TTIP: Comércio que prejudica os direitos humanos
Os
tratados de comércio e investimento tecem um emaranhado jurídico que
protege os interesses das multinacionais em detrimento das sociedades
onde operam. Os exemplos em vigor na América Central são bem a prova
disso. Artigo de Liliane…
A
luta de organizações e movimentos sociais contra esquemas de comércio
internacional predador e destruidor não data de ontem. Na década de
1990, focava-se nas negociações globais dentro da Organização Mundial do
Comércio (OMC). Mas, paralelamente, estava a surgir com força a
assinatura de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais, tornando
muito mais difícil o seu acompanhamento por parte da sociedade. A
Europa não ficou à margem dessa tendência. No que toca à relação entre a
União Europeia (UE) e a América Central, por exemplo, apesar de a
década de 1980 ter propiciado a assinatura de alguns acordos bilaterais
entre Estados das duas regiões, foi a partir dos anos 1990 que esses
contaram com um auge maior. Hoje em dia existem 56 acordos de Promoção e
Proteção Recíproca de Investimentos entre países europeus e
centro-americanos, e, por outro lado, um Acordo de Associação assinado
entre América Central e União Europeia.Os tratados de comércio e
investimento são um dos instrumentos de internacionalização das empresas
europeias, que garantem o seu acesso aos mercados mundiais e aos
recursos em outras partes do mundo. Tecem um emaranhado jurídico que
protege os interesses das multinacionais, uma armadura cujo poder é
muito superior ao dos acordos internacionais ou das legislações estatais
em matéria ambiental e social
Ao
contrário do que as elites governamentais e empresariais querem fazer
crer, esses tratados comerciais incentivam um modelo de expansão
corporativa que impacta de forma direta na vida das pessoas e contribui
para o avanço da atual crise ecológica.
Nesse
contexto, é interessante documentar o que vem sendo denunciado por
organizações e pessoas em todo o mundo: ao contrário do que as elites
governamentais e empresariais querem fazer crer, esses tratados
comerciais incentivam um modelo de expansão corporativa que impacta de
forma direta na vida das pessoas e contribui para o avanço da atual
crise ecológica.Por essa razão, a Amigos da Terra, com colaboração do
Observatório de Multinacionais na América Latina (Omal) – Paz com
Dignidade, quer aportar dados das relações comerciais entre a UE e a
América Central e caracterizar como a União Europeia criou um contexto
jurídico e político que blinda os interesses das suas transnacionais
nessa região. Nesse caso, não foi um problema o facto de os Estados
Unidos serem o principal sócio comercial e investidor na região
centro-americana, muito pelo contrário: essa situação facilitou as
negociações com a UE.
A
existência prévia de um tratado de livre comércio com os Estados Unidos
(CAFTA-DR) permitiu avançar na liberalização e desregulamentação de
numerosos setores, abrindo o caminho para mais mercantilização de
serviços e bens e mais desregulamentação das compras públicas, tal e
como consta do Acordo de Associação entre a UE e a América Central, que
entrou em vigor em 2013. Fazem parte dessa mesma lógica os 56 acordos
entre Estados das duas regiões.
Dessa
forma, junto com a extensão das políticas neoliberais que privatizaram e
desregulamentaram setores como o energético, cria-se um contexto
favorável à entrada das transnacionais. Uma situação que não passou
despercebida pelas transnacionais europeias, especialmente as do setor
de eletricidade, que abriram um espaço no mercado, tanto da geração como
da distribuição. As mais importantes são a italiana Enel/Endesa, a
francesa GDF Suez, a britânica Actis Globeleq e a espanhola Gas Natural
Fenosa.
A
instalação dessas empresas na região centro-americana está associada
aos consequentes impactos ambientais e sociais. As comunidades afetadas
denunciam o saque dos recursos naturais, a má qualidade ou falta do
serviço supostamente prestado, a precariedade trabalhista, os atropelos
dos direitos humanos e a deterioração dos ecossistemas.
Porém,
as vítimas não encontram respostas nos tribunais estatais, e tampouco
existe uma instância internacional que julgue as empresas transnacionais
e os seus dirigentes pela violação do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e do Direito Internacional do Trabalho.
Por
essa razão, a sociedade civil vê-se obrigada a buscar uma via de
justiça alternativa, em particular junto do Tribunal Penal dos Povos.
Assim, as espanholas Gas Natural Fenosa e Hidralia, e a italiana Enel
foram denunciadas nesse tribunal popular por suas práticas destrutivas
na América Central.
Bem
pelo contrário, as transnacionais têm ao seu alcance não só a própria
justiça estatal dos países onde operam, mas também podem dirigir-se a
tribunais de arbitragem internacionais, nos quais denunciam os Estados
quando consideram que estes atentam contra seus investimentos e
interesses. Este mecanismo privado de resolução de conflitos entre
investidores e Estados (ISDS), é uma característica comum dos tratados
de livre comércio e investimentos.
Os
ISDS estão acima das leis e dos tribunais dos Estados, colocam o perigo
nas tentativas estatais de reforçar a proteção social e ambiental, e só
se aplica em uma direção: as empresas podem denunciar os Estados, mas
não o contrário e muito menos os povos e as comunidades afetadas pelas
atividades empresariais. Um atentado à democracia e à justiça.
Os
ISDS estão acima das leis e dos tribunais dos Estados, colocam o perigo
nas tentativas estatais de reforçar a proteção social e ambiental, e só
se aplica em uma direção: as empresas podem denunciar os Estados, mas
não o contrário e muito menos os povos e as comunidades afetadas pelas
atividades empresariais. Um atentado à democracia e à justiça.
Até
hoje, o número total de queixas apresentadas pelas multinacionais
(incluindo as não europeias) contra os países centro-americanos junto ao
Centro Internacional de Acordo de Diferenças Relativas a Investimentos
(Ciadi) chega a 25.
A
Costa Rica foi levada nove vezes perante esse tribunal de arbitragem.
Pode-se apreciar que a evolução temporária das denúncias contra os
Estados está diretamente relacionada com a assinatura e entrada em vigor
dos tratados que incluem a proteção e promoção de investimentos na
região. Quanto às empresas de energia europeias, duas utilizaram esse
mecanismo. Em 2009, a Iberdrola processou a Guatemala junto ao Ciadi por
causa de uma disputa no estabelecimento de tarifas, e em 2013 a
italiana Enel processou El Salvador pela paralisação de um projeto
geotérmico quando o Estado centro-americano detectou irregularidades.
Essa
situação não pode causar indiferença. A experiência entre a UE e a
América Central deixa claro como os tratados de livre comércio e
investimentos representam um forte instrumento de proteção dos
interesses das transnacionais, criando uma armadura de segurança
jurídica dos investimentos, acima dos direitos sociais, ambientais e
democráticos das populações.
Nesse
sentido, a Europa deve rever em profundidade a sua política de expansão
para o exterior, bem como a sua recusa em apoiar um tratado
internacional vinculante sobre empresas e direitos humanos, tal e como o
faz atualmente dentro da Organização das Nações Unidas (ONU).
Por
outro lado, é imprescindível considerar a advertência que apresenta a
experiência da América Central, rechaçando a assinatura da Associação
Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), da UE com os Estados
Unidos, e a ratificação do Acordo Integral de Economia e Comércio
(Ceta), do bloco europeu com o Canadá.
Na
Semana Internacional de Ação Contra os Tratados de Livre Comércio,
realizada entre 11 e 17 deste mês, foi possível ver como os cidadãos de
toda a Europa dizem “NÃO” tanto ao TTIP como ao Ceta e ao Acordo de
Comércio de Serviços (Tisa). Com tanta gente nas ruas gritando,
esperamos que nossos representantes políticos deixem de se fazer de
surdos.
Artigo publicado Liliane Spendeler é diretora na Espanha da Amigos da Terra. Artigos relacionados: 250 mil protestam contra o TTIP em Berlim
Sem comentários:
Enviar um comentário