Dez teses sobre a Utopia
Nozes Pires
1.
O nome de Utopia deriva, como é sabido, do título da
obra ( 1515) de Thomas More, chanceler de Henrique VIII, cujo subtítulo é
esclarecedor: “ Discurso de um homem eminente, Rafael Hitlodeu, sobre a melhor
forma de comunidade política “- DE OPTIMO REIPUBLICAE STATU HABUIT-“.
Originariamente
foi o projecto de um Elogio da Sabedoria (Sophia),
resposta e complemento da obra do seu amigo Erasmo : “Elogio da Loucura” ( Moria), 1509, dedicada a More com alguma
ironia. Se pretender-se compreender
devidamente esta obra, no seu estilo, ideias e propósitos, dever-se-á
interligar as duas obras e os dois autores. É devedora do modelo clássico
imortalizado por Platão, A República,
mas nada há ali que seja repetição ou cópia; aliás, não se deve ignorar que
More foi um excelente leitor de S. Agostinho, o autor de A Cidade de Deus ( obra que considero milenarista, mas que não me
repugna de modo algum colocar entre as utopias de pendor profético e
escatológico do Ocidente europeu). A Utopia
, de T. More ( ou Morus) é claramente um objecto típico do Renascimento, tanto
na estrutura, como na tese principal que atribui aos homens a possibilidade, e
o dever, de transformar a vida e a sociedade, aqui, na Terra. A sua ironia e
uma forte pitada de cepticismo - que chamaríamos realismo - ( Amaurota, a capital, Cidade do Nevoeiro,
localiza-se na margem do rio Anidro, o rio sem água, o Estado é governado por
um príncipe sem povo, o país, habitado por cidadãos sem cidade, os seus
vizinhos são os homens sem país ) em lugar de contrariarem a convicção
humanista de More, dão-lhe uma tonalidade realista, racionalista, bem
representativa dos melhores espíritos renascentistas. Esta capacidade inventiva
e estilística para, por meio da ironia, permitir que o autor e o leitor se
distanciem e, simultâneamente, se
interessem, como um desafio e uma refutação, que eu apelido de
ingrediente superior da racionalidade, nem sempre perdurou em todas as utopias
escritas posteriores, mesmo aquelas que quase a copiam. À obra magistral subjaz
, assim, sempre esta interrogação : E se fosse assim? Vamos fazer de conta que
sim, que tanto é possível imaginá-la como realizá-la, ou ainda melhor : que
imaginá-la é já realizá-la. Quais seriam, então, os seus contornos e os seus
efeitos? O valor e o método das utopias radica aqui. E a sua inevitabilidade.
2.
O termo utopia é formado a partir de dois nomes
gregos: ouk (abreviado em ou diante de uma consoante), que
significa “não”, e que se tornou u e topos, que quer dizer “lugar”. Utopia é,
por conseguinte, um neologismo, nem grego nem latino, que, até por isso mesmo,
exprime magnificamente o sentido de “algures” que percorre toda a obra.
Todavia, repare-se que este “ País de Parte Nenhuma” não equivale a “um país
qualquer” mas, pelo contrário, sugere a construção do País da felicidade geral,
da República óptima, e foi este significado que permaneceu até aos nossos dias.
Contudo, desde logo importa porventura distinguir, embora não opor, dois
géneros literários ( e eidéticos) que correm o risco de se confundir: A Abadia de Thélème, de Rabelais (
episódio do Pantagruel), que descreve
uma terra de Cocagne ( em francês,
“massa de bolo”) , onde o princípio que reina é “Faz o que quiseres”, por um
lado e, por outro, o projecto detalhado, exposto com seriedade credível, da
Utopia republicana. Certamente que a primeira ficção retoma a mesma
antiquíssima metáfora utopista do ” rio do leite e do mel”, a ilha, as águas,
as fontes por onde jorrará a abundância em suma ( tanto na perspectiva do
Imaginário em geral, como da literatura, a recorrência de metáforas tece a
continuidade) e exprime, a seu modo, a mesma aspiração à liberdade plena de
todos em igualdade, se não absoluta pelo menos mutíssimo maior do que aquela
que efectivamente reina ; porém, a construção é diferente ( provavelmente
diferentes também os propósitos), e isso verifica-se desde A
República, de Platão, que se distingue dos cantos báquicos e dos mitos e se
distingue também de A Cidade das Aves,
comédia de Aristófanes. Alguns traços fortes das utopias tipificadas ajudarão a
distinguir estas duas modalidades tão próximas, como nos permitirão articular
mas não identificar, Uma História
Verídica, de Luciano, ou Uma Viagem à
Lua, de Cyrano, ou mesmo As Viagens
de Gulliver, de Swift, por um lado, e A
Utopia, de More, A Cidade do Sol,
de Campanella, A Nova Atlândida, de
Bacon, e por aí adiante. O estilo satírico e até burlesco, a comédia em suma,
não é utilizado pelos mais famosos utopistas ocidentais da Era Moderna ( Rousseau, Morelly, Mably, Deschamps, Mercier,
Babeuf, Fourier, Saint-Simon, Owen, Blanqui, Cabet, Weitling, L. Blanc,
Lamennais, Proudhon, Bakunine, Bellamy, W. Morris).
Não é estulto,
nem abusivo, estabelecer um paralelo entre u-topos
e o termo topos empregue por
Aristóteles como lugar do discurso.
Neste caso, dir-se-á que o não-lugar (u-topos)
seria um género de não-discurso, talvez
melhor : de meta-discurso; tanto uma forma de discurso que não é comum e
usual ( estranho, insólito) como um dircurso-outro, paradoxal, contraditório ao
comum, que se lhe opõe e o ultrapassa, que não respeita ( não parece respeitar-
daí a ironia) a lógica, sobretudo os juízos de experiência ; pelo qual a
essência se realiza pela força da possibilidade lógica ( e não se reduz à mera
probabilidade que caracteriza o discurso retórico). Topologia diferente,
alternativa, inventiva, imaginativa, discurso do desejo e do possível. Tal como
era possível, ao tempo de Morus, descobrir novos mundos. Para alguns autores,
utopia significa um lugar no Novo Mundo ( terra de todos os possíveis, virgem);
para mim, julgo que, não eliminando essa influência, significa transportar para
o Velho Mundo aquilo mesmo que o Novo Mundo parecia demonstrar : que os homens
podem ser felizes porque são capazes de mudar as suas relações sociais, que não
são eternas e “naturais”; a ilha da Utopia mostra que a felicidade radica no
acordo com a natureza, tanto a natureza humana como a demais. Creio que estas ideias as encontramos
em todas as utopias, desde as mais antigas às mais modernas. É de reter,
portanto, estes dois aspectos : primeiro - uma certa atitude idealista que
acredita que a força e a estrutura do pensamento introduz realidade no real ( a
essência identifica-se com a realidade); segundo- a crença racional de que
existe um “fundo” nas coisas que as predispõe para um acordo, equivalente a uma
determinada finalidade ( as utopias são avessas à casualidade, à contingência,
ao acidente). Mas estes traços não são permanentes.
3.
No interior das utopias, há ainda uma outra distinção a
efectuar: entre a utopia ( classificada também como eutopia- terra da
felicidade) e a distopia ( situação anómala de qualquer coisa determinada),
sendo que esta descreve , principalmente, a negatividade do que se observa, é
uma crítica negativa, com tons, por vezes, negros, sombrios, sem saída
esperançosa, uma espécie de cul-de-sac
pessimista; esta orientação deu corpo no nosso século às anti-utopias , que enunciam e anunciam todas as desgraças
contidas no bojo de determinadas doutrinas políticas (G. Orwell, Huxley,
Zamiatine, Karel Kapek) ; não é difícil discernir, no plano do romance, a
orientação positivamente utópica de A
Nebulosa de Andrómeda, de Iván Efrémov, da intenção absolutamente
adversária veiculada pela obra célebre de Orwell, separadas por um punhado
apenas de anos. As anti-utopias possuem a sua história que entronca, no plano
filosófico, num determinado cepticismo ( ao qual a tradição empirista
anglo-saxónica não é alheia) ou até pessimismo ( alimentado pelas experiências
realizadas) e, no plano da crítica, no confronto dialógico de ideias e
soluções. Orientam-se deliberadamente contra um determinado tipo de pensamento,
ao qual muitas vezes, e não é por acaso, acusam de meros sonhos, quimeras
simplistas, “utopias” ( o positivismo é responsável em grande parte por este
desdém). A crítica mordaz, por vezes caricatural, ao “estado de natureza” ( ao
“bom selvagem”) de Rousseau e outros ( celebrizada por ele mas não sua invenção
exclusiva) , no século dezoito, por círculos iluministas (uma das críticas mais
contundentes viria até de um utopista, Dom Deschamps, que professava ele
próprio uma nostalgia ruralista), insere-se neste quadro evolutivo da Razão.
Contudo, já o democrata grego Aristófanes satirizava impiedosamente
determinadas utopias filosóficas ( que veiculavam programas políticos
adversários); o próprio Platão forja a sua República, conforme as faculdades
naturais, contra a “utopia” democrática; Luciano de Samotrácia constrói
diálogos perfeitamente absurdos entre os “filósofos” do seu tempo e a sua crítica
dos mitos e utopias assume aspectos verdadeiramente alucinantes; S. Agostinho
esforça-se por demarcar-se do maniqueísmo e do milenarismo; Cyrano de Bergerac
, em L’Autre Monde, ridiculariza a
ignorância dos poderosos e, brincando às utopias, não permite que dos mundos
efabulados ( que tanto enaltecem o valor da imaginação barroca, como , pelo seu
excesso de absurdo, impossibilitam, desde logo, a sua existência) se extraia
uma alternativa coerente e sistemática; Dom Deschamps exclui liminarmente todas
as “quimeras” que não são mais do que produtos dessa literatura e dessa cultura
que ele deseja erradicar da sua sociedade sem classes de simples camponeses;
Saint-Simon e Fourier mostram-se acérrimos adversários das outras utopias
classificadas como charlatanices ( devolvendo este a acusação que lhe fazem de
lunático); quanto a Marx e Engels são conhecidas as suas refutações dos
“esquemas utópicos”, embora Marx houvesse tido uma sincera admiração por
Saint-Simon, Owen e Weitling. No nosso século não se registou apenas a
anti-utopia ( e a distopia), ao contrário do que por vezes se lê : o traço
característico é até precisamente o predomínio da utopia ; o que sucedeu,
porém, é que esta utopia ( comunista, socialista) foi combatida e é, por isso,
que emerge a violenta denúncia de Georges Orwell; para os adversários do
“comunismo” a utopia realizada, ou em marcha, encerrava todos os perigos e a
utopia passou a ser sinónimo de “totalitarismo”. Curioso é verificar que A.
Huxley, cujo “ Admirável Mundo Novo” se dirige contra o behaviourismo ( doutrina comportamentalista que triunfava na
psicologia americana), imagina, ele próprio, uma admirável sociedade feliz em
perigo de extinção ( “ A Ilha”).
4.
O livro de Platão, A
República, é ainda uma obra de referência para diversos assuntos, desde o
que é a filosofia e a que se dedica o filósofo até aos modos como devemos ( ou,
pelo menos, podemos) imaginar uma sociedade governada pelo princípio da
Justiça. O modelo da dedução lógica tem sido sucessivamente percorrido até aos
nossos dias ( com este ou aquele apriorismo)
, onde o vemos aplicado a jogos e dispondo de amplas possibilidades nos
sistemas de informação. A ele soma-se, em Platão, a tese tão recorrente na
filosofia, segundo a qual o que importa é formular um princípio claro, rigoroso
e fundamental ( Descartes, Espinosa, Leibniz). O Princípio da Justiça, por
exemplo. Vemos isto recentemente adoptado nas obras de John Rawls ( Uma Teoria sobre a Justiça). Na verdade,
o pensador social que, em nossa opinião, melhor utilizou esta rica herança
platonista, foi Proudhon. Neste “o progresso da humanidade é pois
essencialmente um facto de ordem moral”, como escreveu o nosso Antero, segundo
a sua convicção e a de Proudhon, seu mestre principal. O mesmo que redigiu o
quarto dos manifestos socialistas , De la
capacité politique des classes ouvrières, sendo o primeiro o “Manifesto dos
Iguais” de Babeuf, o segundo o de Considérant, discípulo de Fourier, e o
terceiro o “Manifesto comunista” de Marx e Engels. Como é sabido, a doutrina de
Proudhon ( já formada em grande parte antes do “Manifesto comunista”) opôs-se
ao pensamento político de Marx, muito embora este haja nutrido pelo genial
tipógrafo autodidacta, mais velho dez anos, uma forte e especial admiração. Em
1846, cerca de seis meses antes de começar o escrito polémico contra Proudhon (
“Miséria da Filosofia”), ainda Marx convidava-o para uma “troca de ideias” pois
“quanto à França, nós todos acreditamos que não podemos encontrar aí um melhor
correspondente que vós” (1) e em 1844 passou com ele a discutirem muitos serões
( três meses depois, Proudhon escreve isto numa carta : “ Lorsque les contradictions de la communauté et de la démocratie, une
fois dévoilées, seront allées rejoindre les utopies de Saint-Simon et de
Fourier, le socialisme élévé à la hauteur d’une science, le socialisme, qui
n’est autre que l’Économie politique, s’emparera de la société et la lancera
vers ses destinées ultérieures avec une force irrésistible...Le socialisme n’a
pas encore conscience de lui-même; aujourd’hui il s’apelle communisme” (2).
5.
A grande novidade que existe entre os modelos à Platão,
deduzir a realidade a partir da essência ( ideia ou conceito), que nos remete
para a trave mestra das metafísicas ( que culmina em Hegel, apesar de todas as
modificações substanciais que este opera no método) e as utopias modernas ( que
se seguem à de Morus ), encontra-se, a nosso ver, em dois aspectos : a ideia de igualdade ( que em Platão não
é admitida para todos segundo a sua perspectiva de divisão do trabalho de
acordo com a “natureza” ou as castas) e o esforço do projecto, isto é atender às condições da sua aplicação, experimentação e prever os seus efeitos. Se
sobre o primeiro aspecto não rareiam os bons estudos ( dos investigadores da
ex-URSS, por exemplo), a segunda orientação nem sempre é evocada quando se
ataca a utopia social como se ela fosse fatalmente um mero projecto teórico
desprezando a acção. Este segundo aspecto não escapou à análise de Marx e
Engels, que não regateavam elogios ao filantrópico homem de acção, ao seu
talento de organizador, R. Owen, e viam em Proudhon, talvez por essa razão, um
perigo nocivo ao trabalho político com as massas operárias ( conhecemos a
grande influência dos proudhonianos na península ibérica).
6.
A diferença que
nos parece fundamental entre Marx e outras utopias socialistas ( caso de
Proudhon e Kropotkine) reside nisto: o socialismo constitui a etapa
preparatória que visa atingir o comunismo, sendo que nessa etapa as tarefas
decisivas são a tomada do poder ( pela Revolução) e a construção de um Estado
centralizado. Não é a ideia, o projecto, de comunidade, e comunas, que os
divide irremediavelmente, (neste sentido amplo não é o comunismo, se não
atribuirmos a esta noção o património exclusivo pelo ideário marxista), mas
talvez aquilo que Kropotkine declara nestas palavras : o desenvolvimento mais
completo da individualidade deve “ combinar-se com o mais elevado
desenvolvimento da associação voluntária sob todos os aspectos, em todos os
graus possíveis, por todos os fins imagináveis: associação sempre modificável,
transportando nela mesma os elementos da sua duração e revestindo as formas
que, a cada momento, respondem pelo melhor às aspirações múltiplas de
todos"”(3). "Utopicamente" dir-se-á, os projectos anarquistas (
que se dizem, por isso mesmo, "libertários") desejam instituir a
liberdade ( de cada um na igualdade de todos) desde o início do processo, sem
“constrangimentos do Estado centralizador”, enquanto que os propósitos de Marx
e Engels apontam sem “utopias” para a organização da classe operária e seus
aliados num Estado dirigido pela primeira , capaz de se defender e realizar as
reformas revolucionárias. Acusa-se Marx de, deste modo, adiar para um futuro
longínquo as metas que, em teoria pelo menos, exprimem um acordo de vários
movimentos revolucionários, entrando mesmo em contradição nos termos. Por
consequência, devolve-se a Marx a acusação que ele faz aos outros : uma mera
utopia. Evitemos, desde já, formular juízos de valor a favor ou contra, para
que assim seja possível reabrir-se um debate que nos parece oportuno, agora que
terminou a experiência nos países do
Leste, nos moldes em que a conhecemos. E reservamos para outra ocasião a
interrogação seguinte : na ex-URSS governou o socialismo utópico? Científico? ou
a acumulação e apropriação do Capital pelo estilo autoritário expedito e pela
vocação nacionalista de grande potência?
7.
O ponto de vista de Ernst Bloch é, julgamos, conhecido
( “O Princípio Esperança”). Este importante pensador alemão, que experimentou a
edificação de um regime socialista, legou-nos uma larga e profunda meditação sobre o fenómeno
cultural multifacetado ( psicológico, sociológico, filosófico) que radica nas
“imagens-desejo”. A Esperança é, dir-se-ia, um princípio vital e ontológico da
espécie social que somos. Tão resistente e latente, que “ a impostura é
obrigada ele própria, para se ser eficaz, a recorrer à esperança” (4). É da
natureza mesma do homem pronunciar-se somente a partir do futuro: “ a esperança
mentirosa é uma das maiores malfeitoras, uma das mais debilitantes que a
espécie humana conhece; a esperança concreta e autêntica é a sua benfeitora
mais séria” (5). Que significa, então, a esperança concreta? Significa orientar
a filosofia para o futuro, para aquilo que ainda não é ( coisa rara nos
filósofos até Hegel inclusive). A esperança com o seu correlato positivo: a
determinidade da existência não conduzida até ao seu termo, para além de toda res finita. (6). “ A filosofia há-de
possuir a consciência do amanhã, o parti
pris do futuro, o saber da esperança, ou ela não possuirá saber algum” (7).
“ Le thème fondamental de la philosophie
qui est et demeure en devenant, c’est le Foyer ( die Heimat) non encore denenu, le lieu de l’identité avec soi-même
et avec les choses ( Der Ort der
Identität mit sich selbst und den Dingen), non encore réussi et tel qu’il
prend forme, qu’il s’édifie dans la lutte dialectique-matérialiste du Nouveau
et de l’Ancien” (8). No termo de páginas inolvidáveis sobre o pensamento
dialéctico e práxico de Marx, Ernst Bloch escreve : ” c’est de lui que date l’unité de l’espérance et de la connaissance du
processus, bref, le réalisme (...) le rêve consistant se rallie activement à ce
qui est historiquement arrivé à échéance et dont l’avènement est plus ou moins
entravé (...) le monde entier est parcouru par la grande idée d’une chose et
par l’intention tendue vers le non-encore-advenu : l’utopie concrète est la
théorie-praxis la plus importante de cette tendance” (9).
8.
O filósofo francês, Michel Vadée, numa obra excelente
obra ( “ Marx, Penseur du Possible “) termina-a com esta citação de Bloch :
“ Le levier dans l’histoire humaine, c’est celui qui la produit – l’homme
qui travaille, qui enfin n’est plus extériorisé, qui n’est plus aliéné, ni
reifié, ni asservi au profit de ceux qui l’exploitent. Marx est le maître
réalisé de cette abolition du prolétariat, de cette médiation possible, et en
train de se réaliser, des hommes avec eux-mêmes et avec leur bonheur
moral.(...) Marx est le maître essentiel de cette médiation qui nous rapproche
incessamment du foyer de la production de l’ensemble de l’événement du monde (
Weltgeschehen), de ce que Engels appelle la métamorphose de la prétendue chose
en soi en chose pour nous dans la mesure d’une humanisation possible de la nature.
Un peuple libre, sur un fondement libre, tel est, saisi ainsi de façon
paradoxale, le symbole final de la réalisation du réalisant, c’est-à-dire du
contenu-limite le plus radical dans le possible objectivement réel en général.”
(10)
9.
Seria preciso considerar a Utopia como uma forma de
consciência social, uma manifestação histórica e social ( não apenas pessoal)
concreta da Negação do homem daquilo que o aliena, oprime e revolta. Nas
utopias exprimem-se as ideias e as aspirações de vastas camadas sociais. Não
somente “sentimentos”, mas ideias e projectos; os utopistas, de uma maneira
geral, souberam acompanhar o desenvolvimento das ciências e valorizar a Razão (
F. Bacon, Mably, Saint-Simon, Owen, Comte, Cabet...). E a sua heterogeneidade é
tão grande que a utopia de Étienne Cabet ou de Bellamy não se confunde com a de
Weitling, a de W. Morris com de Bellamy, a de Wells ( ou de J. Vernes) com a de
Samuel Butler, a de Kropotkine com a de Proudhon, a de Owen com Fourier. A
persistência da utopia, como fenómeno difuso e latente ou como texto filosófico
ou de ficção-científica, testemunha a sua dimensão humana universal, latejando
nos mitos às vezes, brotando, noutras, das margens da ciência . A fórmula
utilizada por Marx na “Crítica do
Programa de Gotha” que enuncia os princípios da sociedade comunista (
legados pelos utopistas), as teses de Lénine em “ O Estado e a Revolução” ( que re-inscreve como horizonte no ideário
marxista-leninista as teses sobre o desaparecimento do Estado, comum a muitos
utopistas; obra que se deve ler em articulação com as “ Teses de Abril”),
figuram como textos emblemáticos de que o sonho mobilizador pôde marcar
profundamente o nosso século. Não vejo como possa ser defensável a atitude
contumaz de desprezar as utopias em nome de uma doutrina “ científica”. Onde
está o “científico” : na Economia Política, na Sociologia, numa ontologia
materialista? Na práxis política? Como pode opor-se o “realismo dos meios” à
“utopia dos fins”? Não se ignore aquilo que mobiliza a massa humana, nem se
despreze o papel que a subjectividade desempenha na transformação dos acasos e
das possibilidades em necessidade. A essência dos fins devia encontrar-se
também na opção por esta ou aquela possibilidade concreta. O que nos une encontra-se nos fins, o que nos
separa encontra-se nos meios. Em nome de quê decidimos este e não aquele meio
ou etapa? O que significa ser-se comunista: possuírem-se princípios que
contêm as finalidades – a sociedade comunista – ou fixar-se nesta ou naquela
etapa ( que é ela própria uma resposta, melhor ou pior adequada, à correlação
de forças internas e internacionais) e congelarem-se as metas? Pior ainda :
bloquear-se a autonomia colectiva e individual, que é o bem supremo do
socialismo comunista?
Cada época,
cada tempo, produziu as suas utopias ( emergindo de tradições religiosas,
míticas, de leituras diversas dos Evangelhos ou das Ciências, comprometidas com
as lutas sociais e políticas dos respectivos países), a sua epistéme, o
seu paradigma. A sua filosofia e a sua mentalidade. Não podemos trazer incólume
para o nosso tempo as utopias de Rousseau, Morelly ou Deschamps, próprias da
crise operada na França pela transição do feudalismo para o capitalismo
contemporâneo. Na sua especificidade, outro tanto não devemos fazer com algumas
determinações epocais da utopia marxiana ( o projecto da “ ditadura do
proletariado”, por exemplo, exige uma leitura histórica, simultâneamente de
apropriação e de distanciação ). As utopias também aprendem com a experiência.
10.
A última consideração é sobre o 25 de Abril de 1974. É
escassa, é certo, mas é esta data que me (nos) inspira Por causa dela merece
bem a pena investigarmos quais as utopias que me (nos) inspiraram a oposição
anti-fascista, aquelas que negámos e até combatemos, aquelas que perfilhámos, o
pathos da Esperança, da acção que
devia ser feita, que tinha de ser feita. E aquelas outras, ou as mesmas, que
empolgaram grupos e classes sociais, jovens e menos jovens, proletários do
campo ou da cidade, trabalhadores intelectuais, homens e mulheres das
burguesias. O estudo documentado das suas linguagens e dos seus comportamentos
( textos teóricos, propaganda, manifestações artísticas, etc.) daria, dará, um
volumoso volume. As linhas que dividiram, irremediavelmente, a esquerda
revolucionária, as linhas que separaram esta daqueles que parafraseavam o
maoísmo e pareciam confundir-se com o anarquismo na sua acção, mas que longe,
ou contra, o valioso legado histórico e utopista deste, combatiam pelos interesses da contra-revolução. As linhas que
separaram ( e separam) a esquerda igualitarista ( que busca a expressão
libertária da igualdade social ) daquela outra que elimina a equação mais
dramática de todas as equações com a fórmula “ direito burguês + solidariedade
social ”. Em cada momento, em cada acto concreto, se afere o valor das nossas
utopias. Sabendo-se que, em cada momento, em cada acto, espreita a ideologia
que se camufla em “cultura de massas”, em “espectáculo e expectativas” ,( e a
“racionalização” psicanalítica) , pela qual a Realpolitik se auto-justifica. E a partir da qual lançam um olhar
de condescendência pelos coitados
“sonhadores” órfãos e ressentidos...
Se a História da Humanidade toda
foi abalada pela utopia concreta da Revolução de Outubro, então a Revolução
Portuguesa abalou com certeza o pessimismo dos que já não tinham utopias.
Aquilo que as utopias, desde
Platão, tratam ( e desafiam a nossa imaginação racional) é fundamentalmente o
problema do Poder, ou seja, do Governo Justo. A Ideia de Justiça ( social) é o núcleo duro das construções
utópicas, umas mais concretas do que outras. Não morreram por simples decreto
de cientistas ou dos ideólogos. Seria estulto afirmarmos : “ A Utopia morreu!
“, parafraseando Nietzche, “ Eis-nos condenados ao niilismo!”. O que tem de
pior a Filosofia contemporânea não é a
meditação sobre a morte, é condenar a vida às possibilidades abstractas de um
nada que carece de sentido.
Foi a Revolução Portuguesa uma
utopia no quadro apertado da “geo-política” de então? Foi a Reforma Agrária uma
utopia face a um país económica e politicamente completamente dividido? É uma
utopia lutar-se pela ideia de um Portugal sem oligopólios, numa Europa com mais
justiça social, travando o apetite imperialista ( que parece hoje omnipotente)
dos E. U. ?
Quando a experiência está
consumada é sempre mais fácil explicá-la. Neste sentido a Filosofia ( ou mesmo
as ciências exactas ), é sempre um saber do presente, como queria Hegel. O
Possível contido na Essência da Necessidade, resulta em grande parte da nossa
ignorância de todas as determinações do Todo, como nos ensinou Espinosa, tanto
o livre-arbítrio como a Providência. Recolhermo-nos comodamente nesta, ou
lançarmo-nos cegamente no voluntarismo, creio ter sido este o dilema extremo de
que nos advertiu Marx. A mobilização
das forças de que dispomos nesta ou naquela direcção, com vista a
aproximarmo-nos de um governo cada vez mais justo, se há-de resultar de uma
análise concreta das condições concretas, não resulta menos de uma ousada
intuição. Transformar um resultado não totalmente previsto naqueles princípios
que as massas populares querem puxar, por sua vez, até ao seu termo, eis a mais
bela lição do 25 de Abril.
J. A . Nozes
Pires
NOTAS :
(1)
Martin Buber, Utopie et Socialisme, p. 33, Paris,
Aubier Montaigne, 1997.
(2)
(2) idem, p. 51.
(3)
(3) idem, p. 34.
(4)
(E. Bloch, Le Principe Espérance, T. I, p. 11.
(5)
Idem, p. 12.
(6)
Idem,p. 13.
(7)
Idem, p. 14.
(8)
Idem, p. 14.
(9)
Idem, p. 17.
(10) Idem,
pp. 214-215.
(11) Michel Vadée, Marx Penseur du Possible, p.
500, Meridiens Klincksieck, 1992.
Bibliografia Principal :
Marx-Engels, Obras Escolhidas, Sobre Proudhon, As pretensas cisões na
Internacional, Da Autoridade, Extracto dos comentários ao livro de Bakúnine,
Crítica do Programa de Gotha, Do Socialismo utópico ao socialismo científico,
Lisboa, Ed. Avante!, 1985.
Gian Mario Bravo, Les socialistes avant Marx, Maspero, 3
vol., 1970.
V. Volguine, Essais sur l’histoire des idées socialistes de l’antiquité à la fin du
xviii siècle, Ed. du Progrès, Moscou, 1981.
Jean Servier, Histoire de l’utopie, Gallimard, 1967.
F. E. Manuel e F. P. Manuel, Utopian thought in the western world,
The Belknap Press of Harvard University Press, 1979.
B Baczko, Les imaginaires sociaux, Payot, Paris, 1984.
Curriculum: José Augusto Nozes Pires, professor do
ensino secundário, mestre em Filosofia e doutorando pela U. Clássica de Lisboa.
Conferências e artigos sobre Utopia.
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