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sábado, 24 de novembro de 2012


FÁBULAS
Os Piratas
Os piratas sempre rondaram as costas de Portugal. Durante muitos séculos eram mouriscos, o que, de resto se compreende: boa parte deste território havia sido deles, terra lavrada, comércio laborioso, castelos e mesquitas, poetas e tolerantes califas. Foram expulsos à espadeirada, não sem muito esforço e muitas tréguas prolongadas. Netos e bisnetos por cá permaneceram, filhos da terra e de casamentos cruzados, tudo boa gente ao que se sabe, e no nosso caráter há de restar bastante.
Os seus primos, chamemos-lhes assim, os piratas, atravessavam o estreito e assediavam vilas e aldeias, em ladroeiras fulminantes e silenciosas, importunando menos os nobres, provavelmente, do que os servos e plebeus. Os nobres recolhiam-se em castelos bem fortificados e não há memória de assaltos em grande escala. Deste modo os pobres pescadores de cá conviveram, a custo pois claro, com os magrebinos, pouco deles se distinguindo na pele tisnada comum, nos olhos negros das mulheres, na melancolia das suas lamúrias.
Tempos vieram em que os piratas eram outros. Ingleses, americanos, alemães, arribaram por dentro e por fora, pelo mar e pelo ar, ricos, bem nutridos, loiros e olho azul, que logo se instalaram em magníficos palácios que os nobres indígenas escancararam com hospitaleiro servilismo. Alguns ficaram, outros partiram, sempre por turnos, sorvendo, deglutindo, ensinando, impondo acordos, ditando memorandos, sorvendo, deglutindo. As melhores peças de caça das coutadas reais, os melhores vinhos, as especiarias e esmeraldas, os marfins e o oiro. Proibiam, por força ou por manhas, a produção nacional, desta feita vendiam os seus produtos, emprestavam dinheiro para os indígenas os comprarem, recebiam juros e voltavam a emprestar, num círculo que apenas era virtuoso para eles. Em jantares opíparos, com os nobres indígenas sentados à sua direita, cantavam, roucos e lúbricos, canções estranhas das suas terras longínquas.
Certo dia, ou certa noite, quando soprava um vento agreste e as ondas rebentavam nas falésias, sobreveio um terramoto. A bem dizer não se sabe ainda hoje o que foi, se terramoto se outra coisa qualquer. Os fatos alteram-se conforme quem os conta. Sucedeu há tanto tempo que nenhum registo desse fado subsiste. Os meus avós desapareceram há muito. A minha avó, mulher de alma sã e mente lúcida, contava-me para eu adormecer, nas horas geladas dos invernos, sempre a mesma história, curta e incisiva:
“ Em tempos que já lá vão esta terra não era nossa. De quando em vez dragões repelentes e mortíferos brotavam do chão e desciam dos céus. Tinham por costume não ferir ninguém de morte, matavam pela fome, humilhavam pela miséria, saqueando searas, encerrando fábricas, escolas, hospitais, afugentando com línguas de fogo operários e empregados, esbulhando salários e pensões. Traziam uma doutrina e somente essa era permitida, inoculada nas mentes com subtis venenos. Assim foi até que um dia (ou noite, não se sabe quando) a atmosfera mudou subitamente, o ar tornou-se irrespirável, e os primeiros a fugir foram os dragões, logo seguidos em tropel espavorido pelos seus acólitos que falavam a nossa língua. Foi, pode-se dizer, um ar que se lhes deu!”
“E tu, avó, como conseguias respirar?- questionava eu do alto dos meus cinco anos de petiz.”
“Ora, eu e toda a gente que não era dragão nem filho dele, habituámo-nos depressa à nova atmosfera. Se sempre vivêramos com veneno, melhor vivemos sem ele!”
NOZES PIRES 

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