CHEVITARESE, L. (2001): “As ‘Razões’ da Pós-modernidade”. In: Analógos. Anais da I SAF-PUC. RJ:
Booklink. (ISBN 85-88319-07-1)
As “razões” da pós-modernidade
Sem os punhos de ferro da modernidade,
a pós-modernidade precisa de nervos de
aço1.
Apresentação
Frederic Jameson considera os anos 60 como o início da pós-modernidade,
entendida por ele como lógica cultural do capitalismo tardio. Mas apenas a partir da
década de 70 o debate em torno do tema torna-se mais inflamado. As raízes da
discussão encontram-se na crise cultural que se faz sentir, principalmente, a partir do
pós-guerra. O desencanto que se instala na cultura é acompanhado da crise de conceitos
fundamentais ao pensamento moderno, tais como “Verdade”, “Razão”, “Legitimidade”,
“Universalidade”, “Sujeito”, “Progresso”, etc. O efeito da desilusão dos sonhos
alimentados na modernidade se faz presente nas três esferas axiológicas por ela mesma
diferenciadas: a estética, a ética e a ciência. Tal efeito, apresenta-se nos mais diversos
campos de produção cultural, tais como a literatura, a arte, a filosofia, a arquitetura, a
economia, a moral, etc.
Surgem questões que se tornam alvo de intenso debate na atualidade: estaríamos,
nessa “crise cultural”, vivendo uma crise da modernidade? Seria a crise o anúncio de
um obituário, que nos convidaria a falar em “pós-modernidade”, como superação ou
ruptura com a modernidade? Poderia a noção de “pós-modernidade” servir para
caracterizar a cultura contemporânea?
1 BAUMAN, Zygmunt: Modernidade e Ambivalência. RJ. Jorge Zahar Editor. 1999. Pág. 259.
Em 1979, Jean-François Lyotard publica La Condition Postmoderne, no qual
apresenta o problema da legitimação do conhecimento na cultura contemporânea. Para
Lyotard, “o pós-moderno, enquanto condição da cultura nesta era [pós-industrial],
caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosóficometafísico,
com suas pretensões atemporais e universalizantes”2. Por outro lado,
Habermas prefere compreender a modernidade como um “projeto inacabado”,
sugerindo que “deveríamos aprender com os desacertos que acompanham o projeto”3.
Será que “dizer que somos pós-modernos dá um pouco a impressão de que deixamos de
ser contemporâneos de nós mesmos”4? Mas se ainda reivindicarmos nossa “condição
moderna”, como tratar de todas as mudanças que marcam a cultura contemporânea, e
que a tornaram tão estranha a certas noções fundamentais à modernidade?
O que pretendo, aqui, é investigar brevemente a aplicação do conceito de “pósmodernidade”
à cultura contemporânea e as possíveis “razões” dessa aplicação.
Articula-se, logo de início, uma problemática: se a pós-modernidade, como o próprio
termo sugere, caracteriza-se em primeira instância como uma reação (ou rejeição) à
modernidade, seria ela o triunfo do irracionalismo, ou a pós-modernidade pressupõe, em
última análise, algum conceito de “razão”, para além de seu relativismo epistêmico mais
superficial? Caso a resposta seja positiva, quais são “As ‘razões’ da pós-modernidade”?
A Modernidade e o Desencanto na Cultura
2 LYOTARD, Jean-François: O pós-moderno. RJ. Olympio Editora. 1986. Introdução, viii.
3 HABERMAS, J.: “Modernidade – um projeto inacabado”. In: ARANTES, O. & ARANTES, P.: Um
ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. SP. Brasiliense. 1992. Pág. 118.
4 ROUANET, S. P.: As razões do iluminismo. SP. Companhia das Letras. 1987. Pág. 229.
O termo “pós-modernidade” encontra-se ligado à significação de
“modernidade”, até por que não faria sentido ser “pós” alguma coisa que não se sabe o
que é. O “pós-moderno” representa alguma espécie de reação ou afastamento do
“moderno” 5. Contudo, não basta apenas a análise do conceito de modernidade, pois o
próprio prefixo “pós” articula problemáticas situadas em diversas áreas. Krishan Kumar
chama à atenção que o prefixo “pós”, de “pós-modernidade”, é ambíguo: pode significar
um novo estado de coisas, no sentido do que vem depois; ou pode ser usado como o
post de post-mortem, sugerindo fim, término6.
Será então necessário ressaltar primeiro as perspectivas fundamentais da própria
“modernidade”, para então estabelecermos em que sentido podemos falar de uma
“posterioridade” na “pós-modernidade”.
No início do século XX, Max Weber já caracterizava o advento da modernidade
como um processo crescente de “racionalização intelectualista”, intimamente ligado ao
progresso científico, que leva ao “desencantamento do mundo”7. Vejamos o que
Habermas nos diz, comentando Weber:
Max Weber caracterizou a modernidade cultural, mostrando que
a razão substancial expressa em imagens de mundo religiosas e
metafísicas se divide em três momentos, os quais apenas
formalmente (mediante a forma de fundamentação
argumentativa) ainda podem ser mantidos juntos. Uma vez que
as imagens de mundo se desagregam e os problemas legados se
cindem entre os pontos de vista específicos da verdade, da
justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser
tratados, respectivamente como questão de conhecimento, como
questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos
5 Cf. HARVEY, David: Condição pós-moderna. SP. Edições Loyola. 1992. Pág. 19.
6 Cf. KUMAR, Krishan: Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. RJ. Jorge Zahar Editor. 1997. Pág.
79.
7 Cf., p.ex., WEBER, Ciência e Política. Duas vocações. SP. Cultrix, 1968. Págs. 30 / 31.
modernos uma diferenciação de esferas de valor: ciência, moral
e arte.8
O conjunto de idéias e perspectivas que caracterizam a modernidade parece
constituir um grande sonho que a humanidade elaborou para si mesma9, ou ainda um
audacioso projeto da Razão como libertadora. O Discurso iluminista de emancipação
pela revolução, ou pelo saber, sustenta essa confiança na capacidade da Razão10.
Habermas chama a atenção para o que ele denomina projeto da modernidade, e que tem
sido amplamente discutido na atualidade, como demonstra David Harvey:
Embora o termo “moderno” tenha uma história bem mais
antiga, o que Habermas chama de projeto da modernidade
entrou em foco durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a
um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas
“para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei
universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica
interna destas”. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento
gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em
busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida
diária.11
A aplicação ampla da racionalidade na organização social prometia a segurança
de uma sociedade estável, democrática, igualitária (incluindo o fim de estados
teocráticos, de perseguições sociais produzidas pela superstição, de abusos de poder por
parte dos governantes, etc). A possibilidade de domínio científico representava o aceno
de uma ambicionada segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a
imprevisibilidade do mundo natural (desde condições climáticas e de relevo, a doenças
físicas e mentais): a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana.
8 HABERMAS, J.: “Modernidade – um projeto inacabado”. In: ARANTES, O. & ARANTES, P., op. cit.,
1992. Págs. 109 / 110.
9 Bauman, p.ex., denominou “sonho da razão legislativa”. Cf. BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 29.
10 Cf. CASSIRER, Ernest: A Filosofia do Iluminismo. SP. Editora da Unicamp. 1994. Pág. 21.
11 HARVEY, op.cit., 1992. Pág. 23, meu grifo.
Estes foram sonhos demasiadamente caros para a humanidade, pelos quais se
permitiu a hipervalorização do conhecimento objetivo e científico. O que Ken Wilber,
p.ex., prefere chamar de desastre da modernidade: “uma patologia, que logo permitiu
que uma poderosa ciência monológica colonizasse e dominasse as outras esferas (a
estético-expressiva e a religiosa-moral)”12.
Naturalmente, o investimento cultural na racionalidade universal e na ciência
(que nos protegeriam do caos e da aleatoriedade) exigiu uma restrição da liberdade
individual. Harvey observa que “há a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava
fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca de emancipação humana num
sistema de opressão universal em nome da libertação humana”13.
A expectativa quanto aos frutos da ciência foi dolorosamente interrompida por
eventos que marcaram profundamente a sociedade atual. O principal deles foi, sem
dúvida, a catástrofe da Segunda Guerra Mundial e a insuportável lembrança de
acontecimentos como Auschwitz e Hiroshima: “cortada ao meio pela guerra fria, cética
em relação à construção ‘comunitária’ que lhe propõem tecnocratas e políticos, a
Europa dos anos 50 deixou de acreditar no futuro”14.
A ciência perdeu boa parte da aura de autoridade que um dia
possuiu. De certa forma, isso provavelmente é resultado da
desilusão com os benefícios que, associados à tecnologia, ela
alega ter trazido para a humanidade. Duas guerras mundiais, a
invenção de armas de guerra terrivelmente destrutivas, a crise
ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século
poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores do
progresso por meio da investigação científica desenfreada15.
12 WILBER, The Marriage of Sense and Soul: integrating science and religion. New York. Random
House. 1998. Pág. 55, meus grifos.
13 HARVEY, op.cit., 1992. Pág. 23.
14 DELACAMPAGNE, C.: História da Filosofia no Século XX. RJ. Jorge Zahar Editor. 1995. Pág. 233.
15 GIDDENS, A. : “A vida em uma sociedade pós-industrial”. In: BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony &
LASH, Scott: Modernização Reflexiva. SP. UNESP. 1997. Pág. 109.
Já não parece claro que a investigação científica possa “garantir” o que quer que seja.
Além disso, a dúvida sobre os “benefícios” trazidos pela tecnologia torna-se cada vez
mais cotidiana, doméstica, principalmente à medida em que se intensifica a dependência
a esta mesma tecnologia crescente (incluindo, p.ex., a dependência cada vez maior de
aparelhos eletrodomésticos, automóveis, computadores, etc – sem os quais, para muitos,
tornou-se “impossível” viver).
Na medida em que as expectativas criadas não se puderam realizar efetivamente,
surgiram a frustração, o relativismo e o niilismo16. Mas a própria exigência de
radicalidade crítica da modernidade já trazia consigo a “armadilha da dúvida”:
(...) as sementes de niilismo estavam no pensamento
iluminista desde o início. Se a esfera da razão está inteiramente
desagrilhoada, nenhum conhecimento pode se basear em um
fundamento inquestionado, por que mesmo as noções mais
firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em
princípio” ou até “ulterior consideração”. De outro modo elas
reincidiriam no dogma e se separariam da própria esfera da
razão que determina qual validez está em primeiro lugar.17
Esta é uma tese que considero particularmente importante: o Desencanto na
Cultura, entendido como perda de horizontes, sensação de caos, incerteza e relatividade,
é algo que desde o início da modernidade encontrava-se embrionário, implícito nas
próprias exigências críticas da Razão – o que gostaria de chamar de “a outra face da
moeda iluminista”. Mas se não há mais otimismo quanto aos rumos da cultura moderna,
esse desencanto vem acompanhado da rejeição a tudo que é tido como opressivo, da
desconfiança a todo discurso que pretenda dizer ‘o que são as coisas’, ‘o que devemos
fazer’, ‘como sentir’. É a dúvida quanto às possibilidades de fundamentação racional, a
16 Diversos teóricos demonstraram a relação entre o niilismo e a pós-modernidade. Ver, p.ex.,
VATTIMO, Gianni: O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Lisboa.
Editorial Presença. 1987.
17 GIDDENS, As consequências da modernidade. SP. Unesp. 1991. Pág. 54, meu grifo.
suspeita quanto às narrativas globalizantes, que caminha lado a lado do clamor por
liberdade. A pós-modernidade configura-se como uma reação cultural, representa uma
ampla perda de confiança no potencial universal do projeto iluminista18.
O Ataque à Ciência e o Irracionalismo pós-moderno
Lyotard inicia sua tentativa de desmascarar a pretensão de legitimidade da
ciência, pela evidência de que não se pode prescindir do recurso a outra narrativa (nãocientífica)
para responder a pergunta: como provar a prova? As duas principais
narrativas às quais recorre a ciência moderna são as de emancipação filosófica e política
produzidas pelo iluminismo. Elas se diferenciam das narrativas pré-modernas, que se
centravam na tentativa de retornar, redescobrir e reviver uma verdade originária, pois
são essencialmente teleológicas, visam a um determinado objetivo final, e dependem de
uma idéia de progresso temporal. Segundo Lyotard, o descrédito em relação a tais
narrativas de grande envergadura (grands récits), de caráter totalizante, e a falência das
pretensões de legitimação através delas estão no fundamento da condição pós-moderna:
“simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos
metarrelatos”19.
Segundo Bauman, a dúvida que problematiza o conhecimento, e que se torna
mais evidente na condição pós-moderna, é aquela que “desafia o direito de a ciência
validar e invalidar, legitimar e deslegitimar – em suma, de traçar a linha divisória entre
conhecimento e ignorância”20. A condição pós-moderna nos faz encarar o “demônio da
improcedência da certeza”, que em sua forma mais assustadora suscita a suspeita de que
18 Cf., p.ex., FEATHERSTONE, Cultura de consumo e Pós-modernismo. SP. Studio Nobel. SESC. 1995.
Pág. 66.
19 Idem. Introdução, pág. xvi.
20 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 257.
a ciência pudesse ser apenas uma forma de mitologia sofisticada, “apenas uma versão
dentre muitas”21. Todavia, o “enfrentamento” da incerteza pode ser vivido como
desqualificação total da ciência e sua igualação a outras formas de saber , ou como
consciência da incerteza e da ambivalência pós-modernas, que exige uma nova relação
com a questão da legitimação e da certeza do conhecimento. De qualquer modo, o
Ataque à Ciência pode ser compreendido como um advento da reação cultural que
acompanha a perda de confiança na objetividade da Razão.
A ansiedade pós-moderna pela plenificação da liberdade reflete a profunda
descrença cultural em um “caminho seguro” para a felicidade. Por outro lado, ao mesmo
tempo em que se intensifica o sentimento de liberdade (nas palavras de Dostoievsky:
“se Deus está morto, tudo é permitido”), cresce a insegurança em relação ao que fazer,
i.e., a capacidade de decidir “corretamente” no exercício da liberdade. A permissividade
total mostra-se culturalmente tão assustadora quanto uma cruel limitação: “poder tudo”
é tão angustiante quanto “não poder nada”.
É inteiramente diferente viver com a consciência pós-moderna
de que não há nenhuma saída certa para a incerteza; de que a
fuga à contingência é tão contingente quanto a condição da qual
se busca fugir. O desconforto que tal consciência produz é a
fonte de mal-estares especificamente pós-modernos22.
A condição pós-moderna nos traz a consciência da incerteza e da ambivalência.
Respostas em suspenso. Mal-estar diante de um mundo caótico. “A cultura já não pode
mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou
ordenar nossas vidas”23. É por isso que Giddens afirma que “não há nada de misterioso
21 Idem. Pág. 258.
22 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 250.
23 FEATHERSTONE, Mike: O Desmanche da Cultura. SP. Studio Nobel. SESC. 1997. Pág. 15.
no surgimento do fundamentalismo no mundo moderno tardio”24. Adotar uma única
resposta é evitar a experiência angustiante da dúvida radical, cujo fascínio advém da
promessa de livrar os convertidos das agonias da escolha individual. O
fundamentalismo25, é um exemplo de ausência crítica, ou irracionalismo pós-moderno,
uma forma de usar a liberdade para tentar fugir dela.
Baudrillard, por sua vez, afirma que a única coisa que dá sentido às massas é o
espetáculo26. O fascínio pelo espetacular torna-se cada vez mais evidente na condição
pós-moderna, o que não pode ser dissociado do desenvolvimento da tecnologia de
informação e de transformações econômicas que fazem, p.ex., Jameson tomar a pósmodernidade
como “lógica cultural do capitalismo tardio”.
Muitos teóricos têm caracterizado a cultura atual como sociedade de consumo, o
que corresponde a aceitar que o mapeamento deste mundo simulacional das mercadorias
é um dos eixos centrais para a compreensão da cultura. Se outrora o consumo era apenas
uma conseqüência da produção de mercadorias, “hoje é preciso produzir os
consumidores, é preciso produzir a própria demanda, e essa produção é infinitamente
mais custosa do que a de mercadorias”27. O consumo de produtos e serviços está
mergulhado no sonho que envolve cada signo-mercadoria. Campbell, p.ex., desenvolve
uma análise do consumo, identificando suas relações com o romantismo, com o sonho,
com a busca imaginária de realização: “a atividade essencial do consumo não é a
24 GIDDENS,: “A vida em uma sociedade pós-tradicional”. In: BECK, GIDDENS & LASH, op.cit.,
1997. Pág. 123.
25 “O fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida
pelo mercado e pós-moderna – a liberdade contaminada pelo risco (um remédio que cura a infecção
amputando o orgão infeccionado – abolindo a liberdade como tal, na medida em que não há liberdade
livre de riscos)”. BAUMAN, O mal-estar da pós-modernidade. RJ. Jorge Zahar Editor. 1998. Pág. 228.
26 Cf. BAUDRILLARD, À sombra das maiorias silenciosas. SP. Editora Brasiliense. 1993. Pág. 14.
27 BAUDRILLARD, op.cit., 1993. Págs. 26/27.
seleção, a aquisição ou o uso real dos produtos, mas a procura imaginária do prazer a
que se presta a imagem do produto”28.
A preocupação com o estilo de vida passa a ser um indicativo fundamental.
Baudrillard ressalta que “o lúdico do consumo tomou progressivamente o lugar do
trágico da identidade”29. Esta tendência de irracionalismo pós-moderno afirma: “dizme
o que consomes e dir-te-ei quem és”. (E não é pequeno hoje em dia o número de
pessoas que tenta “resolver” – ou pelo menos adiar – suas crises de identidade pessoal
ou social entregando-se compulsivamente ao consumo).
Apreciamos a diversidade de “sentidos” como imagens que se deslocam numa
tela de vídeo. Para Baudrillard, vivemos em uma cultura na qual “a televisão é o
mundo”: somos submetidos a uma torrente interminável de imagens, a um
bombardeamento de signos sem profundidade ou fragmentados, que constituem um
convite ao fascínio estético e à recusa de juízos morais. “Por toda parte já vivemos
numa alucinação ‘estética’ da realidade”30.
Todavia, se a estetização da realidade é uma “tendência cultural dominante”31,
não há mais autonomia nas esferas culturais, que surgem mergulhadas num turbilhão de
imagens ou “intensidades multifrênicas” (para usar um termo de Jameson). Tem-se,
então, a colonização pela estética das demais esferas da cultura: “as diferentes esferas
culturais – a estética, a ética, a teórica – perdem sua autonomia, por exemplo, o reino
estético começa a colonizar as esferas teórica e moral-política”32.
28 CAMPBELL, C.: The Romantic Ethic and the Spirit of Modern Consumerism. Oxford. Blackwell.
1987. Apud FEATHERSTONE, op. cit., 1997. Pág. 45.
29 BAUDRILLARD, A Sociedade de Consumo. Lisboa. Edições 70. 1981. Pág. 240, meu grifo.
30 BAUDRILLARD, J.: Simulations. New York. Semiotext. 1983. Pág.148. Apud FEATHERSTONE,
op.cit., 1995. Pág. 102.
31 Cf. JAMESON, Frederic: Espaço e Imagem: teorias do pós-modernos e outros ensaios. RJ. Editora da
UFRJ. 1994. Pág. 136.
As “razões”da pós-modernidade
A pós-modernidade pode ser caracterizada como uma reação da cultura ao modo
como se desenvolveram historicamente os ideais da modernidade, associada à perda de
otimismo e confiança no potencial universal do projeto moderno. Em especial,
configura-se como uma rejeição à tentativa de colonização pela ciência das demais
esferas da culturais, o que vem acompanhado do clamor pela liberdade e
heterogeneidade, que haviam sido suprimidas pela esperança de objetividade da Razão.
Enquanto reação cultural, a pós-modernidade traz consigo fortes tendências ao
irracionalismo, o que pode ser exemplificado, tanto pelo fundamentalismo
contemporâneo, como pela sociedade de consumo, que convivem em um universo
cultural de colonização pela estética da ciência e da ética.
Estaríamos, então, vivendo uma crise da modernidade, ou seria melhor concebêla
como uma crise na modernidade? Não haveria um equívoco em rejeitar por completo
o projeto moderno, em função do que teria sido seu desastre inicial, i.e, o
agigantamento dos sonhos iluministas e a tentativa de colonização pela ciência? Tentar
“demitir-se” da modernidade não seria, na verdade, aprofundar seus “descaminhos”?
Não é possível lutar contra a modernidade repressiva senão
usando os instrumentos de emancipação que nos foram
oferecidos pela própria modernidade (...) Demitir-se da
modernidade é a melhor forma de deixar intata a modernidade
repressiva33.
Se aceitarmos que está interditada a possibilidade de abrir mão totalmente de certos
pressupostos básicos da modernidade, como a própria idéia de crítica, isto implica que,
se há crise, é na modernidade. Conforme Bauman nos indica,
32 KUMAR, op.cit., 1997. Pág. 128.
33 ROUANET, op.cit., 1987. Pág. 26.
a pós-modernidade é a modernidade que atinge a
maioridade, a modernidade olhando-se a distância e não de
dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas,
psicanalizando-se, descobrindo as intenções que jamais
explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes
e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade chegando a
um acordo com a sua própria impossibilidade, uma
modernidade que se automonitora, que conscientemente
descarta o que outrora fazia inconscientemente.34
Bauman (que utiliza o termo para caracterizar a cultura contemporânea) procura deixar
claro que a “pós-modernidade” é a condição atual da modernidade. Giddens, por outro
lado, prefere a noção de “modernidade tardia” ou “modernidade radicalizada”, como
mais adequada para referir-se à cultura em que vivemos:
A ruptura com as concepções providenciais de história, a
dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a
emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro
e o “esvaziamento” do progresso pela mudança contínua, são
tão diferentes das perspectivas centrais do Iluminismo que
chegam a justificar a concepção de que ocorreram transições de
longo alcance. Referir-se a estas, no entanto, como pósmodernidade,
é um equívoco que impede uma compreensão
mais precisa de sua natureza e implicações. As disjunções que
tomaram lugar devem, ao contrário, ser vistas como resultantes
da auto-elucidação do pensamento moderno, conforme os
remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são
descartados. Nós não nos deslocamos para além da
modernidade, porém, estamos vivendo precisamente através de
uma fase de sua radicalização35
Ora, poderiam os homens modernos, na medida em que se assumem radicalmente
enquanto tais, deixar de realizar uma grave crítica à própria modernidade? Segundo
Bauman, “os mais brilhantes e mais fiéis filhos da modernidade não podiam expressar
34 BAUMAN, op.cit., 1999. Pág. 288, meu grifo.
35 GIDDENS, op.cit., 1991. Pág. 56/57, meu grifo.
sua lealdade filial senão se tornando os seus coveiros”36. Ou ainda: como não esperar
que tentassem ser “pós-modernos”?
Sendo assim, o “pós” de “pós-modernidade” não pode denotar, de fato, ruptura
ou esgotamento da modernidade, não pode significar seu obituário, mas, ao contrário,
revela uma crise na modernidade (portanto, jamais uma crise da modernidade), revela,
digamos, um modo de “experimentar” a modernidade.
Isto significa, por outro lado, que podemos tomar o conceito de “pósmodernidade”,
enquanto tentativa de caracterização da cultura contemporânea, como
sintoma da crise na modernidade. Em outras palavras, ele seria “autêntico em sua
inadequação” 37 à caracterização de uma época de crise, uma época de transição. Ou
simplesmente, como Jameson argumenta, não podemos não usá-lo – ainda que para
tanto sejamos obrigados, todas as vezes, a enfrentar as contradições internas, e a
inconsistência de representação implícita ao termo 38. Sustento, portanto, que vivemos
em uma cultura pós-moderna.
A pós-modernidade não abandona os imperativos de racionalidade crítica, ao
contrário, leva a crítica às mais profundas conseqüências, questionando os conceitos e
pressupostos da modernidade. E há boas “razões”39 para isso, que se revelam pela
própria crise na cultura moderna. As “razões” da pós-modernidade são “razões” para
que se reavaliem os “desacertos do projeto”, para que sejam revistas as noções mais
fundamentais da modernidade, incluindo o próprio conceito de “Razão”; são “razões”
para que se mantenha a autonomia das esferas culturais, evitando reducionismos
36 BAUMAN, op.cit., 1998. Pág. 98.
37 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza: Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. SP.
Cortez. 1997. Pág. 77.
38 Cf. JAMESON, op.cit., 1996. Pág. 25.
39 Entendo por “razões”, aqui, neste contexto, as justificativas críticas de revisão da modernidade – o
fundamento da reação cultural que vivemos – , que se têm tornado cada vez mais evidentes a partir da
crise na modernidade. Por outro lado, também uso “razões”, em “razões da Pós-modernidade ”, no
sentido mais fraco, de “razões” (ou justificativas), para o uso do termo “pós-modernidade”.
de qualquer espécie – seja do cientificismo, ou, na condição pós-moderna, do
esteticismo. A cultura pós-moderna não tem mais “Razão”, tem “razões”.
A sombra do irracionalismo paira na pós-modernidade, penetrando nos mais
diversos aspectos do “modo de vida global” que é a cultura. Segundo Jameson, a
“completa estetização da realidade” é tendência cultural dominante no universo pósmoderno.
Ainda que possamos delinear as “razões” da pós-modernidade como
“razões” críticas para a revisão dos descaminhos da modernidade, na cultura
contemporânea a opção do irracionalismo permanece sempre à disposição. Talvez
como a tentação capital do “demônio da improcedência da certeza”.
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