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terça-feira, 13 de novembro de 2012


Auto-destruição sistémica global, insurgências e utopias

por Jorge Beinstein [*]
Aceleração da crise (mudança de discurso)

O fatalismo global abandona a sua máscara optimista neoliberal de outros tempos (que sobreviveu durante o período inicial da crise desencadeada em 2008) e vai assumindo um pessimismo não menos avassalador. No passado, os meios de comunicação explicavam-nos que nada era possível fazer diante de um planeta capitalista cada dia mais próspero (ainda que praguejado por crueldades), só nos restava a possibilidade de nos adaptarmos. Uma ruidosa massa de peritos asseverava as grandes orientações com argumentos científicos irrefutáveis (os críticos não se podiam fazer ouvidos frente à avalanche mediática). Isso foi chamado de discurso único, surgia como um formidável instrumentos ideológico e prometia acompanhar-nos durante vários séculos ainda que tenha durado umas poucas décadas e se tenha esfumado em menos de um lustro.

Agora a reprodução ideológica do sistema mundial de poder começa a chegar a um novo fatalismo profundamente pessimista baseado na afirmação de que a degradação social (estendida como resultado da "crise" ) é inevitável e prolongar-se-á durante muito tempo.

Tal como no caso anterior os meios de comunicação e sua corte de peritos explicam-nos que nada mais é possível fazer senão adaptar-nos (novamente) perante fenómenos universais inevitáveis. Tal como qualquer outra civilização, a actual em última instância controla os seus súbditos persuadindo-os acerca da presença de forças imensamente superiores às suas pequenas existências impondo a ordem (e o caos) perante as quais devem inclinar-se respeitosamente. O "mercado global", "Deus" ou outra potência de dimensão oceânica cumprem a referida função e seus sacerdotes, tecnocratas, generais, empresários ou dirigentes políticos não são senão executores ou intérpretes do destino, o que aliás legitima os seus luxos e abusos.

É assim que em Setembro de 2012 Olivier Blanchard, economista chefe do Fundo Monetário Internacional, anunciava que "a economia mundial precisará de pelo menos dez anos para sair da crise financeira que começou em 2008" [1] . Segundo Blanchard, o resfriamento duradouros dos quatro motores da economia global (Estados Unidos, Japão, China e União Europeia) obriga-nos a afastar qualquer esperança numa recuperação geral a curto prazo. Ainda mais duro, em Agosto do mesmo ano o Banco Natixis, integrante de um grupo que assegura o financiamento de aproximadamente 20% da economia francesa, publicava um relatório intitulado "A crise da zona euro pode durar 20 anos" [2] .

Encontramo-nos diante de um problema que as elites dominantes dificilmente podem resolver: a cultura moderna é filha do mito do progresso, repetidas vezes pode cativar os de baixo com a promessa de um futuro melhor neste mundo e ao alcance da mão, o que a diferencia de experiências históricas anteriores. As épocas de penúria são sempre descritas como provisórias, preparatórias de um grande salto rumo a tempos melhores. A reconversão da cultura dominante a um pessimismo de longa duração aceite pelas maiorias não parece viável, pelo menos é muito difícil realizá-la com êxito não só nos países ricos como também na periferia, sobretudo nas chamadas sociedades emergentes. Só populações radicalmente degradadas poderiam aceitar passivamente um futuro negro sem saída à vista, as elites imperialistas golpeadas, desestabilizadas pela decadência económica, sem projectos de integração social poderiam encontrar na degradação integral dos de baixo (os seus pobres internos e os povo periféricos) uma possível alternativa arriscada de sobrevivência sistémica.

Auto-destruição

O capitalismo como civilização entrou num período de declínio acelerado. Uma primeira aproximação ao tema mostra que nos encontramos perante o fracasso das tentativas de superação financeira da crise desencadeada em 2008, ainda que uma avaliação mais profunda nos levasse à conclusão de que o objectivo anunciado pelos governos dos países ricos (a recomposição da prosperidade económica) ocultava o verdadeiro objectivo: impedir o derrube da actividade financeira que fora a droga milagrosa das economias durante várias décadas. Desse ponto de vista, as estratégias aplicadas tiveram êxito: conseguiram adiar durante cerca de um lustro um desenlace que se aproximava velozmente quando desinchou a borbulha imobiliária norte-americana.

Uma visão mais ampla nos indicaria que o ocorrido em 2008 foi o resultado de um processo iniciado entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, quando a maior crise económica da história do capitalismo não seguiu o caminho clássico (tal como o mostrado no século XIX e na primeira metade do século XX) com gigantescas quedas empresariais e uma rápida mega avalanche de desemprego nas potências centrais, e sim que foi controlada graças à utilização de poderosos instrumentos de intervenção estatal em combinação com reengenharias tecnológicas e financeiras dos grandes grupos económicos.

Essa resposta não permitiu superar as causas da crise, na realidade potenciou-as até níveis nunca antes alcançados, desencadeando uma onda planetária de parasitismo e de saqueio de recursos naturais que engendrou um estancamento produtivo global em torno da área imperial do mundo, impondo a contracção económica do sistema não como fenómeno passageiro e sim como tendência de longa duração.

Trata-se de um processo de decadência complexo. Basta repassar dados tais como o do volume da massa financeira equivalente a vinte vezes o Produto Mundial Bruto e seu pilar principal: o super endividamento público-privado nos países ricos que bloqueia a expansão do consumo e do investimento, o do declínio dos recursos energéticos tradicionais (sem substituição decisiva próxima) ou o da destruição ambiental. E também o da transformação das elites capitalistas numa teia de redes mafiosas que marcam o seu selo as estruturas de agressão militar, convertendo-as numa combinação de instrumentos formais (convencionais) e informais onde estes últimos vão predominando através de uma articulação inédita de bandos de mercenários e manipulações mediáticas de alcance global, "bombardeios humanitários" e outras acções inscritas em estratégias de desestabilização integral que apontam para a desestruturação de vastas zonas periféricas. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria... México ilustram o futuro burguês das nações pobres.

A área imperial do sistema degrada-se e, ao mesmo tempo, tenta degradar, tornar caótico o resto do mundo quando pretende controlá-lo, super-explorá-lo. É a lógica da morte convertida em pulsão central do capitalismo tornado senil e estendendo seu manto tanático (sua cultura final) que é, em ultima instância, auto-destruição, ainda que pretenda ser uma constelação de estratégias de sobrevivência.

Cada passo das potências centrais rumo à superação da sua crise é na realidade um novo empurrão rumo ao abismo. Os subsídios concedidos aos grupos financeiros avultaram as dívidas públicas em conseguir a recomposição durável da economia e quando a seguir tentam travar o referido endividamento restringindo gastos estatais ao mesmo tempo que esmagam salários com o objectivo de melhorar os lucros dos empresários agravam o estancamento convertendo-o em recessão, deterioram as fontes dos recursos fiscais e eternizam o peso das dívidas. Frente ao desastre impulsionado pelas máfias financeiras levanta-se um coro variegado de neoliberais moderados, semi-keynesianos, regulacionistas e outros grupos que exigem a suavização dos ajustes e o estímulo ao investimento e ao consumo... ou seja, continuar a inchar as dívidas públicas e privadas... até que se recomponha um suposto círculo virtuoso de crescimento (e de endividamento) encarregado de pagar as dívidas e restabelecer a prosperidade... ao que os tecnocratas duros (sobretudo na Europa) respondem que os estados, as empresas e os consumidores estão saturados de dívidas e que o velho caminho da exuberância monetário-consumista deixou de ser transitável. Ambos os lados têm razão porque nem os ajustes nem as repartições de fundos são viáveis a médio praxo, na realidade o sistema é inviável.

As agressões imperiais quando conseguem derrotar os seus "inimigos" não conseguem instalar sistemas coloniais ou semi-coloniais estáveis como no passado e sim engendrar espaços caóticos. Assim é porque a economia mundial em declive não permite integrar as novas zonas periféricas submetidas, os espaços conquistados não são absorvidos por negócios produtivos ou comerciais medianamente estáveis da metrópole e sim saqueados por grupos mafiosos e por vezes simplesmente empurrados para a decomposição. Enquanto isso os gastos militares e paramilitares dos Estados Unidos, o centro hegemónico do capitalismo, incrementam o seu défice fiscal e as suas dívidas.

Fica assim a descoberto um aspecto essencial do imperialismo do século XXI em mutação rumo a uma dinâmica de desintegração geral de alcance planetário. Isto é advertido não só por alguns partidários do anti-capitalismo como também, desde há algum tempo, por um número crescente de "prestigiosos" (mediáticos) defensores do sistema como o guru financeiro Nouriel Roubini quando proclamava em meados de 2011 que o capitalismo havia entrado num período de auto-destruição [3] .

É um lugar comum a afirmação de que o capitalismo não ruirá por si só e sim que é necessário derrubá-lo. Em consequência, aqueles que assinalam a tendência para a auto-destruição do sistema são acusados de ignorar suas fortalezas e sobretudo de fomentar a passividade ou as ilusões acerca de possíveis " vitórias fáceis" que desarmam, distraem os que lutam por um mundo melhor.

Na realidade, ignorar ou subestimar o carácter autodestrutivo do capitalismo global do século XXI significa desconhecer ou subestimar fenómenos que sobredeterminam seu funcionamento, como a hegemonia do parasitismo financeiro, a catástrofe ecológica em curso, o declínio dos recursos naturais especialmente os energéticos catalisado pela dinâmica tecnológica dominante, a incapacidade da economia mundial para continuar a crescer, o que a leva a acelerar a concentração de riquezas e a marginalização de milhares de milhões de seres humanos que "estão a mais" do ponto de vista da reprodução do sistema. Em suma a entrada numa era marcada pela reprodução ampliada negativa das forças produtivas da civilização burguesa, ameaçando a longo prazo a sobrevivência da maior parte da espécie humana.

Presenciamos então uma subestimação de aparência voluntarista que oculta a devastadora radicalidade da decadência e, em consequência, a necessidade da irrupção de um voluntarismo insurgente (anti-capitalista) capaz de impedir que o derrube nos sepulte a todos. Dito de outra maneira, não nos encontramos diante de uma "crise cíclica" com alternativas de recomposição de uma nova prosperidade burguesa, ainda que seja elitista, e sim diante de um processo de degeneração sistémica total.

A história das civilizações recorda-nos numerosos casos (a começar pelo do Império Romano) em que a hegemonia civilizacional que conseguia reproduzir-se em meio a decadência anulava as tentativas superadoras engendrando decomposições que incluíam vítimas e verdugos.

A contra-revolução ideológica que dominou o pós guerra fria cunhou uma espécie de marxismo conservador que caricaturou a teoria da crise de Marx reduzindo-a a uma sucessão infinita de "crises cíclicas" das quais o capitalismo sempre conseguia sair graças à exploração dos trabalhadores e da periferia. O ogre era denunciado, ficando demonstrado uma vez mais quem era o vilão do filme.

Mas a história não se repete. Nenhuma crise cíclica mundial se parece com outra e todas elas, para serem realmente entendidas, devem ser incluídas no percurso temporal do capitalismo, no seu grande e único super-ciclo. É o que nos permite, por exemplo, distinguir as crises cíclicas de crescimento, juvenis do século XIX, das crises senis de finais do século XX e do século XXI.

Por outro lado, é necessário descartar a ideia superficial de que a auto-destruição do sistema equivale ao suicídio histórico isolado das elites globais libertando automaticamente das suas cadeias o resto do mundo, o qual um bom dia descobre que o amo morreu e então dá largas à sua criatividade. É o mundo burguês na sua totalidade o que iniciou a sua auto-destruição e não só as suas elites. É toda uma civilização (...)

Ver o texto completo em resistir.info

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