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sexta-feira, 12 de julho de 2013

Somos todos vigiados

Ignacio Ramonet
10.Jul.13 :: Outros autores
Continuam a acumular-se revelações sobre o sistema global de espionagem de comunicações electrónicas montado pelos EUA. Uma das mais interessantes consiste em verificar-se que a Grã-Bretanha e a RFA, onde a imprensa manifestou grande indignação perante essas revelações, não só conduzem actuações semelhantes como têm fortes ligações a essa rede global.


Nós já o temíamos (1). Tanto a literatura (1984, de George Orwell), como o cinema (Minority Report, de Steven Spielberg) haviam avisado: com o progresso da tecnologia da comunicação, todos acabaríamos sendo vigiados. Presumimos que essa violação de nossa privacidade seria exercida por um Estado neototalitário. Aí equivocámo-nos. Porque as revelações inéditas do ex-agente Edward Snowden sobre a vigilância orwelliana acusam directamente os Estados Unidos, país considerado como “pátria da liberdade”. Aparentemente, desde a promulgação, em 2001, da lei Patriot Act (2), isso ficou no passado. O próprio presidente Barack Obama acaba de admitir: “Não se pode ter 100% de segurança e 100% de privacidade”. Bem-vindos, portanto a era do “Grande Irmão”…
O que revelou Snowden? Este antigo assistente técnico da CIA, de 29 anos, que trabalhava para uma empresa privada – a Booz Allen Hamilton (3) – subcontratada pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, sua sigla em inglês), vazou para os jornais The Guardian e Washington Post, a existência de programas secretos que tornam o governo dos Estados Unidos capaz de vigiar a comunicação de milhões de cidadãos.
Um primeiro programa entrou em operação em 2006. Consiste em espiar todas as chamadas telefónicas feitas pela companhia Verizon, dentro dos Estados Unidos, e as que se fazem de lá ao exterior. Outro programa, chamado PRISM, foi posto em marcha em 2008. Colecta todos os dados enviados, pela internet (e-mails, fotos, vídeos, chats, redes sociais, cartões de crédito), por (a princípio…), estrangeiros que moram fora do território norte-americano. Ambos os programas foram aprovados em segredo pelo Congresso norte-americano, que teria sido, segundo Barack Obama, “constantemente informado” sobre seu desenvolvimento.
Sobre a dimensão da incrível violação dos nossos direitos civis e nossas comunicações, a imprensa deu detalhes escabrosos. Em 5 de Junho, por exemplo, o Guardian publicou a ordem emitida pelo Tribunal de Supervisão de Inteligência Externa, que exigia à companhia telefónica Verizon entregar à NSA os registros de milhões de chamadas de seus clientes. O mandato não autoriza, aparentemente, saber o conteúdo das comunicações, nem os titulares dos números de telefone, mas permite o controlo da duração e destino dessas chamadas. No dia seguinte, o Guardian e o Washington Post revelaram a realidade do programa secreto de vigilância PRISM, que autoriza a NSA e o FBI a aceder aos servidores das nove principais empresas da internet (com a notável excepção do Twitter): Microsoft, Yahoo, Google, Facebook (4), PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple.
Por meio dessa violação, o governo estadunidense pode aceder a arquivos, áudios, vídeos, e-mails e fotografias de usuários dessas plataformas. O PRISM converteu-se, desse modo, na ferramenta mais útil da NSA para fornecer relatórios diários ao presidente Obama. Em 7 de Junho, os mesmos jornais publicaram uma directiva da Casa Branca que ordenava, a suas agências (NSA, CIA, FBI), estabelecer uma lista de possíveis países susceptíveis de serem “ciberatacados” por Washington. E em 8 de Junho, o Guardian revelou a existência de outro programa, que permite à NSA classificar os dados recolhidos na rede. Esta prática, orientada a ciber-espionagem no exterior, permitiu compilar – só em Março – cerca de 3 bilhões de dados de computador nos Estados Unidos…
Nas últimas semanas, ambos os jornais conseguiram revelar, sempre graças a revelações de Edward Snowden, novos programas de ciberespionagem e vigilância da comunicação em países no resto do mundo. Edward Snowden explica: “A NSA construiu uma infra-estrutura que lhe permite interceptar praticamente qualquer tipo de comunicação. Com esta técnica, a maioria das comunicações humanas são armazenadas para servir em algum momento a um objectivo determinado”.
A Agência de Segurança Nacional (NSA), cujo quartel-general fica em Fort Meade (Maryland), é a mais importante e mais desconhecida agência de inteligência norte-americana. É tão secreta que a maioria dos norte-americanos ignora sua existência. Controla a maior parte do orçamento destinado aos serviços de inteligência, e produz mais de cinquenta toneladas de material por dia… É ela – e não a CIA – a proprietária e operadora da maior parte do sistema de colecta de dados da inteligência secreta dos EUA. Desde uma rede mundial de satélites até as dezenas de postos de escuta, milhares de computadores e as florestas de antenas localizadas nas colinas de West Virgínia. Uma de suas especialidades é espiar os espiões — ou seja, os serviços secretos de inteligência de todas as potências, amigas e inimigas. Durante a guerra das Malvinas (1982), por exemplo, a NSA decifrou o código secreto dos serviços de inteligência argentinos, o que lhe possibilitou transmitir, aos britânicos, informações cruciais sobre as forças argentinas.
O vasto sistema de interceptação da NSA pode captar discretamente qualquer e-mail, qualquer consulta de internet ou telefonema internacional. O conjunto total da comunicação interceptada e decifrada pela NSA constitui a principal fonte de informação clandestina do governo estado-unidense.
A NSA colabora estreitamente com o misterioso sistema Echelon. Criado em segredo, depois da Segunda Guerra Mundial, por cinco potências anglo-saxónicas — Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia (os “cinco olhos”). O Echelon é um sistema orwelliano de vigilância global, que se estende por todo o mundo, monitora os satélites usados para transmitir a maioria dos telefonemas, comunicação na internet, e-mails, redes sociais etc. O Echelon é capaz de capturar até dois milhões de conversas por minuto. Sua missão clandestina é a espionagem de governos, partidos políticos, organizações e empresas. Seis bases espalhadas pelo mundo recolhem informações e interceptam de forma indiscriminada enormes quantidades de comunicação. Em seguida, os supercomputadores da NSA classificam este material, por meio da introdução de palavras-chaves em vários idiomas.
Em torno do Echelon, os serviços de inteligência dos EUA e do Reino Unido estabeleceram uma larga colaboração secreta. E agora sabemos, graças às novas revelações de Edward Snowden, que a espionagem britânica também grampeia clandestinamente cabos de fibra óptica, o que lhe permitiu espionar as comunicações das delegações presentes na reunião de cúpula do G-20, em Londres, em Abril de 2009. Sem distinguir entre amigos e inimigos (5).
Por meio do programa Tempora, os serviços britânicos não hesitam em armazenar enormes quantidades de informação obtidas ilegalmente. Por exemplo, em 2012, manejaram cerca de 600 milhões de “conexões telefónicas” por dia e grampearam, em perfeita ilegalidade, mais de 200 cabos… Cada cabo transporta 10 gigabytes (6) por segundo. Em teoria, poderia processar 21 peta bytes (7) por dia; equivalente a toda a informação da Biblioteca Britânica, enviada 192 vezes ao dia.
Os serviços de inteligência constatam que a internet já tem mais de 2 bilhões de usuários no mundo e que quase 1 bilhão utiliza o Facebook de forma habitual. Por isso, fixaram como objectivo, transgredindo leis e princípios éticos, controlar tudo que circula na internet. E estão conseguindo: “Estamos começando a dominar a internet”, confessou um espião inglês, “e nossa capacidade actual é bastante impressionante”. Para melhorar ainda mais esse conhecimento sobre a internet, o Quartel-Geral de Comunicações do Governo [Government Communications Headquarters, ou GCHQ, a agência de espionagem britânica] lançou recentemente novos programas: Mastering The Internet (MTI) sobre como dominar a Internet, e Programa de Modernização da Interceptação [Interception Modernisation Programme] para uma exploração orwelliana das telecomunicações globais. Segundo Edward Snowden, Londres e Washington já acumulam, diariamente, uma quantidade astronómica de dados, interceptados clandestinamente através das redes mundiais de fibra óptica. Ambos países dispõem de um total de 550 especialistas para analisar essa titânica informação.
Com a ajuda da NSA, a GCHQ aproveita-se de que grande parte dos cabos de fibra óptica por onde trafegam as telecomunicações planetárias passam pelo Reino Unido. Este fluxo é interceptado com programas sofisticados de informática. Em síntese, milhões de telefonemas, mensagens electrónicas e dados sobre visitas na internet são armazenados sem que os cidadãos saibam, a pretexto de reforçar a segurança e combater o terrorismo e o crime organizado.
Washington e Londres colocaram em marcha o plano orwelliano do “Grande Irmão”, com capacidade de saber tudo que fazemos e dizemos em nossas comunicações. E quando o presidente Obama menciona a suposta “legitimidade” de tais práticas de violação de privacidade, está defendendo o injustificável. Além disso, há de se lembrar que, por interceptarem informação sobre perigosos grupos terroristas com base na Flórida – ou seja, uma missão que, segundo a lógica do presidente Obama seria “perfeitamente legitima” — cinco cubanos foram detidos em 1998 e condenados (8) pela justiça dos EUA a largas e imerecidas penas de prisão (9).
O presidente Barack Obama está abusando de seu poder e diminuindo a liberdade de todos os cidadãos do mundo. “Eu não quero viver numa sociedade que permite este tipo de acção”, protestou Edward Snowden, quando decidiu fazer suas impactantes revelações. Divulgou os fatos, e não por acaso, exactamente quando começou o julgamento do soldado Bradley Manning, acusado de revelar segredos a Wikileaks, organização internacional que divulga informações secretas de fontes anónimas. Enquanto isso, o ciber-activista Julian Assange está refugiado há um ano na Embaixada do Equador em Londres… Snowden, Manning e Assange, são defensores da liberdade de expressão, lutam em favor da democracia e dos interesses de todos os cidadãos do planeta. Hoje são assediados e perseguidos pelo “Grande Irmão” norte-americano (10).
Por que os três heróis de nosso tempo assumiram correr semelhantes riscos, que podem custar-lhes a própria vida? Edward Snowden, obrigado a pedir asilo político no Equador e em vinte países, responde “Quando se dá conta de que o mundo que ajudou a criar será pior para as próximas gerações, e que os poderes desta arquitectura de opressão se estendem, você entende que é preciso aceitar qualquer risco. Sem se preocupar com as consequências”.

(1) Ver, de Ignacio Ramonet, “Vigilância absoluta”, na Biblioteca Diplô, Agosto de 2003.
(2) Proposta pelo presidente George W. Bush e adoptada no contexto emocional que se seguiu aos ataques de 11 de Setembro de 2001, a lei “Patriot Act” autoriza controles que interferem com a vida privada, suprimem o sigilo da correspondência e liberdade de informação. Não requer a permissão para escutas telefónicas. E os investigadores podem aceder a informações pessoais dos cidadãos sem mandado.
(3) Em 2012, a empresa facturou 1,3 bilhão para “missões de assistência de inteligência.”
(4) Recentemente, soube-se que Max Kelly, chefe de segurança no Facebook, encarregado de proteger as informações pessoais dos usuários da rede social contra ataques externos, deixou a empresa em 2010 e foi contratado… pela NSA.
(5) Espiar diplomatas estrangeiros é legal no Reino Unido: protegido por uma lei aprovada pelos conservadores britânicos, em 1994, que coloca o interesse económico nacional acima da diplomacia.
(6) O byte é uma unidade de informação em computação. Um gigabyte é uma unidade de armazenamento cujo símbolo é GB, igual ou a bilhão de bytes, o equivalente a uma van repleta de páginas de texto.
(7) Um peta byte (PT) é igual a um quatrilhão de bytes — ou um milhão de gigabytes.
(8) A missão dos cinco Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e René González, era infiltrar-se e observar o processo de grupos de exilados cubanos para evitar actos de terrorismo contra Cuba. Porém o juiz condenou eles à prisão perpétua, disse a Amnistia Internacional em um comunicado que “durante o julgamento não mostrou qualquer prova de que os acusados tinham informações classificadas realmente tratado ou transmitida.”
(9) Ler de Fernando Morais, Os últimos soldados da guerra fria, Companhia das Letras
(10) Edward Snowden corre o risco de ser condenado a trinta anos de prisão após ter sido formalmente acusado pelo governo dos EUA de “espionagem”, “roubo” e “uso ilegal de propriedade do governo.”
Tradução Cauê Ameni

in ODiário.info

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