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quarta-feira, 4 de junho de 2014

Pelo Socialismo
Questões político-ideológicas com atualidade
http://www.pelosocialismo.net
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Publicado em 2014/03/28, em: http://latourdebabelworldpress.com/2014/03/28/la-crise-ukrainienneaccelere-
la-recomposition-du-monde/
Tradução do francês de TAM
Colocado em linha em: 2014/05/26
A crise ucraniana acelera a
recomposição do mundo
Pierre Charasse1*
A crise ucraniana pôs em evidência a verdadeira dimensão da manipulação das
opiniões públicas ocidentais pelos grandes meios de comunicação social, as cadeias
de TV como a CNN, Foxnews, Euronews e tantos outros, e também pela imprensa
escrita alimentada pelas agências de notícias ocidentais. O modo como o público
ocidental está desinformado é impressionante e, contudo, é fácil ter acesso a uma
massa de informações de todos os quadrantes. É muito preocupante ver como
numerosos cidadãos do mundo se deixam arrastar por uma russofobia jamais vista,
mesmo nos piores momentos da guerra fria. A imagem que nos transmite o poderoso
aparelho mediático ocidental, e que penetra no inconsciente coletivo, é que os russos
são «bárbaros atrasados» em comparação com o mundo ocidental «civilizado». O
discurso muito importante que Vladimir Putin pronunciou em 18 de março, na
véspera do referendo na Crimeia, foi literalmente boicotado pelos média ocidentais,
enquanto dedicavam largos espaços às reações ocidentais, todas negativas,
naturalmente. Contudo, Putin explicou na sua intervenção que a crise na Ucrânia não
tinha sido desencadeada pela Rússia e apresentou com muita racionalidade a posição
russa e os interesses estratégicos legítimos do seu país na era do pós-conflito
ideológico.
Humilhada pelo tratamento que lhe foi reservado pelo Ocidente desde 1989, a Rússia
despertou com Putin e começou a reatar uma política de grande potência, ao mesmo
tempo que procurava reconstruir as linhas de força históricas tradicionais da Rússia
czarista depois da União Soviética. A geografia comanda muitas vezes a estratégia.
Depois de ter perdido uma grande parte dos seus «territórios históricos», segundo a
formulação de Putin e da sua população russa e não russa, a Rússia estabeleceu como
grande projeto nacional e patriótico a recuperação do seu estatuto de superpotência,
de ator «global», ao mesmo tempo que assegurava, em primeiro lugar, a segurança
1 Publicado por Pierre Charasse em: Afeganistão, Brasil, China, Estados Unidos, França, Geopolítica,
México, Organização do Mundo, OTAN, Terrorismo, União Europeia.
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das suas fronteiras terrestres e marítimas. É isso precisamente o que o Ocidente lhe
quer vedar, na sua visão unipolar do mundo. Mas, como bom jogador de xadrez,
Putin tem muitos pontos de avanço, graças a um conhecimento profundo da história,
da realidade do mundo, das aspirações de uma grande parte das populações dos
territórios anteriormente controlados pela União Soviética. Conhece na perfeição a
União Europeia e as suas divisões, as suas fraquezas, a capacidade militar real da
NATO e o estado das opiniões públicas ocidentais, pouco inclinadas a ver aumentar
os orçamentos militares num período de recessão económica. Ao contrário da
Comissão Europeia, cujo projeto coincide com o dos Estados Unidos para consolidar
um bloco político-económico-militar euro-atlântico, os cidadãos europeus, na sua
maioria, já não querem o alargamento da UE a leste, nem com a Ucrânia, nem com a
Geórgia, nem com nenhum outro país da ex-União Soviética. Com o seu gesticular e
as suas ameaças de sanções a UE, servilmente alinhada com Washington, mostra de
facto que é impotente para «punir» seriamente a Rússia. O seu peso real não está à
altura das suas ambições sempre proclamadas de moldar o mundo à sua imagem. O
governo russo, muito reativo e malicioso, aplica «respostas graduais», tornando
ridículas as medidas punitivas ocidentais. Putin, arrogante, dá-se ao luxo de anunciar
que vai abrir uma conta no Banco Rossya de Nova York para depositar o seu salário!
Ainda não se referiu à limitação ao fornecimento de gás à Ucrânia e à Europa
ocidental, mas toda a gente sabe que ele tem esta carta na manga, o que obriga a
Europa a pensar numa reorganização completa do seu aprovisionamento de energia,
o que levará anos a concretizar.
Os erros e as divisões dos ocidentais colocam a Rússia numa posição de força. Putin
goza de uma popularidade excecional no seu país e nas comunidades russas dos
países vizinhos, e é seguro e certo que os seus serviços de informações penetraram em
profundidade nos países anteriormente controlados pela URSS e fornecem-lhe
informações em primeira mão sobre as relações de forças internas. O seu aparelho
diplomático dá-lhe sólidos argumentos para retirar ao ocidente o monopólio da
interpretação do direito internacional, em particular sobre a espinhosa questão da
autodeterminação dos povos. Como era de esperar, Putin não se coibiu de citar o
precedente do Kosovo para atacar a linguagem dúplice do Ocidente, as suas
incoerências e o papel desestabilizador que desempenhou nos Balcãs.
Enquanto a propaganda mediática ocidental alcançava o seu pico depois do referendo
de 16 de março na Crimeia, as vociferações ocidentais baixaram subitamente de tom e
o G7, aquando da sua cimeira em Haia à margem da conferência sobre segurança
nuclear, deixou de excluir a Rússia do G8 como tinha anunciado em alta voz alguns
dias antes, anunciando simplesmente «que não participaria na cimeira de Sotchi».
Isto deu-lhe a possibilidade de reativar a todo o momento este forum privilegiado de
diálogo com a Rússia, criado em 1994 a seu pedido expresso. Primeiro recuo do G7.
Obama, por sua vez, apressou-se a anunciar que não faria nenhuma intervenção
militar da NATO para ajudar a Ucrânia, mas apenas uma promessa de cooperação
para reconstruir o potencial militar da Ucrânia, composto em grande parte por
material soviético obsoleto. Segundo recuo. Serão necessários muitos anos para pôr
de pé um exército ucraniano digno desse nome e surge a pergunta legítima de quem
vai pagar a situação catastrófica das finanças do país. Além disso, não se sabe já
exatamente qual o estado das forças armadas ucranianas depois de Moscovo ter
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convidado, ao que parece com algum sucesso, os militares ucranianos herdeiros do
Exército Vermelho a juntar-se ao exército russo, respeitando as suas patentes. A
armada ucraniana já passou totalmente para o controlo russo. Enfim, outro recuo
espetacular dos Estados Unidos: haveria conversações secretas muito avançadas
entre Moscovo e Washington para fazer adotar uma nova constituição para a Ucrânia,
instalar em Kiev, por altura das eleições de 25 de maio, um governo de coligação de
que os extremistas neonazis seriam excluídos e, sobretudo, para impor um estatuto
de neutralidade à Ucrânia, a sua «finlandização» (recomendada por Henry Kissinger
e Zbigniew Brzezinsky), o que impediria a sua entrada para a NATO, mas permitiria
acordos económicos tanto com a UE como com a União aduaneira euroasiática
(Rússia, Bielorússia, Kazaquistão). Se se concluir um tal acordo, a UE será posta
perante um facto consumado e terá de se resignar a pagar a fatura do tête-à-tête
russo-americano. Com tais garantias, Moscovo poderá considerar satisfeitas as suas
exigências de segurança, terá retomado o pé na sua antiga zona de influência com a
concordância de Washington e poderá abster-se de fomentar o separatismo de outras
províncias ucranianas ou da Transnístria (província moldava povoada por russos),
podendo reafirmar muito perentoriamente o seu respeito pelas fronteiras europeias.
O Kremlin oferecerá ao mesmo tempo uma saída honrosa a Obama. Um golpe de
mestre para Putin.
Consequências geopolíticas da crise ucraniana
O G7 não previu que, tomando medidas para isolar a Rússia, era a si mesmo que
aplicava um «castigo sadomasoquista», de acordo com a fórmula de Hubert Védrine,
antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, e que precipitava um processo bastante
avançado de profunda recomposição do mundo em benefício de um grupo não
ocidental dirigido pela China e a Rússia, reunidas no seio dos BRICS. Em reação ao
comunicado do G7 de 24 de março, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos
BRICS deram conhecimento imediato da sua rejeição de quaisquer medidas visando
isolar a Rússia e aproveitaram para denunciar as práticas de espionagem americanas
dirigidas contra os seus dirigentes; e, para darem ainda um bónus, exigiram aos
Estados Unidos que ratificassem a nova repartição dos direitos de voto no FMI e no
Banco Mundial, como primeiro passo para uma «ordem mundial mais equitativa». O
G7 não esperava uma réplica tão virulenta e rápida dos BRICS. Este episódio pode
fazer pensar que o G20, de que o G7 e os BRICS são os dois principais pilares, poderia
atravessar uma crise séria antes da sua próxima cimeira em Brisbane (Austrália), em
15 e 16 de novembro, sobretudo se o G7 persistir em querer marginalizar e sancionar
a Rússia. É cada vez mais certo que haverá uma maioria no seio do G20 para
condenar as sanções à Rússia, o que de facto conduzirá ao isolamento do G7. No seu
comunicado, os ministros dos BRICS consideraram que decidir quem é membro do
grupo e qual é a sua vocação pertence a todos os seus membros «em pé de
igualdade» e que nenhum dos seus membros «pode unilateralmente determinar a
sua natureza e o seu caráter». Os ministros apelam à resolução da crise atual no
quadro das Nações Unidas «com calma, largueza de vistas, evitando linguagem
hostil, sanções e contrassanções». Uma afronta para o G7 e a UE! O G7, que se
colocou por si mesmo num impasse, foi prevenido de que deveria fazer importantes
concessões se quisesse continuar a exercer uma certa influência no seio do G20. Além
disso, dois acontecimentos importantes anunciam-se para as próximas semanas.
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Por um lado, Vladimir Putin deslocar-se-á em visita oficial à China, em maio. Os dois
gigantes estão prestes a assinar um acordo energético de envergadura, que afetará
visivelmente o mercado mundial de energia, quer no plano estratégico quer no plano
financeiro. As transações não se farão mais em dólares, mas nas moedas nacionais
dos dois países. Voltando-se para a China, a Rússia não terá nenhum problema para
escoar a sua produção de gás, no caso de a Europa ocidental decidir mudar de
fornecedor. E, no mesmo movimento de aproximação, a China e a Rússia poderiam
assinar uma parceria industrial para o fabrico do caça Sukhoï, facto altamente
simbólico.
Por outro lado, aquando da cimeira dos BRICS, no Brasil, no próximo mês de julho, o
Banco de Desenvolvimento deste grupo, cuja criação foi anunciada em 2012, poderá
tomar forma e oferecer uma alternativa aos financiamentos do FMI e do Banco
Mundial, sempre reticentes em modificar as suas regras de funcionamento, para dar
mais peso aos países emergentes e às suas moedas ao lado do dólar.
Finalmente, há um aspeto importante desta relação entre a Rússia e a NATO pouco
comentado na comunicação social, mas muito revelador da situação de dependência
em que se encontra o Ocidente no momento em que se procede à retirada das suas
tropas do Afeganistão. Desde 2002 que a Rússia aceitou cooperar com os países
ocidentais, para facilitar a logística das tropas no teatro afegão. A pedido da NATO,
Moscovo autorizou o trânsito de material não letal destinado à ISAF (International
Security Assistance Force [Força Internacional de Assistência de Segurança (NT)])
por via aérea ou terrestre, entre Douchambé (Tadjiquistão), o Uzbequistão e a
Estónia, através de uma plataforma multimodal em Ulianovk, na Sibéria. Trata-se,
nada mais nada menos, de encaminhar toda a logística para milhares de homens que
operam no Afeganistão, entre outras coisas, toneladas de cerveja, de vinho, de
queijos, de hambúrgueres, alfaces frescas, tudo o que é transportado por aviões civis
russos, uma vez que as forças ocidentais não dispõem de meios aéreos suficientes
para suportar uma manobra militar desta envergadura. O acordo Rússia-NATO, de
outubro de 2012, alargou esta cooperação à instalação de uma base aérea russa no
Afeganistão, dotada de 40 helicópteros, onde os agentes afegãos são formados na luta
antidroga à qual os ocidentais renunciaram. A Rússia sempre se recusou a autorizar o
trânsito pelo seu território de material pesado, o que coloca um sério problema à
NATO, na altura da retirada das suas tropas. Com efeito, estas não têm autorização
de utilizar a via terrestre Kabul-Karachi por causa dos ataques dos talibãs de que as
colunas são vítimas. Inviabilizada a via do norte (a Rússia), os materiais pesados são
transportados por avião de Kabul para os Emirados Árabes Unidos, depois
embarcados através de portos europeus, o que multiplica por quatro o preço do
transporte. Para o governo russo, a intervenção da NATO no Afeganistão foi um
fracasso, mas a sua retirada «precipitada», antes do final de 2014, vai fazer aumentar
o caos e afetar a segurança da Rússia e arrisca-se a provocar um recrudescimento do
terrorismo.
A Rússia também tem importantes acordos com o Ocidente no domínio do
armamento. O mais importante é, sem dúvida, o que assinou com a França para o
fabrico nos arsenais franceses de dois porta-helicópteros, por um montante de 1,3 mil
milhões de euros. Se o contrato for anulado no quadro das sanções, a França terá de
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devolver os montantes já pagos mais as multas contratuais, e de suprimir milhares de
postos de trabalho. A mais grave será sem dúvida a perda de confiança do mercado de
armamento na indústria francesa, como sublinhou o ministro russo da defesa.
Também é preciso não esquecer que, sem a intervenção da Rússia, os países
ocidentais nunca poderiam ter chegado a um acordo com o Irão sobre a não
proliferação nuclear, nem com a Síria sobre o desarmamento químico.
Estes são os factos que passam em silêncio na comunicação social ocidental. A
verdade é que por causa da sua arrogância, do seu desconhecimento da história, das
suas faltas de habilidade, o bloco ocidental precipita a destruição sistémica da ordem
mundial unipolar e oferece de bandeja à Rússia e à China, apoiada pela Índia, o
Brasil, a África do Sul e também por outros países, uma «janela de oportunidade»
única para reforçar a unidade de um bloco alternativo. A evolução estava em marcha,
mas lenta e gradualmente (ninguém quer dar um pontapé no vespeiro e desestabilizar
bruscamente o sistema mundial), mas com um só golpe tudo se acelera e a
interdependência altera as regras do jogo.
No que diz respeito ao G20 de Brisbane, será interessante ver como se posiciona o
México, depois das cimeiras do G7 em Bruxelas, em junho, e dos BRICS no Brasil, em
julho. A situação é muito fluida e vai evoluir rapidamente, o que vai exigir uma
grande destreza diplomática. Se o G7 persistir na sua intenção de marginalizar ou
excluir a Rússia, o G20 poderá desintegrar-se. O México, preso nas malhas do TLCAN
[Tratado de livre comércio da América do Norte (NT)]2 e do futuro TPP3, terá de
escolher entre soçobrar com o Titanic ocidental ou adotar uma linha autónoma mais
conforme aos seus interesses de potência regional com vocação mundial,
aproximando-se dos BRICS.
* Pierre Charasse - Nascido em 1948, diplomata de carreira entre 1972 e 2009. Antigo embaixador,
ocupou diferentes postos nas embaixadas da França na União Soviética, na Guatemala, em Cuba
(1973-1983), no México (1989-1993). Conselheiro técnico no gabinete de Claude Cheysson, Ministro
dos Negócios Estrangeiros e Pierre Joxe, Ministro do Interior (1984-86). Cônsul Geral em Nápoles
(1986-1989) e Barcelona (1996-2000). Embaixador no Uruguai (1993-1996), no Paquistão (2003-
2005) e no Peru (2005-2008). Embaixador itinerante encarregado da cooperação internacional
contra a criminalidade organizada e a corrupção (2000-2003). Chefe da delegação francesa à
Conferência das Nações Unidas sobre o comércio ilícito de armas ligeiras (2000-2001), ao X
Congresso das Nações Unidas para a prevenção do crime e a justiça penal (2001), à Comissão dos
Estupefacientes. Secretário Geral da Conferência ministerial «As rotas da droga da Ásia central
para a Europa» (2003). Observador do governo francês nos 1º e 2º «Forum Social Mundial» (Porto
Alegre). Membro do Conselho dos Negócios Estrangeiros (2008-2009). Realizou numerosas missões
oficiais na Europa, Ásia, África e América Latina. Atividades privadas: membro do Conselho de
administração da Casa da América Latina (Paris), presidente honorário do Observatório Geopolítico
das criminalidades (Paris). Membro do «Centro Tepoztlan Victor Urquidi» (grupo de estudos sobre
o México e o mundo).
2 O TLCAN é um tratado entrado em vigor em 1 de janeiro de 1994, que cria uma zona de livre comércio
entre os Estados Unidos, o Canadá e o México. http://fr.wikipedia.org/wiki/TLCAN. [NT].
3 TPP, Trans-Pacific Partnership [Parceria Trans-Pacífico] é um tratado multilateral de livre troca que
visa integrar as economias da região Ásia-Pacífico. O primeiro tratado, assinado a 3 de junho de
2005 pelo Brunei, Chile, Nova Zelândia e Singapura, entrou em vigor a 28 de maio
de2006.http://fr.wikipedia.org/wiki/Trans-Pacific_Strategic_Economic_Partnership. – [NT]

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