FÁBULAS
Os Piratas
Os piratas sempre rondaram as
costas de Portugal. Durante muitos séculos eram mouriscos, o que, de resto se
compreende: boa parte deste território havia sido deles, terra lavrada,
comércio laborioso, castelos e mesquitas, poetas e tolerantes califas. Foram
expulsos à espadeirada, não sem muito esforço e muitas tréguas prolongadas.
Netos e bisnetos por cá permaneceram, filhos da terra e de casamentos cruzados,
tudo boa gente ao que se sabe, e no nosso caráter há de restar bastante.
Os seus primos, chamemos-lhes
assim, os piratas, atravessavam o estreito e assediavam vilas e aldeias, em
ladroeiras fulminantes e silenciosas, importunando menos os nobres,
provavelmente, do que os servos e plebeus. Os nobres recolhiam-se em castelos
bem fortificados e não há memória de assaltos em grande escala. Deste modo os
pobres pescadores de cá conviveram, a custo pois claro, com os magrebinos, pouco
deles se distinguindo na pele tisnada comum, nos olhos negros das mulheres, na
melancolia das suas lamúrias.
Tempos vieram em que os piratas
eram outros. Ingleses, americanos, alemães, arribaram por dentro e por fora,
pelo mar e pelo ar, ricos, bem nutridos, loiros e olho azul, que logo se
instalaram em magníficos palácios que os nobres indígenas escancararam com
hospitaleiro servilismo. Alguns ficaram, outros partiram, sempre por turnos,
sorvendo, deglutindo, ensinando, impondo acordos, ditando memorandos, sorvendo,
deglutindo. As melhores peças de caça das coutadas reais, os melhores vinhos,
as especiarias e esmeraldas, os marfins e o oiro. Proibiam, por força ou por
manhas, a produção nacional, desta feita vendiam os seus produtos, emprestavam
dinheiro para os indígenas os comprarem, recebiam juros e voltavam a emprestar,
num círculo que apenas era virtuoso para eles. Em jantares opíparos, com os
nobres indígenas sentados à sua direita, cantavam, roucos e lúbricos, canções
estranhas das suas terras longínquas.
Certo dia, ou certa noite, quando
soprava um vento agreste e as ondas rebentavam nas falésias, sobreveio um
terramoto. A bem dizer não se sabe ainda hoje o que foi, se terramoto se outra
coisa qualquer. Os fatos alteram-se conforme quem os conta. Sucedeu há tanto
tempo que nenhum registo desse fado subsiste. Os meus avós desapareceram há
muito. A minha avó, mulher de alma sã e mente lúcida, contava-me para eu
adormecer, nas horas geladas dos invernos, sempre a mesma história, curta e
incisiva:
“ Em tempos que já lá vão esta terra
não era nossa. De quando em vez dragões repelentes e mortíferos brotavam do
chão e desciam dos céus. Tinham por costume não ferir ninguém de morte, matavam
pela fome, humilhavam pela miséria, saqueando searas, encerrando fábricas,
escolas, hospitais, afugentando com línguas de fogo operários e empregados,
esbulhando salários e pensões. Traziam uma doutrina e somente essa era
permitida, inoculada nas mentes com subtis venenos. Assim foi até que um dia
(ou noite, não se sabe quando) a atmosfera mudou subitamente, o ar tornou-se
irrespirável, e os primeiros a fugir foram os dragões, logo seguidos em tropel
espavorido pelos seus acólitos que falavam a nossa língua. Foi, pode-se dizer,
um ar que se lhes deu!”
“E tu, avó, como conseguias
respirar?- questionava eu do alto dos meus cinco anos de petiz.”
“Ora, eu e toda a gente que não era
dragão nem filho dele, habituámo-nos depressa à nova atmosfera. Se sempre
vivêramos com veneno, melhor vivemos sem ele!”
NOZES PIRES
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