Manuel Castells:"Como projeto de valores e de moral a UE está condenada"
O debate em torno dessa questão é global. Há outros países que seguiram o exemplo.
Sim,
através da interceção de chamadas e do correio eletrónico. Este
trabalho é como encontrar uma agulha num palheiro e para conseguir
extrair alguma coisa, tem que se vigiar o palheiro completo. As agências
de segurança precisam da informação de todo o planeta. E já não são
necessárias ordens judiciais porque todos os assuntos são de interesse
nacional para estas agências.
As
empresas de tecnologia também têm os nossos dados. Há contas pessoais
no Facebook, emails na Google. De que forma é que os usam?
Se
não estamos a pagar para usar um serviço é porque os nossos dados são
vendidos. O que tem valor são os dados e o que se vende são esses dados.
São valores transacionáveis como qualquer tipo de mercadoria. Passamos
do capitalismo da ganância monetária para um capitalismo de dados.
Quando fala de dados, refere-se às informações de cada pessoa?
Pode
não ser informação pessoal e individual. Mas há uma agregação de
informação para a criação de perfis. Com esses perfis conseguem saber e
categorizar o que fazemos e o que gostamos. É essa a informação que
depois é comercializada. Basta fazer uma pesquisa na página do Google,
onde diz que a respeita a privacidade, excetuando o número de telemóvel,
a geolocalização, o número do cartão de crédito...
Praticamente tudo.
A
partir do momento em que introduzimos os nossos dados pessoais, deixa
de existir qualquer tipo de privacidade para as empresas privadas. Essas
empresas, como a Apple, a Microsoft e o Facebook sabem e comercializam
tudo o que é dado quantificável sobre os seus utilizadores.
E as pessoas sabem isso?
Sim.
Acho que estão mais conscientes desta realidade. Mas pouco podem fazer.
A única opção é deixar a conexão eletrónica e isso significa sair do
mundo. Os governos querem saber tudo sobre os cidadãos e as empresas
querem vender todas as nossas informações. É precisamente por isto que o
meu próximo livro, que vou lançar em breve, vai chamar-se "Vigiados e
vendidos".
Por outro lado, também temos pessoas com telemóvel na mão, prontas a colocar na rede qualquer coisa.
Exatamente.
Além de estarmos a ser vigiados sabemos que podemos vigiar e isto é
completamente novo. Todos podemos recolher informação e colocar nos
sistemas de comunicação que existem. A Internet mudou as relações de
poder e a capacidade das pessoas se auto-organizarem está a forçar
mudanças políticas. Aconteceu com a destituição parlamentar da
Presidente da Coreia do Sul e, apesar das diferenças, no Brasil.
Estamos
a falar de tecnologia que continua a evoluir dia após dia. Por outro
lado, nos últimos meses, temos discutido a construção de muros.
O
Trump não vai construir nenhum muro. Haverá mais sofrimento humano e
mais pessoas mal tratadas pelos traficantes de pessoas. Estes muros são
mais eficazes para circular no interior da opinião pública xenófoba do
que para conter a imigração.
É demagogia?
Sim,
mas muito eficaz. Tão eficaz que levou a que determinados líderes tomem
controlo e se criem sentimentos de ódio entre a população. Funcionamos
todos por emoção antes da razão.
As pessoas vão continuar a cruzar as fronteiras?
Estes
fluxos do desespero não se param. As pessoas estão dispostas a morrer
pelos seus filhos. Não é por elas, mas pelos próprios filhos. Trump não
vai parar a imigração mexicana, porque há uma enorme taxa de pobreza ao
lado de uma fronteira com mais de 2 mil quilómetros. As pessoas não vão
deixar de fazer isso.
Na Europa
também se tem discutido muito o tema da imigração. Nomeadamente no que
diz respeito aos refugiados. Também se fala de muros nos países mais a
leste.
Há todo um fluxo de uma
região, o médio oriente, que está ferida por uma guerra em que a Europa
participa. As pessoas tendem a ir para os locais onde se sentem
seguras. Na Europa também houve migrações massivas durante a Segunda
Guerra Mundial.
A juntar ao debate dos muros, temos visto o crescimento dos movimentos nacionalistas. Como é que isso se explica?
Na
Europa, começa a desenvolver-se um terror generalizado. As pessoas têm
medo dos islâmicos, dos homossexuais, da emigração. Têm medo de tudo e a
solução encontrada é colocar um polícia no Governo que não deixe entrar
quem é diferente. É a negação da realidade que pode conduzir a
verdadeiras catástrofes.
O terrorismo continua a ser um dos principais receios.
Sim,
exatamente. Mas, com o aumento da discriminação, os movimentos radicais
vão perpetuar-se. Só em França, há cerca de cinco milhões de
muçulmanos. Não são emigrantes, são cidadãos franceses que nasceram lá.
Os ataques que a Europa sofreu nos últimos anos, em Bruxelas e em Paris,
foram levados a cabo por cidadãos europeus. Não foram emigrantes.
Nasceram e cresceram na Europa.
No próximo ano, há eleições em França e na Holanda. Depois da vitória surpreendente do Brexit, o que podemos esperar?
Em
Inglaterra, as regiões que votaram no Brexit foram as mesmas que
tradicionalmente votam no Partido Trabalhista. Em França, o voto na
Frente Nacional é feito por pessoas que votavam no Partido Comunista. Na
Holanda, nas próximas eleições, o mais provável é ganhar um partido
xenófobo. Há dez anos seria impensável imaginar que três dos quatro
países escandinavos estivessem a ser governados por partidos xenófobos. O
que está a acontecer é muito grave.
A
Frente Nacional e os partidos que lideraram a campanha do Brexit são
declaradamente antieuropeus. A União Europeia (UE) estará condenada?
Como
projeto de valores, de integração e de moral, a UE está condenada. Foi
um projeto maravilhoso nas ideias, mas não era democrático. Os cidadãos
europeus nunca foram verdadeiramente consultados. Países pró-europeus
temos Portugal e Espanha. A Europa foi a forma que encontraram para
abandonar os fantasmas vindos das ditaduras.
A Alemanha, liderada por Angela Merkel, tem sido uma voz ativa na defesa do projeto europeu. Vai resistir a esta onda?
Tal
como os países ibéricos, a Alemanha olha para a Europa como uma forma
de fugir ao passado. Depois das duas guerras horríveis que provocou, a
única forma de voltar a ser encarada como um país respeitado foi como
parte da UE. Mas também na Alemanha se está a perder os valores europeus
por causa do medo. Os partidos alternativos, com uma identidade nazi,
estão a crescer.
Existe algum tipo de escape a estes movimentos?
Há
uma crise sistémica. As novas forças políticas com identidade
humanitária e europeia vão aproximar-se dos partidos tradicionais. Todo o Mundo estava com medo da eleição na Áustria. A Áustria elegeu um ecologista. A luta final era entre um neonazi e um ecologista humanista.
Logo
após a vitória de Donald Trump, houve como que um apontar de dedo
generalizado ao Facebook por causa das notícias falsas. É possível
regular uma rede social, como acontece com as televisões, as rádios e os
jornais?
A regulação terá de
passar sempre por um acordo com as empresas privadas, como o Facebook ou
o Twitter. No momento em que aparecer um Facebook regulado e
controlado, com normas bem definidas, nascerá outro. Há 10 anos, o My
Space era a rede social dominante, hoje praticamente não existe.
Fracassou depois de se tentar regular e controlar.
Todas as outras plataformas são reguladas.
A
diferença de espetro eletromagnético entre os meios de massa e os novos
meios é imensa. A Internet tem uma dimensão completamente diferente,
que não limita a existência de meios como o que acontece com as
plataformas mais tradicionais.
A questão central é a forma como as notícias falsas passam nesses espaços.
Qualquer
estudante com conhecimentos informáticos, sem grandes custos, e com
acesso a um supercomputador pode criar um site com notícias falsas. Se
tiver lucros com publicidade, vai continuar a publicar esses conteúdos. A
liberdade que existe de comunicação na Internet não tem volta a dar. Se
encerrar um espaço, outros vão abrir.
E não há nada que se possa fazer?
Já
há alguma atividade nesse sentido, principalmente de grupos de cidadãos
anónimos. Pessoas normais, sem esquemas de censura, que identificam,
denunciam e eliminam as notícias falsas da rede. Em lugar de esquemas
burocráticos, pode-se criar um debate contínuo na rede para distinguir o
que é falso daquilo que é verdade. Esta forma de autorregulação da
sociedade é bastante atrativa.
Existe algum tipo de relação entre as notícias falsas e a derrota de Hillary?
É
preciso ter em conta que as pessoas aceitam as mensagens de acordo com a
disposição perante essas mensagens. As notícias, alegadamente falsas,
que favoreciam Trump e atacavam Hillary foram importantes porque havia
milhões de pessoas que estavam ansiosas por saber coisas negativas sobre
Hillary. Esse é que é o verdadeiro problema.
Então, podemos dizer que as notícias falsas são também uma justificação dos democratas pelo resultado menos positivo?
Sim,
de certo modo. Temos que ver que só as elites é que têm acesso a todos
os meios de comunicação. A campanha contra as notícias falsas é uma
forma de atentar contra a liberdade da Internet. É, também, uma
estratégia das elites para retomar o controlo dos canais de informação.
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