As esquerdas e a derrota na Venezuela: decifra-me ou te devoro
A derrota
contundente do PSUV na Venezuela faz parte da onda conservadora que vem
se abatendo sobre a América do Sul, e atua de forma geral sobre
situações nacionais, que possuem suas especificidades e autonomias. A
derrota do PSUV ameaça não apenas o governo Maduro, mas a própria
revolução bolivariana, uma vez que a MUD alcançou 112 deputados na
Assembleia Nacional, maioria de 2/3, podendo destituir ministros do
Supremo Tribunal Federal e convocar nova Assembleia Constituinte para
destruir a Quinta República e o legado chavista. O êxito desta onda se
funda na capacidade de bloquear a articulação que se promoveu na
primeira década do século XXI entre o desenvolvimento econômico e o
combate à desigualdade e à pobreza. Para isso vários fatores se
conjugaram no caso venezuelano.
O primeiro
fator é a estratégia do imperialismo estadunidense que se aproveitou da
crise internacional, iniciada em 2008, para derrubar os preços das
commodities, em particular dos derivados do petróleo, em cuja
nacionalização e renda apoiam-se diversos governos populares da região.
Para isso promoveu a expansão da produção de petróleo com aliados como a
Arábia Saudita, Emirados Árabes, Iraque, Iemen e Kuwait, ao tempo em
que buscou substituir importações pela produção de gás de xisto.
O segundo
fator foi a incapacidade de o governo venezuelano mudar o caráter da
pauta exportadora, aprofundando sua vinculação aos derivados de petróleo
que passaram a representar mais de 90% da mesma, ainda que o petróleo
tenha diminuído sua participação no PIB venezuelano. Tal situação tornou
o balanço de pagamentos da Venezuela extremamente vulnerável às
oscilações dos preços dos derivados de petróleo, e à estratégia
estadunidense de estrangulamento cambial. Esta vulnerabilidade se
acentuou com a decisão de manter um teto fixo de reservas cambias, em
torno de US$ 30 bilhões, desde 2006, independente do aumento do valor
das importações.
O terceiro
fator foi a decisão dos governos bolivarianos de não intervirem
significativamente no setor bancário venezuelano, cujos captações
permaneceram 70% nas mãos do setor privado, ainda que se tenha
nacionalizado o Banco Santander, transformando-o em Banco de Venezuela. O
peso do setor financeiro se elevou no PIB venezuelano de 4% a 12%,
entre 2002-2012, e a decisão de não nacionalizá-lo e nem centralizar o
comércio exterior implicou na tolerância a uma extraordinária fuga de
capitais que alcançou cerca de US$ 200 bilhões, desde 1999, a maior
parte durante o governo Chávez. Tal situação, que foi financiada por
saldos comerciais durante o período do boom petroleiro, reduziu
drasticamente as reservas venezuelanas e a capacidade de os governos
chavistas enfrentarem um período de crise e ofensiva imperialista.
O quarto
fator foi o baixo perfil que assumiu a agenda de integração regional das
esquerdas através da UNASUL e do novo Mercosul. Embora muito tenha sido
teorizado sobre integração soberana e solidária, nova arquitetura
financeira e redução de assimetrias regionais, muito pouco foi realizado
e institucionalizado. O Banco do Sul, aprovado em 2007, não saiu do
papel e não contou com a ratificação do congresso brasileiro e nem o
empenho do governo brasileiro, que preferiu financiar as operações do
país na região via BNDES. A Venezuela, embora tenha ingressado no
Mercosul, pouco aumentou suas exportações para os países da região, em
particular o Brasil, que continua a importar apenas cerca de 1% das suas
necessidades de petróleo e derivados deste país, preferindo parceiros
como a Arábia Saudita e a Nigéria. A integração regional nem funcionou
para criar uma arquitetura financeira soberana que mudasse o padrão
produtivo internacional da Venezuela, nem para lhe abrir significativos
mercados de exportação e nem para lhe oferecer garantias monetárias
contra crises internacionais
Tais fatores
contribuíram para o estrangulamento econômico do capitalismo de Estado
venezuelano e da sua transição para um projeto socialista. Ainda podemos
destacar outro elemento que minou a força do processo revolucionário: a
dificuldade de controle social sobre a gestão do Estado, manifesta na
existência de corrupção em altos escalões do governo, e na carência de
formação de quadros técnicos no poder popular. Um dos casos mais
notórios de corrupção foi o de Rafael Isea, ex-governador de Aragua,
ex-presidente do Banco de Desenvolvimento Econômico Social (BANDES) e
ex-presidente do Banco do ALBA, que fugiu do país acusado de desvios de
US$ 70 milhões, radicando-se no Estados Unidos como colaborador da
agência anti-drogas. Apesar da luta de Maduro contra a corrupção no
aparato de Estado, a sua presença, em contraste com o desabastecimento,
levou ao aumento da desconfiança popular com o processo revolucionário.
A onda
direitista que se articula sobre a América do Sul, diferentemente da que
se apoiou em ditaduras militares na década de 1960/70 ou, em
democracias oligárquicas, na década de 1990, ancoradas na
sobrevalorização cambial, no endividamento externo e na
desnacionalização, pretende se apoiar numa base de massas. Esta base de
massas é refratária às políticas sociais e ao combate à desigualdade,
praticados pelos governos de esquerda e centro-esquerda, e busca o
controle do Estado mesclando alternativas liberais e fascistas que se
estendem da competição eleitoral, ao golpe parlamentar e processos
insurrecionais, como praticados pela oposição venezuelana em La Salida.
Se esta onda pouco pode oferecer além de um novo programa neoliberal
fundado em forte repressão aos movimentos sociais e partidos políticos
que protagonizam a política na América do Sul nos últimos 15 anos,
vencê-la exige uma reestruturação de projetos das esquerdas, do débil
reformismo que apresentam para um outro estratégico que controle ativos
chaves dos Estados nacionais, direcionando-os para uma integração
regional profunda e para a cooperação com o Sul, em particular com os
BRICS.
***
Carlos Eduardo Martins
é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor
adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos
sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de
Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de
Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de
Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
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