Por Maria Lygia Quartim de Moraes.
Este artigo integra a revista semestral Margem Esquerda – ensaios marxistas, número 2, é publicado aqui, no Blog da Boitempo, no contexto do especial “Dia da mulher, dia da luta feminista“. Clique aqui para ler o artigo na diagramação da publicação impressa. Além de reflexões diárias no Blog, a Boitempo disponibliza ao longo da semana de 2.3.2015–9.3.2015 todos seus títulos escritos por mulheres e todos seus livros de temática feminista a preços especiais de desconto. Saiba mais aqui.
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En todo caso, las causas de la deserción de los intelectuales del campo de la crítica y la revolución (…) son muchas, y no pueden ser exploradas aquí. Baste con decir que la formidable hegemonia ideologico-política del neoliberalismo el afianzamiento de la “sensibilidade posmoderna” se cuenta entre los principales factores, los cuales se combinaron para dar ímpetus a un talante “antiteórico” fuertemente instalado en las postrimerías del nuestro siglo. Todo esto tuvo el efecto de potenciar extraordinariamente la masiva capitulación ideológica de la gran mayoría de los intelectuales, um fenómeno que adquirió singular densidad en América Latina.1
Como já observaram diversos marxistas, são muitas as causas que subjazem à deserção, por parte da intelectualidade, do exercício da crítica e de uma transformação radical da sociedade. Parte desse abandono se deve à adesão maciça aos postulados do pós-modernismo, concomitantes ao avanço do ideário neoliberal, do qual seja talvez a manifestação teórica. Ao mesmo tempo, uma parcela da intelectualidade que permaneceu ligada ao marxismo associa, equivocadamente, os novos movimentos sociais aos postulados pós-modernos, igualando-os assim a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, abdicaram da revolução.
A crítica ao pós-modernismo é tão mais relevante uma vez que o projeto iluminista, matriz do modernismo e de suas palavras de ordem liberdade, igualdade e fraternidade, objeto de rejeição do pós-modernismo, é uma promessa ainda não cumprida. E, ao mesmo tempo, as premissas pós-modernistas, que se pretendem tão avançadas e despidas de ilusões, não deixam de ser uma operação ideológica de desqualificação das lutas sociais e dos projetos de uma nova sociedade. Negam as possibilidades da autonomia dos sujeitos e reduzem o destino humano ao aprisionamento, seja nas estruturas da linguagem, seja nas micro e macroestruturas da sociedade. A consequência política das teses pós-modernistas é um misto de conformismo e acomodamento ao status quo.
É exatamente por seu pretenso apolitismo, que se traduz numa absoluta falta de entusiasmo pelos direitos universais, que as teorias pós-modernas não apresentam quaisquer afinidades com as lutas e os temas das opressões sociais. Por isso, não dá para aceitar que intelectuais marxistas coloquem no mesmo saco pós-modernismos e movimentos sociais, agrupando-os sob as mesmas matrizes teóricas da desconstrução e da fragmentação. Ao considerar a ambos movimentos “identitários”, tal argumento enfatiza os limites dos movimentos sociais como reivindicações particularistas e, em oposição, restringe a compreensão do verdadeiro alcance do pós-modernismo.
Um olhar mais atento à história das lutas de classe contemporâneas comprova, ao contrário, que uma parcela expressiva dos movimentos sociais surgidos nas décadas de 1960 e 1970 tinha (e continua tendo) uma perspectiva anticapitalista ou, mais genericamente, como propõe Wallerstein, uma perspectiva anti-sistêmica. Assim, algumas observações merecem ser feitas em defesa do feminismo e do movimento de mulheres em geral, muitas vezes designado como “movimento identitário”, o que certamente deixaria Simone de Beauvoir estupefata.
Em primeiro lugar, o feminismo, um dos mais expressivos movimentos sociais da segunda metade do século passado, variou enormemente segundo o país e as circunstâncias históricas. Desde seus primórdios, esteve dividido em ao menos duas grandes tendências: a liberal e a socialista. Ambas afirmavam a opressão da mulher e a necessidade de sua superação. Mas, enquanto o feminismo liberal não tinha uma visão anticapitalista, o feminismo socialista afirmava a importância da dupla dimensão: classe e gênero.
Desconhecer as condições históricas em que tais movimentos surgiram, bem como as circunstâncias do maior ou menor sucesso que conheceram, é perder de vista o campo da luta de classes na vida cotidiana. Em outras palavras, a crítica de um certo marxismo aos “novos” movimentos sociais parte do pressuposto de que a superação do capitalismo é condição essencial para que a democracia possa ser governo ou poder do povo – com o que estou de acordo –, mas nega a dimensão anticapitalista dos movimentos sociais. É como se existisse um padrão universal de movimento, com registro e carteira assinada, respeitando cânones estabelecidos por algum supremo tribunal dos movimentos verdadeiramente socialistas. Não há ideia de processo, de idas e vindas, de acertos e erros, de lutas entre tendências, enfim, de todos os complexos mecanismos que põem em marcha as associações humanas em torno de projetos de maior ou menor alcance. O movimento socialista pode não nascer de um manifesto político, mas crescer na radicalização das lutas até chegar a uma plataforma revolucionária, declaradamente anticapitalista.
Ellen Meiksins Wood, pós-modernismo e “movimentos identitários”
Entre os muitos críticos dos movimentos sociais contemporâneos, escolhi a obra da marxista Ellen Meiksins Wood2, não somente por sua inegável importância, mas também por dar continuidade à tradição das intelectuais teóricas do marxismo, iniciada com Rosa de Luxemburgo. Ambas destacaram-se pelo seu rigor teórico, com a diferença de que Rosa de Luxemburgo, também militante do movimento socialista, escapou do teoricismo e dos “tipos ideais” de socialismo presentes na obra de Ellen M. Wood.
Na sua crítica contundente ao pós-modernismo, Ellen Wood parte das temáticas prioritárias do pós-modernismo, destacando seu interesse por linguagem, cultura e “discurso ”3. Segundo a autora, parte dos pós-modernistas considera que os seres humanos são constituídos pela linguagem; outros que as regras que constituem nossa vida social são governadas pela estrutura da linguagem. Nessa ótica, a sociedade não é simplesmente semelhante à língua. Ela é língua; e uma vez que todos nós somos dela cativos, nenhum padrão externo de verdade, nenhum referente externo para o conhecimento existe, para nós, fora dos “discursos” específicos em que vivemos4. Para Wood, o fio condutor “que perpassa todos esses princípios pós-modernos é a ênfase na natureza fragmentada do conhecimento humano”5. Quais as consequências teóricas e políticas de tais pressupostos? Segundo Ellen, “um ceticismo epistemológico e um derrotismo político profundos”.
As implicações políticas de tudo isso são bem claras: o self humano é tão fluido e fragmentado (o “sujeito descentrado”) e nossas identidades, tão variáveis, incertas e frágeis que não pode haver base para solidariedade e ação coletiva fundamentadas em uma “identidade social comum (uma classe), em uma experiência comum, em interesses comuns”.6
A crítica que a autora faz do pós-modernismo, com a qual tenho a maior concordância, não é acompanhada por igual rigor no que concerne às lutas sociais de nossos dias, pois estas envolvem um conglomerado de movimentos, dos quais fazem parte milhões dos chamados “excluídos” e marginalizados, opostos ao polo desenvolvido do capitalismo. São os milhões de sem-terra, sem-teto, sem escola, os milhões de desempregados que vegetam no setor de “serviços”, os milhões de imigrantes clandestinos, filhos do aumento indecente da desigualdade social. Implica esquecer a importância, na América Latina e na maior parte do mundo, dos componentes não puramente capitalistas das revoltas sociais que, contraditoriamente, se acirram com o próprio desenvolvimento capitalista, com o aumento da mais-valia relativa, isto é, com o aumento da produtividade do trabalho e o crescente desemprego.
Por outro lado, convém lembrar que aplicar ao feminismo a denominação de movimento “identitário”, uma constante nos trabalhos de Ellen Wood, implica fazer tábula rasa de toda uma tradição marxista e socialista do feminismo contemporâneo, de Clara Zetkin e Alexandra Kollontai a Juliet Mitchell e Sheila Robowtan.
Embora o capitalismo possa usar e faça uso ideológico e econômico da opressão de gênero, essa opressão não tem um status privilegiado na estrutura do capitalismo. Ele poderia sobreviver à erradicação de todas as opressões específicas das mulheres, na condição de mulheres – embora não pudesse, por definição, sobreviver à erradicação da exploração de classe. Isso não quer dizer que o capitalismo tenha passado a considerar a liberação da mulher…7
O primeiro argumento de Ellen é que o capitalismo, forma de extração puramente econômica da mais-valia, diferentemente dos demais modos históricos de apropriação dos frutos do trabalho, a rigor prescinde de outras formas de extorsão. A consequência desse raciocínio é que a autora ignora a variedade das formas de opressão. Afinal, se Marx nos dá o modelo abstrato do desenvolvimento capitalista, na dura realidade prática, o capital tira lucro como pode e quando pode.
Se os capitalistas puderem pagar menores salários para mulheres e negros, aproveitando-se do sexismo e do racismo, porque deixariam de fazê-lo? Se puderem diminuir os custos de reprodução da força de trabalho, aproveitando-se da dupla jornada das mulheres, por que investiriam em creches e equipamentos coletivos que minorem os trabalhos domésticos?
De fato, as mulheres constituem hoje parcela importante da força de trabalho explorada pelo capitalismo, que se aproveita do sexismo para aumentar a extração da mais-valia. Milhões de mulheres trabalhadoras, em várias partes do mundo, conhecem a dupla face da opressão de classe e gênero, na esfera privada e na pública. São os homens os suportes da dominação de gênero e também são os homens os grandes detentores das riquezas materiais. O capital, teoricamente, pode até prescindir do sexismo, mas, no cotidiano, as opressões de classe e de gênero se mesclam. Por isso, uma das mais fortes e permanentes bandeiras do feminismo é o fim da “dupla jornada” de trabalho8.
Arakcy Martins Rodrigues, nos anos 1970, escreveu o primeiro trabalho sobre a importância da categoria de gênero para a compreensão das práticas e representações que, na classe operária, diferenciam homens e mulheres. Hoje, inúmeros trabalhos como os de Helena Hirata, Liliana Segnini e Laís Abramo, entre outras estudiosas, comprovam as diferenças estruturais, mantidas em todo o mundo, entre as oportunidades de trabalho, salários e planos de carreira que discriminam as mulheres.
Na verdade, como mostra Marx no terceiro livro de O capital, quando analisa as classes sociais no campo e a divisão das riquezas, o capitalismo teoricamente também deveria acabar com a renda da terra para diminuir os custos dos “bens salários”, mas a “objetividade do modelo” não é igual à do capitalista em carne e osso, cujo maior pavor é tocar no sagrado direito da propriedade. É por isso que as classes dominantes estarão sempre unidas para defender intransigentemente a propriedade privada.
A esmagadora maioria da população é constituída por expropriados dos meios de produção, obrigados a vender sua força de trabalho no mercado. Diante da proletarização da sociedade e do aumento da produtividade do trabalho, acirra-se também a competição entre os diferentes segmentos da força de trabalho. Como comprovam os dados, o incremento da participação da mulher no mercado de trabalho tem pressionado os salários para baixo. Aos poucos, o contingente feminino vai ocupando postos antes reservados aos homens. O capitalismo cria inexoravelmente uma força de trabalho excedente e este é um dos melhores instrumentos de sujeição da mão-de-obra. Ao ignorar a especificidade do contingente feminino dentro da força de trabalho mundial, Ellen demonstra ter uma visão abstrata da “classe operária” e de sua dinâmica de transformação. O que significa, nessas condições, afirmar que o capitalismo pode resolver a questão de gênero, mas não a de classe, quando a esmagadora maioria das mulheres sofre de ambas as opressões?
No interior dos diferentes “movimentos identitários” existem divisões, tensões e lutas pela hegemonia. Os movimentos de mulheres não fogem à regra e, com isso, podem estar mais ou menos integrados ao sistema capitalista. Em alguns países, como o Brasil, ainda são predominantemente anticapitalistas. Meu argumento é que Ellen Wood tem uma visão economicista da política e, também, geograficamente autocentrada. Toma o feminismo liberal americano como se fosse “o” feminismo, ignorando a realidade europeia e, especialmente, a latino-americana.
O segundo aspecto, consequência do anterior, é subestimar a dimensão anti-sistêmica dos movimentos sociais. As críticas de Ellen revelam um profundo distanciamento das questões postuladas pelas lutas anti-sistêmicas contemporâneas. Ignoram que movimentos “identitários” possam ser radicalmente pela luta de classes e, em contrapartida, rechaçam também a noção da “experiência” como fundamental para a compreensão do crescimento dos movimentos sociais.
Pois as lutas sociais assumem formas distintas e têm diferentes fôlegos. Os partidos e sindicatos ainda são peças importantes, mas os movimentos sociais são canais fortes de intervenção no social e de pressão, não obstante a diversidade de suas demandas. Subestimando o papel dos movimentos “identitários”, Ellen perde de vista a luta de classes em sua dinâmica. Suas considerações desqualificam movimentos como o das Mães da Praça de Maio, iniciado com algumas mulheres obstinadas na busca de seus filhos e filhas sequestrados pela ditadura militar argentina, que é hoje internacionalmente conhecido e respeitado, extremamente ativo na vida política argentina, mantendo uma orientação declaradamente revolucionária e anticapitalista. A revisão da história “dos vencidos” na Argentina faz parte do movimento social contrário à política neoliberal. A conscientização se faz por várias facetas; ignorar qualquer uma delas é incorrer no risco de um dogmatismo estéril, porque distanciado das questões da atualidade em função de um “ideal” socialista.
As revoluções dos anos 1960 e os novos movimentos sociais: Immanuel Wallerstein versus Ellen M. Wood
Em artigo recente, Immanuel Wallerstein9, interrogando-se sobre a dimensão anti-sistêmica dos movimentos sociais atuais, comenta que cunhou a expressão “movimentos anti-sistêmicos” para caracterizar dois movimentos populares que, no período 1850/1970, competiam e se opunham em muitas dimensões mas, ao mesmo tempo, também compartilhavam de características comuns. Esses dois movimentos seriam os “movimentos sociais” (organizações sindicais e partidos políticos) e os “movimentos nacionais” (aqueles que viam no imperialismo e no colonialismo o inimigo principal, como no caso da Ásia). Ambos os movimentos diziam-se revolucionários e pretendiam mudar o sistema capitalista. Ambos constituíram partidos que foram por muito tempo perseguidos e, via de regra, colocaram na pauta a questão da tomada do poder, entendida como tomada do poder do Estado. Uma vez no poder, suas atitudes e projetos mudaram (não estaríamos vendo exatamente isso no governo Lula?). Quando mais permaneciam no poder, diz Wallerstein, mais postergavam o cumprimento de suas promessas.
Na medida em que os quadros dirigentes do partido tornavam-se os quadros dirigentes do poder, suas posições sociais transformavam-se, como também mudaram suas psicologias individuais. Em outras palavras, tendiam a se transformar numa casta com mais poder e mais riqueza do que o resto do povo, como se tornou regra nos países do bloco soviético10.
A dificuldade de construir sociedades mais democráticas foi, com certeza, o grande problema enfrentado por todas as revoluções socialistas, não obstante estabelecerem políticas que ampliaram o acesso à educação e à saúde, diminuindo também as desigualdades sociais. Wallerstein continua sua enumeração da sequência de movimentos anti-sistêmicos, fazendo referência a um segundo tipo, que constitui também o ponto de partida de nossa caracterização de movimento social dos anos 1960 e 1970. Diz ele:
Uma segunda e mais duradoura variedade de movimentos anti-sistêmicos foram os da New Left (Nova Esquerda) – os Verdes e outros movimentos ecológicos, os movimentos feministas, os movimentos de “minorias” raciais/ étnicas […]. As características comuns destes movimentos eram basicamente duas. Em primeiro lugar, rechaçavam os movimentos da Velha Esquerda – por sua estratégia em duas etapas, por suas hierarquias internas […]. E também suspeitavam dos estados […].11
A crítica ao imobilismo dos partidos comunistas oficiais tem um longo histórico no Brasil. Nos anos 1960, a falta de liberdade política nos países socialistas e outras degenerescências já eram rechaçadas por muitos jovens, homens e mulheres, que aderiram à luta armada, precisamente egressos dos partidos oficiais. Nos anos seguintes, a América Latina compartilharia da pesada herança do terrorismo de Estado, que se inicia no Brasil em 1964, irrompe brutalmente no Chile em 1973 e, em 1976, emerge também na Argentina, deixando um rastro de sangue e irreversíveis sequelas sociais. A longa permanência da tutela militar, o assassinato e o desaparecimento de oponentes políticos, a crise econômica internacional e as desastrosas políticas neoliberais foram processos comuns a essas nações, assim como a lenta (re)emergência da esquerda e dos movimentos sociais.
Não obstante a transição para a democracia ter se realizado, nestes três países, sob tutela militar, a presença ativa dos movimentos sociais criou novas alternativas políticas de reconstrução da esquerda latinoamericana. Nesse sentido, os movimentos liderados ou integrados majoritariamente por mulheres, quer na defesa dos direitos humanos, quer nas propostas feministas, constituíram um fato novo, cuja potencialidade ainda permanece viva nos dias de hoje.
Na verdade, o feminismo, um dos movimentos sociais mais importantes do século XX – como o reconhecem intelectuais marxistas, como Hobsbawm, Mészáros e o próprio Perry Anderson –, abrange um largo espectro de tendências. Foi objeto de inúmeros estudos, muitos dos quais reconhecem que o feminismo socialista ou anticapitalista é forte na Itália, na França e em muitos países da América Latina. As considerações de Ellen revelam, assim, um desconhecimento da realidade do marxismo e das lutas sociais na “periferia” do capitalismo. Ademais de desconhecer obras mestras do feminismo marxista, como Mulheres, a revolução mais longa, de Juliet Mitchell.
Ninguém nasce mulher. Torna-se mulher
A consagrada frase de Simone de Beauvoir sobre a “construção” da mulher constitui o ponto de partida para a perspectiva feminista de análise, pois levanta a questão da maneira, ou melhor, dos ingredientes que produzem as diferenças de gênero. Simone, como já fizera a inglesa Virginia Woolf, reivindicava o direito a uma vida intelectual autônoma, à possibilidade de as mulheres desenvolverem sua potencialidade criadora. Ambas partiam das restrições culturais e sociais impostas às mulheres, sem contudo nunca se referirem a uma “identidade” feminina superior à masculina. Convém observar, igualmente, que alguns autores, sem defenderem a existência de uma “essência” feminina, vão um passo além e afirmam a existência de especificidades de gênero. Ao longo da história da humanidade, a concentração do poder econômico e da coerção física nas mãos masculinas tornou femininos os valores relacionados à criação e aos cuidados da vida. Assim Herbert Marcuse, por exemplo, acredita que as potencialidades revolucionárias do feminismo têm a ver com o predomínio dos valores do “cuidar” sobre os do “dominar”12.
A crítica ao patriarcalismo e a denúncia da situação discriminada da mulher podem gerar dois tipos de feminismo, que conflitam em algumas dimensões importantes. As feministas francesas, Simone de Beauvoir e Luce Irigaray13, que chegaram a ser contemporâneas, não concordam quanto à existência de uma essência feminina, nem sobre a valorização do “feminino”. É interessante observar que ambas fundamentam sua análise histórica sobre a opressão da mulher em Bachofen e Engels, que advogam a tese de que o domínio masculino inscreve-se na violência e no controle das riquezas. Mas, enquanto Simone pensa que a emancipação da mulher deveria se realizar por meio da aquisição dos valores masculinos (com ênfase no trabalho), Luce argumenta que a dominação masculina desequilibrou o necessário equilíbrio entre os sexos. As consequências dessa dominação são profundas e estão ancoradas na própria linguagem – o sexo está inscrito na língua – em que os valores atribuídos à mulher são sempre desqualificados ante os valores masculinos, dominantes. Luce acentua a importância de uma retomada do princípio feminino, soterrado pela dominação masculina e fálica. Aqui também Ellen Wood comete um equívoco ao incluir no pós-modernismo o feminismo de Luce Irigaray, que é essencialista (e idealista), quando a própria análise de Ellen Wood afirma ser uma característica pós-moderna a negação de essências duradouras.
Se há algo que une os vários “novos revisionismos” – desde as mais herméticas teorias “pós-marxistas” e “pós-modernistas” até o ativismo dos “novos movimentos” é a ênfase na diversidade, no pluralismo. De três maneiras o novo pluralismo supera o reconhecimento liberal de interesses divergentes e tolerância (em princípio) de opiniões diversas: 1) sua concepção de diversidade penetra as externalidades dos “interesses” e vai até a profundidade psíquica da “subjetividade ou identidade”14 e avança para além da opinião ou do “comportamento” político até a totalidade dos “estilos de vida”; 2) ele não pressupõe que alguns princípios universais do direito podem acomodar todas as diferentes identidades e estilos de vida […]; e 3) apoia-se numa visão cuja característica essencial, a diferença específica histórica do mundo contemporâneo […] não é a força totalizadora e homogênea do capitalismo, mas a heterogeneidade única da sociedade “pós-moderna” […].15
Em artigo escrito para a New Left Review, “De Beauvoir and Modern Feminism”, Kate Soper16 observa que Simone de Beauvoir rejeitou com veemência o “feminismo da diferença” personificado em Luce Irigaray. Em nome do universalismo e do igualitarismo, com receio de retomarmos a armadilha da “natureza biológica”, feministas de várias partes do mundo também rejeitaram aquilo que consideram ser um retorno ao “essencialismo”. As consequências políticas do essencialismo, quando combinadas à problemática da fragmentação e da indefinição, são assim descritas pela antropóloga argentina Mónica Tarducci:
Las feministas culturales creen que la lucha contra el patriarcado comienza consiguiendo que las mujeres exorcicemos lo masculino que hay em nosotras y maximizemos nuestra femineidad. En esa crítica a los valores masculinos convergen no sólo las características opresivas que sufrimos todos los días sino también la política y la ciencia. Al contrario de lo que creían las radicales, que criticaban a la izquierda desde la izquierda, ciertas feministas declaran hoy que el feminismo es incompatible no solamente con la política sino con la razón en general.17
Com base na pretensa aceitação de todas as particularidades, as novas teorias das “identidades” obscurecem o peso determinante do capitalismo na configuração dos destinos e valores de nossa sociedade. Em oposição, convém assinalar que a corrente “pós-moderna” do feminismo é pouco atuante na América Latina, concentrando-se principalmente nos Estados Unidos, onde, diga-se, a francesa Luce Irigaray pontifica.
Em compensação, trata-se de uma autora praticamente desconhecida no Brasil, onde sua obra jamais foi lançada. O feminismo marxista, via de regra, criticou o “essencialismo” no intuito de evitar a biologização das desigualdades sociais implícitas no sexismo.
Outra dimensão do problema diz respeito ao anticapitalismo do feminismo marxista. Se as feministas em geral defendem o fim dos “fundamentalismos”, as feministas socialistas e comunistas também são contra o fundamentalismo do Mercado e do Capital. Como observa a militante argentina Alda Facio, o feminismo concerne especificamente às relações de gênero. Nesse sentido, existem feministas de direita ou pouco preocupadas com a luta de classes, mas elas constituem uma minoria dentro dos movimentos de mulheres latino-americanas:
No estoy planteando que no pueda haber mujeres que se sientan o se definan como feministas y que también sean de derecha o de centro o de lo que sea. Es más, posiblemente haya muchas mujeres de derecha que en su vida personal sean más feministas que muchas de nosotras. Mujeres que hayan trabajado el sexismo interiorizado con más ahínco y determinación. Y esto es una parte importantísima de ser feminista. Sin embargo, ser feminista a nivel individual no es lo mismo que ser parte de un movimiento. Las feministas podemos estar en todos lados: en el Estado, en las agencias de cooperación, en la ONU, en las ONGs, y hasta en movimientos religiosos, artísticos, o que luchan contra otras formas de discriminación e intolerancia. Pero sostengo que el movimiento feminista, como tal, tiene que ser progresista, es decir, de izquierda, como lo fue desde sus inicios y en sus distintas etapas, de lo contrario tiene poco que ofrecerle a la gran mayoría de las mujeres que siguen siendo pobres.18
Na verdade, os trabalhos de Ellen Wood revelam o intelectualismo da autora, que termina por não distinguir a prática teórica pós-modernista (com seu relativismo cultural e niilismo político) da prática militante dos movimentos sociais. Isso porque reduz as lutas sociais às lutas de classes; tem uma visão estereotipada do que seja a classe operária, permanecendo fiel a uma representação da classe operária – masculina e branca – completamente superada no centro e na periferia do capitalismo. O belo modelo teórico de Ellen não dá conta da complexidade do real. Permanece no Olimpo das verdades universais.
As críticas que faz ao marxismo ocidental, ao afirmar que talvez o “sabor particular do marxismo ocidental e de seus sucessores não seja resultado apenas do fato negativo de sua separação da política operária, mas também de sua tendência a preencher o vácuo, substituindo a luta de classes pela atividade intelectual”19, aplicam-se como uma luva ao seu próprio teoricismo e afastamento da luta de classes.
Feminismo e anticapitalismo
Na prática política, não basta reconhecer a luta de classes como motor da história e a superação das classes como objetivo supremo. O fracasso do socialismo real teve algumas vantagens para os marxistas. A primeira delas é que comprovou várias teses de Marx, com respeito às condições técnicas e políticas relacionadas com a lógica do modo de produção capitalista e sua superação. Afinal, Marx previu a revolução nos países capitalistas desenvolvidos, sempre acreditou na escala mundial da revolução socialista (não é dele a invenção do “socialismo em um só país”). Ademais, sempre afirmou que o socialismo seria um período de transição para o comunismo no qual o Estado desapareceria dando lugar à associação dos produtores diretos. Como será que isso se dá na prática?
O legado histórico das revoluções “clássicas” do século XX, como as revoluções de 1917 (Rússia), 1949 (China) e 1959 (Cuba), inclui a compreensão das razões pelas quais nenhuma dessas tentativas chegou a transformar o mundo nem os impedimentos existentes para que fossem criadas sociedades em que, de fato, “o poder seja do povo e exercido pelo povo”, de acordo com a fórmula de Ellen M. Wood.
O real problema das esquerdas hoje é, antes de mais nada, superar criticamente as experiências das revoluções passadas e contribuir e viabilizar uma proposta de nova sociedade que incorpore desde o começo o povo em nome do qual o poder é exercido. Como se sabe, na atual dinâmica eleitoral, o partido vencedor tem um enorme poder em termos de cargos e cooptação. A carteirinha política transforma-se em possibilidade de emprego, daí o apreço à permanência nos cargos.
A História oferece infinitos exemplos da burocratização dos partidos socialistas e comunistas e dos males que isso causa, especialmente em países em que o “socialismo/comunismo” foi imposto de cima para baixo, países estes sem tradição democrática. A Coréia do Norte e a Albânia, que foi a grande referência do PC do B, constituem exemplos conspícuos desta degenerescência.
Analisando a maneira pela qual as bandeiras revolucionárias são retomadas – e transformadas pelas revoluções seguintes –, Perry Anderson aponta o impacto da Revolução Francesa de 1789, que se transformou no paradigma revolucionário. Assim, em 1848,
[…] o socialismo apresentou-se como herdeiro da Revolução, o único programa capaz de dar realidade efetiva a liberdade, igualdade e fraternidade. Mas era também uma genuína mutação. Tratava-se de um movimento de uma espécie diferente do jacobino […] na medida em que envolvia um rompimento com o seu respeito pela propriedade privada, uma crítica de sua interpretação do passado, um reordenamento da trindade de 1789, e uma aposta num novo agente social que só surgiu com a expansão da indústria moderna, depois que a Revolução Francesa chegou a seu termo. […] o socialismo também sofreria por sua vez uma mutação semelhante – com o surgimento coincidente de uma nova espécie de movimento para a transformação radical da sociedade, reconhecendo em alguns aspectos sua dívida para com o socialismo, mas em outros criticando-o e repudiando-o com veemência. Isso, é claro, é algo como o papel que as feministas atribuem frequentemente à luta pela igualdade social.20
O socialismo tem que dar resposta às questões e tensões existentes no cenário mundial, decorrentes da expansão capitalista, levando em conta os limites impostos pela própria dinâmica da acumulação, que é prescindir de força de trabalho. A contradição de interesses não somente opõe Norte e Sul do planeta, como envolve lutas pela emancipação das populações pré-colombianas em todas as Américas e dos enormes contingentes de mulheres que estão entre os setores mais pobres do mundo. Afinal, quem lucra com a exploração do trabalho infantil e os miseráveis salários pagos na periferia do capitalismo, especialmente para as mulheres? Se o capitalismo, como modelo teórico, pode abrir mão de todos os demais tipos de exploração (gênero, etnia, raça), o capitalismo que conhecemos dificilmente abdicaria de toda e qualquer possibilidade de aumentar seus lucros. Não por acaso os Estados Unidos, onde o movimento socialista nunca foi forte, são um dos países capitalistas avançados em que as trabalhadoras têm menos direitos relacionados à gravidez e cuidados com crianças.
Os limites do teorismo
Na sua defesa de história, Ellen Wood acaba sendo superada pela história real. Tão preocupada está com a rejeição ao pós-modernismo, que se descuida de aprofundar as consequências do neoliberalismo com respeito à desestruturação do mercado de trabalho e dos resquícios do Estado de bem-estar para nos fixarmos em algumas consequências sociais das políticas impostas pelo FMI e pela hegemonia norte-americana. Mas como os fatos são teimosos, a melhor comprovação dos limites de sua análise sobre os “novos” movimentos sociais é que seu livro, publicado nos EUA em 1997, não soube prever o vigoroso movimento social antiglobalização que despontaria um ano depois. A globalização, como retórica dos defensores neoliberais do livre-comércio de bens e capital, tornou-se uma força poderosa durante os anos 1990, e os acontecimentos de Seattle constituíram um rude golpe para os donos do mundo em 1999. Para grande surpresa da maioria, comenta Wallerstein, houve um expressivo protesto que desestabilizou a reunião:
Entre aqueles que protestavam encontrava-se uma grande quantidade de organizações norte-americanas (as organizações sindicais) e da New Left, assim como grupos anarquistas. Certamente o próprio fato de que a AFL-CIO estivesse pronta para colocar-se do mesmo lado que as organizações ambientalistas em uma ação tão militante foi algo de novo, com mais forte razão por se tratar de organizações norte-americanas.21
A continuidade dos movimentos antiglobalização foi facilitada, em 2001, pela criação do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, reunindo milhares de pessoas e organizações. Com respeito às expectativas do fórum, Wallerstein observa que a originalidade deste movimento reside no fato de que busca reunir todos os tipos precedentes de movimentos anti-sistêmicos. O que inclui não somente a “Velha” e “Nova” Esquerda, como também o conjunto de “novos” movimentos tão desvalorizados por um certo tipo de marxismo representando em Ellen M. Wood, como o feminismo, os verdes, os movimentos étnicos assim como organizações filantrópicas, grupos de direitos humanos, vários tipos de organizações não-governamentais, entre outros. Os pontos básicos de acordo são: luta contra os males sociais originados pelo neoliberalismo e respeito comum pelas prioridades de cada uma das categorias envolvidas. A outra menção digna de nota é a reunião de movimentos do Norte e do Sul do hemisfério. Isso não implica a ausência de tensões políticas e lutas pela hegemonia. O movimento zapatista não pode participar, assim como as FARC. A preponderância (e ingerência) do PT foi especialmente forte na última edição, tampouco se pode esquecer a hegemonia da Igreja Católica, que tem um papel progressista em uma série de questões, mas é conservadora com respeito à sexualidade, direitos reprodutivos e casamento.
Mais recentemente, a reação mundial ao ataque comandado pelos norte-americanos ao Iraque, a constituição de novos blocos de alianças internacionais, como a política externa brasileira de maior proximidade com a América Latina e abertura para países como China, Índia e África do Sul, a própria incapacidade norte-americana de intervir diretamente na Venezuela, são sinais positivos da capacidade de contestação dos movimentos sociais. Da mesma maneira, é promissora a continuidade das lutas pela reforma agrária no México e no Brasil onde, diga-se, estão a cargo de movimentos sociais. Ou qual é a definição que se dá ao MST?
A experiência brasileira em curso mostra a força de cooptação dos aparelhos de Estado e do poder político e também a importância de que, diante do poder econômico e seus aliados no Congresso, haja uma pressão das demandas populares. Vale ressaltar que os parlamentares do PT têm votado a favor das “reformas”, bem como os representantes do PC do B. Isso talvez diga muito sobre o potencial dos movimentos sociais desvinculados de uma estrutura partidária.
Também é importante entender a notável influência ainda exercida pela Igreja Católica, que “justifica” os compromissos fechados com partidos de esquerda para coibir a legalização do aborto, uma antiga reivindicação dos movimentos feministas. O conservadorismo dos partidos reflete o conservadorismo dos aparelhos ideológicos de Estado, vale dizer, escola, família, religião. Daí a importância de uma concepção ampla de socialismo que permita, de fato, a transformação radical da ordem econômica e social. Assim, é preciso enfrentar os limites da concepção cristã de luta de classes hoje predominante no PT através da radicalização da democracia em todas as instâncias. O povo brasileiro, ao derrubar, dentro da ordem vigente, um presidente eleito que comprovou ser chefe de quadrilha, com certeza deu provas de sua maturidade política. Esperemos que a esquerda no poder não o decepcione.
in Boitempo, com a devida vénia.