigo intitulado “The Spandrels of San Marco“), e a uma concepção unidirecional da relação organismo-ambiente.
A síntese estendida, por sua vez, incorpora novos processos e mecanismos evolutivos. Seus principais componentes incluem:
(i) Construção de nicho: Os organismos não são meros objetos passivos
da seleção natural; são, na verdade, agentes ativos que modificam seus
ambientes e, consequentemente, as pressões seletivas que atuam sobre si
mesmos e sobre outras espécies.
(ii) Múltiplos sistemas de herança: A síntese estendida reconhece
múltiplos sistemas de herança além do genético, incluindo herança
epigenética (modificações químicas do DNA e proteínas associadas),
herança comportamental (transmissão de comportamentos por meio da
aprendizagem social), herança ecológica (modificações ambientais
construídas por antepassados e herdadas pela geração atual) e herança
simbólica (sistemas de comunicação e significado).
(iii) Plasticidade fenotípica: A capacidade dos organismos de
modificar seu fenótipo em resposta a condições ambientais, sem
alterações genéticas. A plasticidade não é apenas uma “resposta”
passiva, podendo ser adaptativa e direcionar a evolução.
(iv) Viés de desenvolvimento: As restrições e possibilidades impostas
pelos sistemas de desenvolvimento influenciam as trajetórias
evolutivas, canalizando a variação em certas direções e limitando-a em
outras.
(v) Causalidade recíproca: em contraste com a visão unidirecional da
síntese moderna, a síntese estendida enfatiza a causalidade recíproca
entre genes, organismos e ambientes – em outras palavras, uma
perspectiva dialética.
Lewontin e Levins – os biólogos dialéticos
É notável como muitos dos conceitos centrais da síntese estendida
foram antecipados pelo trabalho de Richard Lewontin e Richard Levins,
biólogos explicitamente marxistas que aplicaram o materialismo dialético
à biologia evolutiva. Em obras como The Dialectical Biologist (O Biólogo Dialético, de 1985) e artigos como “The Organism as the Subject and Object of Evolution”
(O Organismo como Sujeito e Objeto da Evolução, de 1983), Richard
Lewontin já criticava o adaptacionismo excessivo, o determinismo
genético e a visão passiva do organismo em relação ao ambiente.
Richard Lewontin argumenta que os organismos, em vez de se adaptarem a
ambientes preexistentes, constroem ativamente seus nichos ecológicos,
alterando as pressões seletivas que atuam sobre si mesmos. Esta visão
dialética da relação organismo-ambiente é agora central para a síntese
estendida, mas foi inicialmente desenvolvida a partir de uma perspectiva
marxista.
Da mesma forma, a crítica de Gould e Lewontin ao “programa
adaptacionista” antecipou muitas das críticas que a síntese estendida
faz ao neodarwinismo. Eles argumentavam contra a tendência de ver todas
as características dos organismos como adaptações otimizadas pela
seleção natural, destacando a importância de restrições históricas e de
desenvolvimento.
A causalidade dialética na biologia evolutiva
Richard Levins e Richard Lewontin, juntos, demonstraram a
interpenetração dialética entre gene, organismo e ambiente. Eles
criticaram a metáfora do “gene egoísta” e a ideia de que a evolução é
meramente uma questão de otimização adaptativa a um ambiente fixo. Para
eles, a evolução é um processo histórico complexo, contingente e
multifatorial, em que as totalidades (como o organismo ou o ecossistema)
têm propriedades emergentes que não podem ser reduzidas à soma de suas
partes.
A causalidade recíproca ou dialética é central nessa abordagem. Não
se trata de uma simples interação na qual A causa B e B causa A de forma
linear. Trata-se de um processo em que A e B se coproduzem e se
transformam mutuamente ao longo do tempo, de modo que nem A nem B
permanecem os mesmos. O organismo é produto de seus genes e de seu
ambiente, mas também é produtor de seu ambiente e, indiretamente,
influencia a seleção de seus próprios genes e dos genes de seus
descendentes. Esta visão reflete a dialética materialista de Marx, que
via os seres humanos como produtos de suas circunstâncias históricas e
sociais, mas também como agentes capazes de transformar essas
circunstâncias através de sua práxis.
Herança ecossemiótica e a sombra do passado
A compreensão da construção de nicho e da causalidade dialética nos
leva a um conceito central para a proposta do realismo
materialista-semiótico: a herança ecossemiótica. Se os organismos,
incluindo os humanos, constroem ativamente seus nichos, e se esses
nichos modificados persistem no tempo, então as gerações subsequentes
não nascem em um vácuo, mas herdam um ambiente já profundamente moldado
pelas atividades de seus predecessores. Essa herança não é apenas
genética; ela é também, e fundamentalmente para os humanos, uma herança
ecológica e, inseparavelmente, semiótica.
Explicado de forma mais detalhada, a síntese estendida enfatiza que
os organismos não são meros “objetos” da seleção natural; eles são
também agentes ativos que modificam seus ambientes através de seu
metabolismo, suas atividades e suas escolhas. Ao fazerem isso, eles
alteram as próprias pressões seletivas que atuam sobre si mesmos, sobre
seus descendentes e sobre outras espécies com as quais coabitam. Esse
processo é a construção de nicho.
Exemplos clássicos na biologia incluem a construção de represas por
castores, que transformam radicalmente ecossistemas fluviais, ou a
produção de solo pelas minhocas, que alteram a estrutura e a composição
química da terra. Esses organismos, ao modificarem seus ambientes, criam
novas oportunidades e novos desafios ecológicos. Nesse sentido, um
aspecto crucial da teoria da construção de nicho é o conceito de herança
ecológica: as modificações ambientais persistentes criadas pelos
organismos são legadas às gerações subsequentes como uma forma de
herança, tão importante quanto a herança genética. Essa herança
ecológica pode influenciar drasticamente as trajetórias evolutivas.
No caso humano, pensemos em campos agriculturáveis, cidades e
estradas, – todos são componentes de uma herança ecológica que afeta
profundamente as condições de vida e as possibilidades de
desenvolvimento das gerações futuras. No entanto, para a espécie humana,
essa herança ecológica está intrinsecamente entrelaçada com uma herança
semiótica.
Os sistemas linguísticos, os corpos de conhecimento, as tradições
orais e escritas, os mitos, as leis, as normas sociais, os rituais, os
sistemas de valores, as tecnologias da informação e comunicação – tudo
isso constitui um vasto e complexo aparato semiótico que é transmitido,
aprendido, internalizado e modificado ao longo das gerações. Essa
herança semiótica não é um mero adorno cultural; ela é o meio pelo qual a
herança ecológica é interpretada, utilizada, mantida e transformada. É
por meio da língua e de outros sistemas semióticos que aprendemos a usar
as ferramentas legadas, a navegar pelos ambientes construídos, a
participar das instituições sociais e a dar sentido ao mundo que
herdamos.
Assim, falamos de uma herança ecossemiótica para enfatizar a
indissociabilidade desses dois componentes. Os nichos que nós, humanos,
herdamos são sempre nichos semiótico-materiais. As estruturas físicas de
uma cidade (herança ecológica) são inseparáveis dos sistemas de signos
(nomes de ruas, mapas, leis de zoneamento, discursos sobre a vida urbana
– herança semiótica) que as organizam e as tornam habitáveis e
significativas.
É dessa maneira que a famosa passagem de Marx em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte
passa a possuir uma nova camada de significado quando lida através da
lente da herança ecossemiótica: “Os homens fazem sua própria história,
mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua
escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime
como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
As “circunstâncias com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado” podem ser entendidas, em grande medida, como o
nicho ecossemiótico herdado. Este nicho não é uma tela em branco sobre a
qual os indivíduos podem inscrever livremente seus projetos. Ele é um
campo de possibilidades e constrangimentos, um conjunto de recursos e
limitações, de caminhos abertos e de obstáculos sedimentados pela
história das gerações anteriores.
A “tradição de todas as gerações mortas” que “oprime como um pesadelo
o cérebro dos vivos” não se refere apenas a ideias ou crenças
abstratas. Ela se materializa nos sistemas linguísticos que estruturam
nosso pensamento, nos discursos hegemônicos que naturalizam certas
relações de poder, nos rituais sociais que reproduzem normas e
hierarquias, nas instituições que cristalizam práticas passadas e nos
próprios artefatos e ambientes construídos que carregam consigo as
marcas e as lógicas de quem os produziu.
Essa herança ecossemiótica, portanto, desempenha um papel dialético crucial na agência humana e na transformação histórica.
Condição de possibilidade para a ação: O nicho herdado fornece os
recursos (materiais e semióticos) sem os quais a ação humana seria
impossível. Aprendemos a pensar, a falar, a agir e a nos relacionar
dentro das coordenadas desse nicho. As ferramentas, as tecnologias, os
conhecimentos e as formas de organização social legadas pelo passado são
a matéria-prima com a qual as novas gerações constroem seu presente.
Fonte de constrangimento e limitação: Ao mesmo tempo, o nicho herdado
impõe limites. Os discursos marginalizam vozes dissidentes. As
instituições resistem à mudança. As infraestruturas materiais perpetuam
desigualdades. A “tradição” pode, de fato, oprimir, tornando certas
alternativas impensáveis ou impraticáveis.
Objeto de transformação (práxis): De forma crucial, e em consonância
com a perspectiva marxista, os seres humanos não são meros prisioneiros
de seu nicho herdado. Por meio da práxis – a atividade consciente,
social e transformadora – podemos modificar, subverter e, eventualmente,
revolucionar os nichos ecossemióticos que herdamos. Essa transformação,
no entanto, nunca parte do zero. Ela sempre ocorre a partir das
condições legadas, utilizando e ressignificando os recursos disponíveis,
e lutando contra os constrangimentos existentes. A história, nesse
sentido, é um processo contínuo de construção, desconstrução e
reconstrução de nichos semiótico-materiais.
Implicações para um marxismo biossociossemiótico
A síntese estendida da evolução oferece uma base científica robusta
para um marxismo que possa dialogar com a teoria da evolução
contemporânea, superando as limitações do determinismo genético e do
adaptacionismo que muitas vezes foram usados para naturalizar
desigualdades sociais e justificar o status quo. Algumas implicações importantes incluem:
(1) Superação do determinismo: Ao reconhecer múltiplos sistemas de
herança e a plasticidade fenotípica, a Síntese Estendida rejeita o
determinismo genético simplista, alinhando-se com a visão marxista de
que os seres humanos são produtos de suas circunstâncias sociais, mas
também agentes capazes de transformá-las.
(2) Causalidade dialética: A ênfase na causalidade recíproca entre
genes, organismos e ambientes reflete a dialética marxista, que rejeita
relações causais unidirecionais e enfatiza a interpenetração e
transformação mútua dos fenômenos.
(3) Agência coletiva: O conceito de construção de nicho oferece uma
base evolutiva para entender como a ação coletiva humana pode
transformar as condições materiais e semióticas de existência, criando
novas possibilidades para o desenvolvimento humano.
(4) Historicidade: A síntese estendida enfatiza a contingência
histórica e as restrições de desenvolvimento, alinhando-se com a ênfase
marxista na especificidade histórica e na importância das condições
materiais herdadas.
(5) Crítica ao reducionismo: Ao reconhecer múltiplos níveis de
organização e causalidade na evolução, a síntese estendida rejeita o
reducionismo genético, assim como o marxismo rejeita o reducionismo
econômico simplista.
Ao incorporar a teoria da construção de nicho e, fundamentalmente, a
crítica dialética de Lewontin e Levins, o realismo
materialista-semiótico busca oferecer uma base teórica sólida para
afirmar a materialidade e a agência da língua e da semiose, não como
entidades separadas da vida material, mas como dimensões constitutivas e
transformadoras dela. Isso abre caminho para uma análise marxista mais
detalhada e poderosa das formas de poder, ideologia e hegemonia.
A aproximação entre marxismo e teoria evolutiva, particularmente
através da lente da Síntese Estendida, nos oferece uma compreensão mais
sofisticada de como os sistemas semióticos emergem, persistem e se
transformam em relação dialética com as condições materiais de
existência.
Por um marxismo sem medos teóricos
A síntese teórica aqui proposta busca trazer implicações para a
práxis política e para a elaboração teórica. Se os nichos semióticos são
construídos e não dados, se a herança ecossemiótica é tanto um recurso
quanto um constrangimento, então a luta por transformação social deve
necessariamente incluir uma dimensão semiótica. Além de mudar as
relações de propriedade, é preciso também transformar os sistemas de
significado, as narrativas, os discursos e as práticas simbólicas que
sustentam e naturalizam as relações de poder.
Partindo dessas compreensões, busco contribuir para um marxismo que
dialogue sem medo com a teoria da evolução, fundamentado com a síntese
estendida, reconhecendo que a luta de classes é também uma luta por
significados, por narrativas, por hegemonia discursiva. Dessa forma, a
construção de alternativas ao capitalismo envolve, além da reorganização
das relações de produção, a criação de novos nichos semióticos que
possibilitem formas de vida mais justas, sustentáveis e emancipatórias.
Em última análise, o que proponho é uma atualização do marxismo que
leve a sério tanto a materialidade quanto a semiose, tanto a economia
política quanto a ecologia simbólica. Um marxismo que compreenda que a
transformação social é sempre, simultaneamente, uma transformação
material e semiótica, e que a práxis revolucionária envolve a tomada dos
meios de produção e a reconstrução dos nichos semióticos que habitamos.
Essa proposta de aproximação entre marxismo e teoria evolutiva não
visa diluir a especificidade do marxismo em um ecletismo teórico, mas
sim enriquecê-lo com contribuições científicas recentes que possam
fortalecer sua capacidade analítica.
Ao reconhecer a centralidade da construção de nicho semiótico e da
herança ecossemiótica, podemos desenvolver um marxismo mais atento à
complexidade da vida sociossemiótica e mais capaz de orientar a práxis
transformadora em um mundo onde a semiose e a materialidade estão
umbilicalmente entrelaçadas.
*Gabriel Freitas é mestre em Linguística pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Vinculado ao
Partido Comunista inglês durante toda sua vida, Eric Hobsbawn é autor de
uma obra monumental — inspirada não apenas pelo marxismo, mas também
por sua própria trajetória de vida (ele, afinal, nasceu em 1917 e de
algum modo acompanhou todos os eventos marcantes do século XX) — e
manteve-se ativo política e intelectualmente até sua morte, aos 95 anos.
Entre as décadas de 1950 e 1960, dedicou-se ao estudo da classe
operária, sobretudo a inglesa no período de sua formação, trabalhos que,
nas palavras do historiador Osvaldo Coggiola, contrapunham:
“à velha
história do movimento operário centrada sobre suas instituições
(sindicatos, partidos, líderes, greves e insurreições), […] um novo tipo
de história operária e popular, inspirada nos avanços da historiografia
acadêmica e baseada na pesquisa de fontes primárias, na qual condições
materiais de vida, práticas cotidianas, hábitos, costumes e cultura
ganhavam seu devido lugar, contribuindo para uma reconstrução histórica
mais precisa, não dogmática ou hagiográfica”.
Sem sombra de
dúvidas, contudo, seu grande trabalho foram os volumes conhecidos como
“As eras”, um imenso esforço de síntese da história ocidental desde a
Revolução Francesa. “Essas obras de Hobsbawm são um tour de force
sem paralelos na historiografia contemporânea, marxista ou não. A
agenda da obra, sua periodização do capitalismo, é de inspiração
marxista: a vitória, estabilização, expansão mundial e, finalmente,
decadência do capitalismo, ocupando cada volume”. Longe de uma
vulgarização, trata-se de “um relato sintético magistral, de uma
erudição sem precedentes em relação aos períodos considerados e de
magnífica fluidez lógica e literária […] Nunca um historiador havia
conquistado tal grau de difusão escolar e popular”, escreve o professor
do Departamento de História da Universidade de São Paulo no artigo “Eric
Hobsbawm, um historiador marxista”, publicado na Margem Esquerda #19.
Blogue da Editora Boitempo, Brasil
Em O império universal e seus antípodas, o professor Marcos Del Roio traz um panorama
abrangente sobre a história moderna percorrendo a formação, o
desenvolvimento, a transformação e o declínio de impérios e sistemas
mundiais, apresentando o Ocidente ao longo de centenas de anos e sua contraposição ao Oriente. O autor mostra
como nasceu e se consolidou a ideia de um Oriente negativo, inferior e
desprovido de identidade, pronto para ser conquistado e salvo pelo
Ocidente.
Mesclando história, política, filosofia,
economia e religião, Del Roio traz amplo conhecimento da história
moderna: “Não se trata de mais uma obra sobre o Oriente imaginário, mas
sim da análise do papel da negação e subalternização do outro na construção da identidade do Ocidente e do projeto do império universal, processo no qual a representação política do Oriente é um dos aspectos mais importantes”, diz o autor no prefácio.
Com erudição e
comprometimento com pesquisa e fatos históricos, surge um retrato
fidedigno dos últimos mil anos de poder e imperialismo no mundo:
“Através de uma escrita cristalina, Marcos vai nos mostrando como, a partir do ano 1000, a Igreja e o Estado no Ocidente foram afirmando seus poderes, ao preço de criarem e solidificarem a imagem de um Oriente atrasado e inimigo — espécie de eterno aleijão político, econômico e cultural — e um próprio Ocidente interno subalternizado, feito de trabalhadoras, trabalhadores e insubmissos de toda cepa”, escreve o historiador Iuri Cavlak no texto de orelha.
«O que dizem as instalações e as performances
de arte contemporânea sobre o museu e a rua, a realidade e a ficção, a
arte e a política? Jacques Rancière, teórico das fronteiras e dos
cruzamentos disciplinares, reflecte sobre os limites e as transgressões
da arte, numa viagem pelos fundamentos do pensamento estético até ao
movimento que leva a arte para fora de si mesma.
As Viagens da Arte passam pela arquitectura, quando esta quer
construir um novo mundo sensível, pela música, quando aspira à linguagem
universal, pela tentativa de identificar arte e vida na época da
Revolução Soviética, e pela diluição entre arte e política que
caracteriza as práticas contemporâneas.
Na ambiguidade das suas fronteiras, a arte opõe-se à ordem que separa
territórios e desliga o possível do impossível. Como trabalho estético
de experimentação humana, permite-nos vislumbrar novas formas,
indissociavelmente artísticas e políticas, de comunidade.» sinopse
Por EDUARDO BRITO, KAIO AROLDO, LUCAS VALLADARES, OSCAR LUIS ROSA MORAES SANTOS e LUCAS TRENTIN RECH*
O ataque israelense ao Irã não é um evento isolado, porém mais um
capítulo na disputa pelo controle do capital fóssil no Oriente Médio
Nas últimas semanas, o conflito, de amplo conhecimento e repercussão
no debate público, do regime sionista de Israel – patrocinado pelo
imperialismo americano com sua hegemonia do capital fóssil (MALM, 2016) –
contra o Estado da Palestina ganhou novos contornos com o acirramento
da tensão, inclusive, em relação a uma das maiores potências
petrolíferas da região, a República Islâmica do Irã.
O objetivo da presente exposição é tratar do fenômeno político
concreto, articulando a dinâmica de produção de petróleo e gás na região
do Oriente Médio, sobretudo no Irã, alvo de potenciais ataques do
regime sionista, com o conflito hegemônico entre Estados Unidos e China
pelo controle do capital fóssil e suas implicações no mercado
internacional de energia.
Histórico das relações entre Irã, Israel e Estados Unidos
No último dia 11 de junho, o Washington Post noticiou que os
Estados Unidos estariam esvaziando suas embaixadas no Oriente Médio,
sobretudo no Iraque, ao emitir autorização para retirada de
“funcionários não-essenciais”[i]
desses espaços frente ao crescente risco de uma ofensiva do regime
sionista de Israel contra o Irã, após supostamente terem sido avisados
de que o regime está “totalmente preparado para lançar uma operação
contra o Irã”.
Mais tarde, na madrugada do dia 13 de junho em Teerã, as forças
sionistas realizaram ataques a diversas bases militares no país, além de
também terem atingido diversas bases nucleares do país. Ao todo foram
mais de 80 mortos, incluindo diversos cientistas envolvidos no programa
nuclear, o chefe do Estado-maior, além do chefe da Guarda Revolucionária
iraniana.
Os ataques de Israel tiveram Teerã – cidade onde se concentram
membros do alto escalão militar e político – e a cidade de Natanz – onde
se concentram usinas de enriquecimento de urânio, insumo fundamental
para o desenvolvimento de artefatos nucleares – que fica a pouco mais de
três horas da capital, como principais alvos. Segundo a Associated Press, pelo menos mais seis cidades também foram atacadas.
Após o ocorrido, o regime israelense, na pessoa do ministro de
defesa, Israel Katz, declarou estado de emergência e rapidamente fechou
seu espaço aéreo. Até o momento, o Irã respondeu aos ataques enviando
drones e mísseis balísticos ao território ocupado por Israel.[ii]
Apesar de, num primeiro momento, saltar à vista uma possível ação
independente por parte de Israel – sendo essa ideia fortalecida por
declarações contraditórias do presidente Donald Trump, como a de que ele
teria se oposto a ideia de ataque ao Irã[iv], segundo o The New York Times
–, é adequado lembrar que, sem nenhuma dúvida, esta não será consumada
sem o devido escrutínio do governo dos Estados Unidos, como já se haviam
especulações há semanas: “Se for necessário o uso militar, nós usaremos
força militar”, disse Donald Trump. “Israel obviamente estará muito
envolvido nisso. Eles serão os líderes disso. Mas ninguém nos lidera,
fazemos o que queremos fazer.”[v]
A fala do presidente expressa muito bem (basta olhar e ver) o papel
desempenhado pelo regime de Israel no imperialismo estadunidense. Os
EUA, certamente, agirão pelas garantias de seu próprio interesse; no
entanto, Israel, enquanto protetorado americano, possuindo contradições
distintas – porém que resultam no mesmo fenômeno – destes últimos em
relação ao Irã, deverá ser o responsável direto pela ofensiva.
Essas se manifestam, pelo menos, desde que a França desenvolveu o
programa nuclear israelense, se tornando uma condição de real
preocupação a partir da década de 1970. O Irã viu não só sua qualidade
de potência regional ser ameaçada, como também sua própria estabilidade
política e soberania. Desse modo, o início do seu próprio projeto
nuclear (na década de 1960) voltado para a produção de energia de
interesse civil, foi causador de mal-estar no mundo ocidental no início
dos anos 2000, quando já se era sabido que o programa nuclear iraniano
poderia causar grande impacto na correlação de forças no Oriente Médio.
Aliado a isso, o suporte histórico do Irã à causa palestina é outro
fato relevante para o acirramento dessa disputa. Desde 1990, o país
mantém relações firmes com o Hamas, sendo formalizadas um ano depois,
quando uma delegação do grupo político solicitou a criação de um
gabinete oficial em território iraniano. Após o evento, o Irã forneceu
apoio material ao grupo em diversas outras ocasiões, como no episódio de
deportação em massa de líderes do grupo e da Jihad Islâmica palestina
para o Líbano ou na invasão da Faixa de Gaza entre 2007 e 2008.
No primeiro, o Irã serviu como ponte para a aproximação entre o Hamas
e o Hezbollah, além de promover frequentes visitas de autoridades aos
líderes exilados; no segundo, o Irã forneceu, secretamente, diversos
equipamentos militares fundamentais para a defesa da Palestina na
região.[vi]
O Irã, portanto, figura como antagonista direto do regime sionista de
Israel ao passo que é o principal responsável pela existência e a força
da frente de combate mais incisiva do povo palestino e, importante
lembrar, pela existência também do próprio povo palestino. Nesse
contexto, o Irã é, ao mesmo tempo, um antagonista da hegemonia fóssil
estadunidense, que, além de ter em Israel seu destacamento militar mais
avançado no território, exerce forte influência no Golfo Pérsico através
de suas diversas bases militares na costa oeste e ao longo do Oriente
Médio.
O atual cenário de iminente conflagração, acentuado pela escalada de
violência israelense em Gaza e pelo alinhamento do Irã à causa
palestina, não pode ser analisado como um evento isolado. Pelo
contrário, o que se observa é o ápice de uma trajetória histórica cujo
ponto de ignição se deu após a Revolução Iraniana (1978-1979) (Espírito
Santo, 2017).
Portanto, para compreender a profundidade estratégica deste confronto
e o papel do Irã como uma potência energética no Oriente Médio (Bhagat,
2005), analisaremos a gênese e os motivos que transformaram a nação
persa no principal antagonista da hegemonia fóssil norte-americana na
região mais rica em petróleo do mundo.
A inserção do Irã em uma momentânea dinâmica de subordinação ao
Ocidente foi selada em 1953. Naquele ano, o governo nacionalista do
primeiro-ministro Mohammad Mossadegh foi deposto por um golpe
orquestrado pela CIA (Estados Unidos) e pelo MI6 (Reino Unido). O
“crime” de Mossadegh fora nacionalizar a indústria petrolífera, até
então controlada pelo capital britânico, em uma tentativa de reverter a
drenagem de riquezas do país.
O golpe restaurou ao poder o Xá Mohammad Reza Pahlavi, consolidando
um regime cuja função no tabuleiro geopolítico era clara: atuar como um
peão na estratégia de Washington, garantindo o fluxo de petróleo barato
para o Ocidente e funcionando como um baluarte contra a influência da
União Soviética, com quem o Irã compartilhava uma extensa fronteira
estratégica (Alves, 2020).
Estruturava-se, assim, um modelo clássico de desenvolvimento dependente, no qual a economia periférica iraniana era moldada para servir aos interesses do centro imperialista
(Foran, 1989). Sob essa lógica, o regime golpista do Xá promoveu um
projeto de “modernização” autoritária conhecido como a “Revolução
Branca” (1963), financiada pela vasta riqueza petrolífera. A iniciativa,
contudo, produziu um efeito socialmente desastroso, aprofundando as
crises internas (Nakhaei, 2020).
O primeiro ponto foi a concentração de renda e o aprofundamento da
desigualdade. Operando sob uma lógica análoga à do “milagre econômico”
(1969-1973) da ditadura militar brasileira, a promessa de “fazer o bolo
crescer para depois dividir”, a riqueza do petróleo jamais foi
redistribuída. Pelo contrário, alimentou uma pequena elite
ocidentalizada, enquanto a vasta maioria da população, especialmente nos
centros não-urbanos, permanecia marginalizada (Brandis, 2009).
Em segundo lugar, a imposição de um secularismo de Estado e de uma
ocidentalização acelerada que separou setores cruciais da sociedade. O
clero muçulmano xiita, majoritário no país e conhecido como ulemás,
viu sua influência e suas tradições serem sistematicamente degradadas
(Varol, 2016). Por fim, como em todo regime autocrático, a estabilidade
era mantida pela força. Qualquer oposição política era brutalmente
reprimida pela SAVAK (Organização de Inteligência e Segurança Nacional),
a temida polícia secreta do regime, treinada e assessorada por agências
dos EUA e de Israel.
Nesse contexto, o petróleo era percebido pela população não como um
vetor de desenvolvimento nacional, mas como o elo da subordinação do
país e a fonte de poder de um regime tirânico e subserviente a
interesses forasteiros (Bina, 2017). A oposição, consequentemente,
aglutinou-se em uma espécie de “frente ampla”, composta por liberais,
nacionalistas, socialistas e, de forma mais organizada e capilarizada, o
clero xiita, sob a liderança do Aiatolá Ruhollah Khomeini, que
orquestrava a resistência a partir do exílio, primeiro no Iraque e, em
sua fase final e mais decisiva, na França.
Desafiando teses que historicamente atribuíam poder de barganha
política a setores operários clássicos, como os mineiros de carvão no
país persa, a classe trabalhadora petroleira iraniana demonstrou uma
agência histórica decisiva. Conforme apontado por Jafari (2019), esses
operários, cientes de sua posição estratégica em uma economia totalmente
articulada em torno da extração e comércio de petróleo, emergiram como a
vanguarda do levante popular. Entre 1978 e 1979, uma onda de greves
massivas, coordenadas nas refinarias e campos de petróleo de Abadan e da
província do Cuzistão, efetivamente paralisou a produção e a
exportação. O efeito sobre o regime do Xá foi duplo e devastador.
Primeiramente, no plano material, a ação coletiva induziu à asfixia
econômica do Estado. Ao cortar a principal fonte de receita do país, os
grevistas tornaram o regime incapaz de pagar seus funcionários e,
crucialmente, seu aparelho repressivo, as forças armadas e de segurança.
O pilar financeiro que sustentava a monarquia implodiu (Jafari, 2018).
O segundo impacto foi de ordem simbólica e política. Em uma inversão
dialética hegeliana de poder, os trabalhadores demonstraram que o
controle fático do recurso mais valioso do país não residia no palácio
do monarca, mas naqueles que operavam os poços e as refinarias.
O petróleo, antes o símbolo máximo da dominação estrangeira e da
tirania do Xá, foi ressignificado e transformado “de dentro”, em uma
arma de sabotagem e mobilização popular, como argumentado por Timothy
Mitchell (2009). Para a comunidade internacional, o sinal era
inequívoco: o regime do Xá havia perdido o controle de fato sobre seu
território e sua principal fonte de poder.
Contudo, a vitória da revolução catalisada por essa ação operária,
abriu um vácuo de comando e controle. Foi neste momento que a “facção”
mais organizada e com maior capilaridade social, o clero xiita sob a
liderança de Khomeini, moveu-se para consolidar sua direção do processo.
Os aliados conjunturais da “frente ampla” foram então sistematicamente
neutralizados.
Liberais e nacionalistas, como os que compunham o governo provisório
de Mehdi Bazargan, foram rapidamente marginalizados e expurgados do
poder (Ostovar, 2009). Em seguida, as organizações de esquerda:
socialistas, comunistas (como o partido Tudeh) e guerrilheiros (como os Fedayin do Povo), que haviam combatido ativamente a ditadura do Xá, foram declaradas inimigas do novo Estado e da própria fé.
A razão para essa perseguição brutal era dupla: primeiramente, sua
ideologia secular e sobretudo marxista era fundamentalmente
irreconciliável com o projeto de Khomeini de um Estado governado pela
jurisprudência islâmica (a Velayat-e Faqih). Em segundo lugar,
como grupos com experiência de combate, organização e uma base popular
própria, eles representavam um polo de poder alternativo e uma ameaça
militar direta à consolidação da hegemonia clerical e de sua nova
guarda, a Pasdaran (Ostovar, 2009). A revolução, que começa com uma base
ampla, foi deliberadamente afunilada para garantir a ascensão de uma
teocracia xiita.
A interrupção da produção iraniana, seguida pela incerteza sobre a
nova política do país, provocou o que ficou conhecido como o “Segundo
Choque do Petróleo” em 1979. A redução na oferta fez os preços
dispararem, mergulhando a economia global em uma recessão e reforçando a
lição aprendida em 1973: a estabilidade do sistema energético ocidental
era perigosamente dependente da estabilidade política do Oriente Médio,
agora radicalmente alterada (Valladares, 2024).
A relação conturbada entre o Oriente Médio, em específico o Irã, e os
países do eixo ocidental prosseguiu ao longo de toda a segunda metade
do século XX, e persistiu no século XXI, conforme tratado posteriormente
no tópico quarto.
Internamente, o novo lema do Irã, “Nem Ocidente, Nem Oriente, mas
República Islâmica”, traduziu-se em uma política externa que rejeitava a
subordinação a qualquer das superpotências da Guerra Fria (1947-1991)
(Espírito Santo, 2017). O controle nacional sobre o petróleo tornou-se o
pilar desta soberania. Isso sacramentou o fim da aliança estratégica
com os Estados Unidos e, por consequência, com Israel, que passou da
condição de parceiro discreto do Xá a ser rotulado como o “Pequeno Satã”
e uma “entidade sionista ilegítima”, solidificando as hostilidades que
foram os motivos da escrita deste artigo (Lewis, 2004).
Dois eventos subsequentes que valem a pena ser citados e foram
relevantes. O primeiro foi a Crise dos Reféns (1979-1981), quando
estudantes revolucionários, apoiados pelo novo regime, invadiram a
embaixada dos EUA em Teerã e mantiveram 52 diplomatas e cidadãos
americanos cativos por 444 dias. O ato foi uma resposta direta à decisão
americana de acolher o Xá deposto para tratamento médico, o que foi
interpretado no Irã como um prelúdio para um novo golpe orquestrado pela
CIA, a exemplo de 1953 (Perosa Jr, 2013).
A crise humilhou publicamente os Estados Unidos, destruiu qualquer
possibilidade de reconciliação a curto prazo e foi usada internamente
por Khomeini para consolidar o poder da linha-dura clerical, eliminando
os últimos vestígios de moderação do governo.
O segundo evento foi a Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Vendo uma
oportunidade no aparente caos revolucionário, o Iraque de Saddam
Hussein, com massivo apoio financeiro e militar de potências ocidentais e
monarquias do Golfo, que temiam a “exportação” da revolução islâmica,
invadiu o Irã. O conflito brutal de oito anos consolidou a percepção
iraniana de um mundo hostil e determinado a destruir seu novo regime.
Em resposta, o país foi forçado a aprimorar sua resiliência: começou a
usar o petróleo como escudo, desenvolvendo canais de exportação
paralelos para contornar sanções, forjando alianças com atores não
alinhados ao eixo ocidental e definindo sua política energética como a
espinha dorsal de sua resistência à hegemonia do capital fóssil liderada
pelos EUA (Ostovar, 2009).
A revolução, portanto, não apenas derrubou um ditador, ela removeu um
dos maiores agentes de petróleo do sistema de segurança energética
ocidental, e o transmutou em um adversário ideológico e estratégico
(McGlinchey, 2014). A consciência de que o petróleo poderia ser usado
como arma, concebida nas greves de 1978, tornou-se a doutrina central de
um Estado que, desde então, vê seus recursos energéticos como a
principal ferramenta para garantir sua sobrevivência e projetar sua
influência (Zunes, 2009).
Estavam assim consolidadas as premissas de um conflito prolongado, no
qual o Irã adotou uma postura duradoura de antagonismo em relação aos
Estados Unidos e a Israel, uma hostilidade que se projeta até os dias
atuais.
A produção fóssil iraniana e a aproximação chinesa
Como visto acima, portanto, as disputas políticas e territoriais
entre Israel e Irã não são suficientes para explicar o papel dos Estados
Unidos nos conflitos; a elas soma-se a importância iraniana no mercado
internacional de petróleo, cuja utilidade enquanto ferramenta de pressão
global foi demonstrada ainda na Guerra do Yom Kippur (1973)[viii].
Ampliando o contexto, durante as operações para retomada de terras
lideradas pela Síria e pelo Egito, os Estados Unidos garantiram a
manutenção de sua principal ferramenta da hegemonia fóssil, prestando
suporte militar ao regime de Israel. Como resposta, os países da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) impuseram «cortes
consideráveis em sua produção de petróleo mês a mês, até a total
evacuação das forças israelenses sobre todo o território árabe ocupado a
partir da guerra de 1967 […]» e um embargo total de vendas sobre os
Estados Unidos e outros países que apoiaram o regime israelense[ix].
Em um período de guerra fria, e iminente perigo nuclear, o petróleo
era (como ainda o é) figura fundamental no contexto da reprodução da
vida capitalista, enquanto capital fóssil (MALM, 2016), ou seja, como
subversor da natureza e sua temporalidade, assumindo o papel de sujeito
do processo produtivo, impondo seu tempo abstrato ao ritmo da reprodução
do trabalho e da produção do mais-valor relativo e absoluto, portanto,
agindo como um fator contrariante à queda da taxa de lucro.
Para além disso, desempenha papel fundamental, inclusive, na
mobilidade de capitais, sendo, dialeticamente, agente ativo e passivo do
exercício da hegemonia: ao passo que sua abundância atrai agentes
imperialistas para o território onde se encontra, também é elemento
fundamental para o exercício do próprio imperialismo.
Isso se manifesta, de forma concreta, no abastecimento tanto os
setores de uso doméstico, como automóveis para deslocamento da força de
trabalho, quanto blindados, grandes navios e caças dos porta-aviões
nucleares, que dependiam diretamente do “ouro negro” (petróleo) para
funcionar. Por isso, ainda que o sucesso dos embargos da OPEP na guerra
sejam questionáveis — visto que Israel não mobilizou suas tropas para
fora do território Árabe — o uso geopolítico do petróleo se comprovou,
com a pressão exercida sobre os preços internacionais tornando a prática
uma forma de contenção do Oriente Médio à hegemonia americana nas
próximas décadas.
Ipso facto, o controle estadunidense sobre a região se
acentuou. A inexistência de bases sobre território iraniano não implica
em ausência de controle; pelo contrário, o controle passou a ser feito a
partir de bases próximas ao canal de Suez e ao estreito de Ormuz,
localizadas sobretudo no Kuwait, por contenção ao Iraque e problemas
internos, Bahrein, Catar e nos Emirados Árabes Unidos. Através delas, o
escoamento de petróleo iraniano para outras partes do mundo foi minado,
numa tentativa de retardar o seu crescimento econômico.
Paralelo ao desenvolvimento da oil weapon árabe, os Estados
Unidos aprenderam a utilizar a demanda por petróleo como uma ferramenta
geopolítica, impondo desde 1979 uma sanção à quantidade de petróleo
iraniana importada, restrita a não mais que cinquenta mil barris por dia[x].
As sanções se agravaram com o tempo, sob o pretexto de combate ao apoio
do Irã ao terrorismo. Em 1984, investimentos, assistência financeira e
transferência de material militar ao Irã por entidades estrangeiras
foram proibidos.
Depois, em 1986, foi proibida a importação de bens e serviços
iranianos. As medidas se agravaram a partir de 1995, durante o governo
de Bill Clinton, com a tentativa de mobilizar os principais aliados dos
Estados Unidos contra a importação de petróleo iraniano.
Contudo, a medida não teve grande sucesso, com muitos países se
negando a adotar a postura severa visto que os Estados Unidos seguiam
comprando petróleo do Irã e revendendo para o resto do mundo. Além
disso, «sendo um bem fungível, o petróleo iraniano poderia ser trocado
com outros países a fim de ser importado pelos EUA […]», reduzindo
significativamente o impacto dessas novas sanções. Apesar das medidas
serem anunciadas como ferramentas antiterrorismo, o desdobramento dos
conflitos deixou bastante evidente que a tentativa de controle
estadunidense do Golfo Pérsico era, na verdade, o principal motivador
por detrás delas, visto que a região concentra cerca de dois terços do
petróleo mundial e fugia do seu domínio ideológico durante a guerra
fria.
As restrições impostas ao comércio internacional do Irã com o
ocidente e o controle parcial dos Estados Unidos aos principais canais
de comunicação fluvial entre o Irã e o mundo tornou necessário a
aproximação do país a novos parceiros internacionais e a criação de
estratégias alternativas para o desenvolvimento econômico e energético,
entre elas, a ampliação do seu programa militar e formas alternativas de
escoamento de petróleo.
Quanto à primeira alternativa, o dispêndio do Irã com o setor militar
cresceu continuamente entre 1993 e 2006, mesmo estando sob sanções
unilaterais dos Estados Unidos[xi].
Nesse mesmo período, o governo iraniano recusou-se a terminar os seus
programas de enriquecimento de urânio, originários de um apoio conjunto
dos Estados Unidos e outros países para promover a paz no oriente médio
(sic) que posteriormente fora terminado e reativado a partir da década
de 1990, agora com apoio da Rússia.
Como consequência, o conselho de segurança da ONU impôs sanções
multilaterais ao Irã a partir de 2006, endossadas novamente pelos
Estados Unidos e pela União Europeia em 2012, em ordens de frear o
avanço militar e nuclear iraniana, resultando no sucessivo decréscimo
dos gastos com o setor militar[xii].
O crescimento militar do Irã não é alheio às discussões do parágrafo
anterior, acerca do petróleo, mas soma-se a eles; somente um grande
poderio bélico instalado é capaz de garantir a soberania do país e o seu
acesso aos mercados internacionais mesmo em face a severas pressões de
agentes externos. Do contrário, a presença de bases estadunidenses
próximas ao território iraniano seria suficiente para assegurar a sua
completa subordinação aos interesses estrangeiros.
Quanto à segunda alternativa, o Irã adotou uma série de medidas
ilegais para contornar as sanções e escoar a sua produção de petróleo.
Estima-se que cerca de 80% do contrabando de exportação realizado no Irã
se destine a produtos de petróleo, quando não a commodity em si[xiii].
O objetivo principal do contrabando é que os navios cargueiros passem
despercebidos pelos principais canais de transporte fluvial que, como
citados anteriormente, estão sob o campo de visão dos Estados Unidos e
suas bases, dando ênfase ao estreito de Ormuz, principal rota de
transporte de petróleo iraniano para a China. Nesse quesito, a própria
China desempenha o papel de importante parceiro comercial do Irã, devido
a interesses ideológicos, comerciais, e políticos, referentes ao
domínio do golfo persa e o acesso ao petróleo.
A relação entre os dois países, entretanto, não é recente, mas vem
sendo construída desde 1990. A princípio, o agravamento das sanções
contra o Irã em 1995 e o sentimento antichinês que se apoderou do
congresso americano fizeram com que as petrolíferas chinesas não
estreitassem muito as suas relações comerciais com o Irã[xiv].
Depois, já no final da década, os países se aproximaram, tanto pela
relação entre os compradores de petróleo chineses e os vendedores
iranianos quanto pelos interesses dos governos, com parcerias que
abrangiam desde o desenvolvimento nuclear a medidas de comércio. A
importação de óleo iraniano pela China aumentou nos anos seguintes,
sobretudo no período entre o final da década de 1990 até 2003.
Retorno à contemporaneidade e os mercados futuros
Uma vez realizada a contextualização histórica e política, torna-se
possível analisar os conflitos atuais sob perspectivas alheias à ótica
do conflito árabe-israelense — em especial a do mercado internacional de
petróleo e do conflito entre Estados Unidos e China.
Inicialmente, o preço dos contratos futuros de petróleo, um dos
principais instrumentos de proteção dos produtores ao risco de mercado e
importante ferramenta de especulação, seguiu uma trajetória de queda ao
longo dos primeiros semestres do ano, motivada pelo aumento da produção
estadunidense através da política de intensiva permissividade a formas
alternativas de extração, especialmente a de xistos em solo.
O nível maior de estoques americanos junto à menor demanda por
petróleo deveria, em tese, se converter na redução da produção geral da
OPEP, que já vinha realizando cortes há um ano com previsão estendida
até junho de 2026; entretanto, como forma de punir alguns membros por
inconformidade aos cortes de produção[xv] e tornar inviável a extração de petróleo via xisto, devido ao seu alto ponto de «breakeven» em relação às plataformas onboard árabes, a Arábia Saudita decidiu impor um aumento na produção de petróleo dos países da OPEP em ritmo acelerado.
Além disso, ela também percebeu que «manter cotas baixas de produção,
uma estratégia feita para aumentar os preços, apenas permitiu que os
Estados Unidos ganhassem participação de mercado, sobretudo nos países
asiáticos»[xvi]. Os eventos do dia 13, entretanto, colocam em xeque todo o atual estratagema internacional acerca do petróleo.
Evidentemente, em caso de conflito prolongado entre o Irã e Israel e,
sobretudo, caso esse conflito se estenda para todo o mundo árabe, parte
do petróleo outrora escoado para os mercados internacionais pelas
empresas locais será destinado à indústria da guerra. Ataques
coordenados de ambos os lados acabam por colocar em perigo grandes
produtoras de petróleo e estoques físicos, prejudicando ainda mais a
oferta nesse cenário.
Considerando a quantidade de petróleo disponível no Golfo Persa e
demais regiões do levante ao norte da África, pode-se presumir que a
nova demanda por petróleo oriunda da guerra será majoritariamente
suprida por fontes internas, minimizando, a princípio, o aumento da
demanda global. Assim, uma vez confirmada a escala do conflito, os
preços do petróleo no mundo todo tendem a subir, com largos acréscimos
de valor nos futuros como forma de proteção dos produtores à incerteza
futura, já demonstrados no gráfico diário dos futuros Brent a seguir.
Conflito hegemônico EUA x China e os rumos da geopolítica
Como já exaustivamente discutido, há, inserido na guerra entre Israel
e Irã, uma clara questão de interesse da hegemonia estadunidense no
conflito, tendo seu presidente tratando o ataque do regime sionista de
Israel como “bem-sucedido” e declarando que havia alertado o Irã que os
EUA possuem o “melhor e mais letal equipamento militar do mundo”.[xviii]
O debate que ainda não foi trazido se refere ao duplo caráter da
ofensiva do imperialismo fóssil estadunidense sobre um dos últimos
aparatos de resistência nativa na região, visto o amplo domínio militar
estadunidense como a distribuição de suas bases no Oriente Médio na
Figura 1 e sua representação diplomática na região, o regime sionista de
Israel.
Para além do fenômeno descrito, é fundamental, também, ter em mente o
papel da China no conflito com o estreitamento das suas relações com o
Irã, expresso em acordos comerciais e financeiros com o país nos últimos
anos, principalmente sob o contexto das sanções ocidentais, gerando
divisas para financiamento, sobretudo, do seu programa nuclear.
Desde o início do século, a República do Irã vem sofrendo com sanções
diretas à comercialização dos seus recursos energéticos. Até o início
de 2018, o país havia alcançado um alto nível de produção de petróleo,
produzindo quase cinco milhões de barris por dia e exportando para os
países ocidentais ou alinhados ao seu programa político, mesmo com a
imposição anterior de sanções partindo tanto dos Estados Unidos, em
2011, quando proibiu relações de qualquer país com o Banco Central
iraniano, visando minar a geração de divisas ao atingir, também, sua
comercialização de petróleo[xix]; quanto da União Europeia, quando baniu a importação e o transporte de petróleo bruto iraniano no início de 2012[xx]. Ambas as medidas já se referiam ao programa nuclear do país e a coerção para que o Irã o abandonasse.
No entanto, em 2018, após o presidente Donald Trump impor, outra vez,
sanções ao Irã ao deixar o Plano de Ação Conjunto Global (PACG)[xxi],
a dinâmica comercial iraniana se alterou completamente. Além de ter
deixado de exportar petróleo bruto para países da União Europeia e Ásia,
passou a escoar a totalidade da sua produção somente para China, Síria,
EAU e Venezuela, em 2023[xxii]. Além disso, a participação chinesa nas exportações de petróleo bruto iraniano saltou de 25%, em 2017, para 90%, em 2023[xxiii].
Desse modo, o Irã pode recuperar o nível de geração de divisas
anterior ao fim do PACG e, inclusive, expandir sua capacidade produtiva
não só de petróleo, mas também de eletricidade e gás natural. Segundo
relatório da EIA (Energy Information Administration), entre
2019 e 2022, o Irã adquiriu uma série de contratos para aumentar a
produção de petróleo bruto em mais de meio milhão de barris por dia, e
adquiriu mais contratos em 2024, para construir seis campos de petróleo
bruto ao longo da fronteira com o Iraque.
A grande questão é que a relação entre Irã e o antagonista hegemônico
dos Estados Unidos não terminou na exportação de petróleo bruto. Em
2021, os dois países (China e Irã) firmaram um acordo estimado em US$
400 bi envolvendo comercialização de petróleo para a China e, inclusive,
um suposto acordo de segurança entre os dois países[xxv]. Ao longo da década, a China (e a Rússia) declararam apoio ao programa nuclear iraniano[xxvi], mais recentemente, em março desse ano.
Um dos eventos, porém, que acendeu o sinal de alerta ao capital fóssil dos EUA foi a realização de exercícios militares[xxvii]
entre Irã, Rússia e China ao longo do Golfo de Omã, região sem presença
efetiva de bases militares estadunidenses, porém muito próxima a sua
zona de influência no Golfo Pérsico, desafiando sua hegemonia na região.
O então chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, disse que a China,
a Rússia e o Irã representariam um desafio para Washington “durante
muitos anos”[xxviii].
Novamente pode-se observar, partindo da superfície (guerra Israel x
Irã), o inevitável conflito hegemônico pelo controle do capital fóssil
sem o qual nenhum hegemon pode se constituir enquanto tal no
projeto de acumulação mundial. Os ataques desferidos contra o Irã, outra
vez, devem ser analisados com atenção. Não se trata de anular e
prescindir da análise das contradições regionais entre as duas forças
que protagonizam o conflito, mas de o apreendê-lo de forma histórica e
material, em sua totalidade, considerando as diferentes nuances que
envolvem, ao mesmo tempo e em diferentes níveis, o mesmo fenômeno
concreto estabelecido.
Neste momento histórico delicado, com a hegemonia da acumulação
estadunidense sendo desafiada depois de mais de um século, o acirramento
da (re)partilha do mundo salta aos olhos, e a noção do que fazer se
dissipa no ar cada vez mais rápido. Não parecem existir mais
alternativas para o futuro que não a barbárie.
*Eduardo Britoé graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Kaio Aroldoé graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Lucas Valladaresé doutorando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Oscar Luis Rosa Moraes Santosé graduando em economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Lucas Trentin Rech é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Referências
ALVES, T. M. A gênese das hostilidades entre o Irã e os Estados Unidos. Malala, Revista Internacional de Estudos sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, v. 8, n. 11, p. 143–167, 23 dez. 2020.
BAHGAT, G. Energy Security: The Caspian Sea. Minerals & Energy – Raw Materials Report, 15 jun. 2005.
BINA, C. Iran’s Oil, the Theory of Rent, and the Long Shadow of History: A Caveat on Oil Contracts in the Islamic Republic. Revue internationale des études du développement, n. 229, p. 63–90, 2017.
EHSANI, K. Social and Urban Histories of Labor in the Iranian Oil Industry: A Theoretical Framework. [s.d.].
FORAN, J. The Concept of Dependent Development as a Key to the Political Economy of Qajar Iran (1800–1925). Iranian Studies, v. 22, n. 2–3, p. 5–56, jan. 1989.
FOROZAN, H. The Military in the Islamic Republic of Iran: an
Assessment of the Sepah’s Role (IRGC) as a Political and Economic Actor.
1 jan. 2013.
JAFARI, P. Fluid History: Oil Workers and the Iranian Revolution. Em: Working for Oil. [s.l.] Palgrave Macmillan, 2018. p. 69–98.
JUNIOR, E. J. P. A Política Externa estadunidense no Oriente Médio e a formulação da Doutrina Carter (1977-1981). Revista Urutágua, n. 28, p. 97–109, 28 maio 2013.
LEWIS, B. A crise do Islã: Guerra santa e terror profano. [s.l.] Zahar, 2010.
MALM, A. Fossil Capital: The Rise of Steam Power and the Roots of Global Warming. London: Verso, 2016.
MCGLINCHEY, S. US Arms Policies Towards the Shah’s Iran. Abingdon, Oxon New York: Routledge, 2014.
MITCHELL, T. Carbon democracy. Economy and Society, v. 38, n. 3, p. 399–432, 1 ago. 2009.
NAKHAEI, N. State and Development in Post-Revolutionary Iran. dez. 2020.
SANTO, M. M. DO E.; BALDASSO, T. O. A Revolução Iraniana: Rupturas e Continuidades na Política Externa do Irã. Revista Perspectiva: reflexões sobre a temática internacional, v. 10, n. 18, 2017.