Bensaïd: As questões de Outubro
Daniel Bensaïd passa a limpo o legado da Revolução Russa ao longo de três questões cruciais de historiografia política.
Por Daniel Bensaïd.
Antes mesmo de entrar na massa dos novos
documentos acessíveis pela abertura dos arquivos soviéticos (que
permitirão, indubitavelmente, novas luzes e uma renovação das
controvérsias), as discussão vem tropeçar no pensamento pronto da
ideologia dominante, bem ilustrada pela recente homenagem necrológica
consensual à François Furet. Nesses tempos de contra-reforma e de
reação, não surpreende que os nomes de Lênin e Trótski se tornem tão
impronunciáveis quanto foram aqueles de Robespierre e Saint Justsob
a Restauração.
Para começar a limpar o terreno é conveniente retomar três ideias bastante aceitas hoje em dia:
- Em vez de revolução, Outubro seria mais o nome emblemático de um complô ou de um golpe de Estado minoritário impondo no conjunto, de cima para baixo, sua concepção autoritária da organização social em benefício de uma nova elite.
- Todo o desenvolvimento da Revolução Russa e suas desventuras totalitárias estaria inscrita em germe, por uma espécie de pecado original, na ideia (ou “paixão” segundo Furet) revolucionária: a história se reduziria então à genealogia e à execução dessa idéia perversa, em detrimento de grandes convulsões reais, de acontecimentos colossais e da saída incerta de toda luta.
- Enfim, a Revolução Russa teria sido condenada à monstruosidade por ter nascido de um parto “prematuro” da história, de uma tentativa de forçar o curso e o ritmo, quando “as condições objetivas” de uma superação do capitalismo não estavam dadas: em lugar de ter tido a sabedoria “de auto-limitar” seu projeto, os dirigentes bolcheviques teriam sido os agentes ativos desse contratempo.
Revolução ou golpe de Estado?
A revolução Russa não é resultado de uma
conspiração mas a explosão, no contexto da guerra, das contradições
acumuladas pelos conservadorismo autocrático do regime tzarista. A
Rússia, no começo do século, é uma sociedade bloqueada, um caso exemplar
de “desenvolvimento desigual e combinado”, um país ao mesmo tempo
dominante e dependente, aliando os traços feudais de um campo onde a
servidão é oficialmente abolida há menos de meio século e os traços do
capitalismo industrial urbano mais concentrados. Grande potência, ela é
subordinada tecnologicamente e financeiramente (empréstimos). O caderno
de condolências apresentado para Gapon por ocasião da revolução de 1905 é
um verdadeiro registro da miséria que reina no país das tzares. As
tentativas de reformas são rapidamente bloqueadas pelo conservadorismo
da oligarquia, a teimosia do déspota e a inconsistência de uma burguesia
que já está perseguida pelo movimento operário nascente. As tarefas da
revolução democrática recaem, assim, numa espécie de terceiro-estado, no
qual, à diferença da Revolução Francesa, o proletariado moderno, ainda
que minoritário, já se constitui na ala dinâmica em marcha.
É isso que a “Santa Rússia” pode
representar: “o elo fraco da cadeia imperialista”. A prova da guerra põe
fogo neste barril de pólvora.
O desenvolvimento do processo revolucionário entre fevereiro e outubro de 1917, ilustra bem que não se trata de uma conspiração minoritária de agitadores profissionais, mas da assimilação acelerada de uma experiência política em escala de massa, de uma metamorfose das consciências, de um deslocamento constante das relações de forças. Na sua magistral História da Revolução Russa, Trótski analisa minuciosamente esta radicalização, de eleição sindical em eleição sindical, de eleição municipal em eleição municipal, junto aos operários, soldados e camponeses. Enquanto os bolcheviques representavam apenas 13% dos delegados ao congresso dos Soviets de junho, as coisas mudam rapidamente depois das “Jornadas de Julho” e a tentativa de putsch de Kornilov: eles representam entre 45% e 60% em outubro. Longe de representar uma manipulação conseguida pela surpresa, a insurreição representa o resultado e a conclusão provisória de uma prova de força que amadureceu ao longo do ano, no curso do qual o estado de espírito das massas plebéias esteve sempre à esquerda dos partidos e de seus estados-maiores, não somente dos socialistas revolucionários, mas mesmo daqueles do Partido Bolchevique ou de uma parte de sua direção (até inclusive sobre a decisão da insurreição).
Isso é o que explica que a insurreição de
Outubro, comparativamente às violências que conhecemos desde então,
tenha sido muito pouco violenta e pouco onerosa em vidas humanas, por
mais que seja vão distinguir entre as vítimas de Outubro propriamente
ditas (de ambas as partes) e aquelas da guerra civil a partir de 1918,
sustentada pelas potências estrangeiras, com a França e a Grã-Bretanha
na primeira fila.
Se entendermos revolução por um elã vindo
de baixo para cima, aspirações profundas de um povo, e não a execução
de algum plano mirabolante imaginado por uma elite esclarecida, não há
nenhuma dúvida que a Revolução Russa foi uma, no sentido pleno da
palavra. Basta notar as medidas legislativas tomadas nos primeiros meses
e no primeiro ano pelo novo regime para compreender que elas significam
uma transformação radical das relações de propriedades e de poder, às
vezes mais rápida que previsto e desejado, às vezes mesmo além do
desejável, sob a pressão das circunstâncias. Numerosos livros
testemunham esta ruptura na ordem do mundo (como Os dez dias que abalaram o Mundo, de John Reed, reedição do Seuil, 1996) e de sua repercussão internacional imediata (como La révolution d’Octobre et le mouvement ouvrier europeén, obra coletiva, EDI, 1967).
Marc Ferro sublinha (notadamente em La révolution de 1917, Albin Michel, 1997 e Naissance et Effondrement du régime communist em Russie,
Livre de Poche, 1997) que não houve à época muita gente para apiedar-se
do regime do tsar e para chorar o último déspota. Ele insiste, ao
contrário, sobre a virada do mundo tão característica de uma autêntica
revolução, que afeta até os detalhes da vida quotidiana: em Odessa, os
estudantes ditam aos professores um novo programa de história; em
Petrogrado, os trabalhadores obrigam seus patrões a aprender o “novo
direito operário”; no exército, os soldados convidam o capelão a sua
reunião “para dar um novo sentido a sua vida; em certas escolas, as
crianças reivindicam o aprendizado do boxe para se fazer escutar e
respeitar pelos adultos…”
Este elã revolucionário inicial se faz
ainda sentir ao longo dos anos vinte, apesar das penúrias e do atraso
cultural, nas tentativas pioneiras no front da transformação do
modo de vida: reformas escolares e pedagógicas, legislação familiar,
utopias urbanas, invenção gráfica e cinematográfica. É ele ainda que
permite explicar as contradições e as ambigüidades da grande
transformação operada com dor entre as duas guerras, onde ainda se
misturam o terror e a repressão burocrática e a energia da esperança
revolucionária. Nunca nenhum país do mundo conheceu uma metamorfose tão
brutal, sob o chicote de uma burocracia faraônica: entre 1926 e 1939 as
cidades aumentarão de 30 milhões de habitantes e sua parte na população
global passará de 18% a 33%; durante o único primeiro plano quinquenal
sua taxa de crescimento é de 44%, ou seja praticamente tanto quanto
entre 1897 e 1926; a força de trabalho assalariada mais que dobra (passa
de 10 a 22 milhões); o que significa a “ruralização” massiva das
cidades, um esforço enorme de alfabetização e de educação, a imposição à
marcha forçada de uma disciplina do trabalho. Esta grande transformação
é acompanhada de um renascimento do nacionalismo, de um desenvolvimento
do carreirismo, do surgimento de uma novo conformismo burocrático.
Nesta grande confusão, ironiza Moshe Lewin, a sociedade estava, num
certo sentido, “sem classes”, porque todas as classes estavam uniformes,
em fusão (Moshe Lewin, La formation de l’Union Soviétique, Gallimard, 1985).
Vontade de poder ou contra-revolução burocrática
O destino da primeira revolução
socialista, o triunfo do stalinismo, os crimes da burocracia totalitária
constituem sem nenhuma dúvida um dos fatos maiores do século. As chaves
de sua interpretação têm a maior importância. Para alguns, o princípio
do mal residiria num fundo ruim da natureza humana, uma irrepreensível
vontade de potência que pode manifestar-se sob diferentes máscaras,
inclusive aquela da pretensão de fazer a felicidade dos povos, apesar
deles, de impor-lhes esquemas pré-concebidos de uma “cidade ideal”.
Importa-nos, ao contrário, encontrar na organização social, nas forças
que a constituem e se opõem, as raízes e as molas profundas daquilo que
às vezes chamamos “o fenômeno stalinista”.
O stalinismo, nestas circunstâncias
históricas concretas, remete a uma tendência mais geral à burocratização
em marcha em todas as sociedades modernas. Ela é alimentada
fundamentalmente pelo desenvolvimento da divisão social do trabalho
(entre trabalho manual e intelectual notadamente) e pelos “perigos
profissionais do poder” que lhes são inerentes. Na União Soviética, esta
dinâmica foi tanto mais forte e rápida quanto a burocracia se produziu
sobre um fundo de destruição, de penúria, de arcaísmo cultural, na
ausência de tradições democráticas. Desde a origem, a base social da
revolução era ao mesmo tempo ampla e estreita, ampla na medida em que
ela repousava sobre a aliança entre operários e camponeses que
constituíam a esmagadora maioria social. Estreita na medida em que o
componente operário minoritário, foi rapidamente eliminado pelos
desgastes da guerra e as perdas da guerra civil. Os soldados para os
quais os Sovietes tiveram em 1917 um papel central, eram no essencial
camponeses mobilizados pela idéia da paz de retorno ao lar.
Nessas condições, o fenômeno da pirâmide
invertida ficou em seguida evidente. Não era mais a base que levava e
empurrava o topo, mas a vontade do topo que esforçava-se de carregar a
base. Daí a mecânica da substituição: o partido substitui ao povo, a
burocracia ao partido, o homem providencial ao conjunto. Mas esta
construção só se impõe pela formação de uma nova burocracia, fruto da
herança do antigo regime e da promoção social acelerada de novos
dirigentes. Simbolicamente, nos efetivos do partido após o recrutamento
massivo da “promoção Lênin”, alguns milhares de militantes da revolução
de Outubro não pesam mais a relação às centenas de milhares de
novos bolcheviques, entre os quais os carreiristas vindos em socorro da
vitória e os elementos reciclados da velha administração.
O testamento de Lênin (ver Moshe Lewin. Le dernier combat de Lenine,
Minuit, 1979), é testemunha, em sua agonia, desta consciência patética
do problema. Enquanto a revolução é assunto de povos e de multidões,
Lênin moribundo está imaginando o futuro, avaliando os vícios e as
virtudes de um punhado de dirigentes de quem tudo parece agora depender.
Se os fatores sociais e as circunstâncias
históricas jogam um papel determinante no ascenso poderoso da
burocracia stalinista, isto não significa que as idéias e as teorias não
tenham nenhuma responsabilidade na sua existência. Particularmente, não
há nenhuma dúvida que a confusão sustentada, desde a tomada do poder,
entre o Estado, o partido e a classe operária em nome do definhamento
rápido do Estado e do desaparecimento das contradições no seio do povo,
favorece consideravelmente a estatização da sociedade e não a
socialização das funções estatais. O aprendizado da democracia é uma
questão longa, difícil, que não caminha no mesmo ritmo que os decretos
de reforma econômica. Ela toma tempo, energia. A solução fácil consiste,
então, em subordinar os órgãos de poder popular, conselhos e sovietes a
um tutor esclarecido, o partido. Na prática, ela consiste também em
substituir o princípio da eleição e do controle dos responsáveis pela
sua nomeação, por iniciativa do partido, desde 1918, em alguns casos.
Esta lógica desemboca, então, na supressão do pluralismo político e das
liberdades de opinião necessárias à vida democrática, assim como a
subordinação sistemática do direito à força.
A engrenagem é tanto mais implacável
quanto a burocracia não procede somente ou principalmente de uma
manipulação das altas esferas. Ela responde também, às vezes, a uma
espécie de demanda das bases, a uma necessidade de ordem e de
tranqüilidade dos cansaços da guerra e da guerra civil, das privações e
do desgaste que as controvérsias democráticas, a agitação política, a
demanda constante de responsabilidade provocam. Marc Ferro assinalou, em
seus livros, de forma pertinente, esta terrível dialética.
Ele lembra, assim, que existiam “duas vertentes – democrática-autoritária na base, centralista e autoritária na cúpula”, no começo da revolução, “enquanto que em 1939 há apenas uma”.
Mas, para ele, a questão é praticamente resolvida ao cabo de alguns
meses, a partir de 1918 ou 1919, com o definhamento ou o enquadramento
dos comitês de bairro e de fábrica (ver Marc Ferro, Les Soviets en Russie,
coleção Archives). Seguindo uma aproximação análoga, o filósofo
Phillipe Lacoue-Labarthe é ainda mais explícito declarando o bolchevismo
“contra-revolucionário a partir de 1920-1921”, isto é, antes de
Kronstadt (ver Revue Lignes n° 31, maio 1997).
O assunto é de maior importância. Não é
questão de opor, ponto por ponto, de maneira maniqueísta uma lenda do
“Leninismo sob Lênin” ao Leninismo sob Stálin, os anos 20 luminosos aos
sombrios anos 30, como se nada houvesse ainda começado a apodrecer no
país dos Soviets. É claro, a burocratização está quase imediatamente em
andamento; é claro, a atividade policial da Tcheka tem sua lógica
própria; é claro, o desterro político das ilhas Solovski está aberto
depois da guerra civil e antes da morte de Lênin; é claro, a pluralidade
dos partidos é suprimida de fato, a liberdade de expressão limitada, os
direitos democráticos no próprio partido são restringidos a partir do
10° Congresso de 1921. O processo daquilo que chamamos contra-revolução
burocrática não é um acontecimento simples, datável, simétrico da
insurreição de Outubro. Ele não é feito num dia. Ele passou por
escolhas, enfrentamentos, acontecimentos. Os próprios atores não pararam
de debater sobre a periodização, não pelo gosto da precisão histórica,
mas para tentar deduzir as tarefas políticas. Testemunhas como
Rosmer, Eastman, Souvarine, Istrati, Benjamin, Zamiatini e Bulgakov (nas
suas cartas à Stalin), a poesia de Maiakovski, os tormentos de
Mandelstam ou de Tsvetaieva, os cadernos de Babel etc., podem contribuir
a esclarecer as múltiplas facetas do fenômeno, seu desenvolvimento, sua
progressão.
Mas isso não reduz o contraste, a
descontinuidade irredutível, na política interna como na política
internacional, entre o começo dos anos 20 e os terríveis anos 30. Nós
não contestamos que as tendências autoritárias tenham começado a
impor-se bem antes, que obcecados pelo “inimigo principal” (bem real na
verdade) da agressão imperialista e a restauração capitalista, os
dirigentes bolcheviquestenham começado a ignorar ou subestimar “o
inimigo secundário”, a burocracia que os minava internamente e que acaba
por devorá-los. Este roteiro era inédito na época, difícil de imaginar,
foi preciso tempo para compreendê-lo e interpretá-lo, para tirar as
conseqüências. Assim, se Lenin sem dúvida melhor compreendeu o sinal de
alarme que significou a crise do Kronstadt, a ponto de impulsionar uma
profunda reorientação política, é apenas bem mais tarde, na Revolução Traída,
que Trótski chegará a fundar um principio de pluralismo político sobre a
heterogeneidade do próprio proletariado, inclusive após a tomada do
poder.
A maioria dos grandes testemunhos e dos estudos sobre a União Soviética ou sobre o próprio Partido bolchevique (ver Moscou sous Lenine de Rosmer, O Leninismo sob Lênin de Marcel Liebrnan, L’historie du Parti bolchevik de Pierre Broué, Staline de Souvarine e
o do Trótski, os trabalhos de L. H. Carr, de Tony Cliff, de Moshe
Lewin, de David Rousset) não permitem ignorar, na estreita dialética da
ruptura e da continuidade, a grande virada dos anos 30. A ruptura ganha
de longe, atestada pelos milhões e milhões de mortos de fome, os
deportados, as vítimas dos processos e dos expurgos. Foi preciso
desencadear tal violência para chegar ao “congressos dos vencedores” de
1934 e a consolidação do poder burocrático porque a herança
revolucionária deveria ser tenaz e não foi facilmente superada
Isto é o que chamamos uma
contra-revolução, tão massiva, tão visível, tão esmagadora como as
medidas autoritárias, por inquietantes que fossem, tomadas no calor da
guerra civil. Esta contra-revolução faz igualmente sentir seus efeitos
em todos os domínios, naquele da economia política (coletivização
forçada e desenvolvimento em grande escala do Gulag), da
política internacional (na China, na Alemanha, na Espanha), da própria
política cultural ou da vida quotidiana, com aquilo que Trótski chamou “thermidor no lar”.
Revolução “prematura”
Após a queda da União Soviética uma tese
readquiriu vigor entre os defensores do marxismo, especialmente nos
países anglo-saxônicos (ver as teses de Gerry Cohen): aquela segundo a
qual a revolução teria sido desde o começo uma aventura condenada porque
prematura. Na realidade, esta tese tem sua origem muito cedo no
discurso dos próprios mencheviques russos e nas analises de Kautsky,
desde 1921: muito sangue, lágrimas e ruínas, escreveu ele, então, teriam
sido poupados “se os bolcheviques tivessem tido o senso menchevique da
auto-limitação àquilo que é acessível, onde se revela o mestre” (Vonder Demokratie zur statssklaverei, 1921, citado por Radek em Les voies de la Révolution russe, EDI, p. 41).
A fórmula é impressionantemente
reveladora. Eis alguém que polemiza contra a idéia de um partido de
vanguarda mas imagina em troca um partido-mestre, educador e pedagogo,
capaz de regular à sua vontade a marcha e ritmo da história. Como se as
lutas e as revoluções não tivessem também sua lógica própria. Ao querer
auto-limitá-las tenta-se passar para o lado da ordem estabelecida. Não
se trata mais então “de auto-limitar” os objetivos do partido, mas
simplesmente de limitar as aspirações das massas. Nesse sentido,
os Eberte os Noske, assassinando Rosa Luxemburgo e esmagando os sovietes
da Baviera se tornaram ilustres como virtuoses da “auto-limitação”.
Na verdade, o raciocínio conduz de
maneira inelutável à idéia uma história bem ordenada, regrada, como um
relógio, onde tudo tem a sua hora, no tempo exato. Ele recai nas
planícies de um estrito determinismo histórico tão seguidamente
censurado nos marxistas onde a situação da infra-estrutura determina de
maneira estreita a superestrutura correspondente. Ele elimina
simplesmente o fato de que a história não tem a força de um destino, é
cheia de acontecimentos que abrem uma série de possibilidades, nem todas
garantidas. Trata-se mais de um horizonte determinado de
possibilidades. Seus próprios atores pensaram a Revolução Russa não como
uma aventura solitária, mas como primeiro elemento de uma revolução
européia e mundial. Os Fracassos da Revolução Alemã ou da Guerra Civil
Espanhola, os desdobramentos da Revolução Chinesa, a vitória do fascismo
na Itália e na Alemanha não estavam escritos de antemão.
Falar nesse caso de revolução prematura
significa um retorno a enunciar um julgamento de tribunal histórico, em
vez de se colocar do ponto de vista da lógica interna do conflito e das
políticas que se defrontam. Deste ponto de vista, as derrotas não são
provas de erro ou de falhas, da mesma forma que as vitórias não são
prova da verdade. Porque não há julgamento final. O que importa é o que
foi traçado passo a passo na ocasião de cada grande escolha de cada
grande bifurcação (a NEP, a coletivização forçada, o pacto
germano-soviético, a guerra civil espanhola, a vitória do nazismo), a
pista de uma outra história possível. É o que preserva a
inteligibilidade do passado e permite tirar lições para o futuro.
Haveria, certamente, outros aspectos para
discutir por ocasião deste aniversário. Nós estamos satisfeitos com
“três questões de Outubro” hoje cruciais no debate. Mas o capitulo das
“lições de Outubro” de um ponto de vista estratégico (crise
revolucionária; dualidade de poder; relações entre partidos, massas e
instituições; questões da economia de transição), de sua atualidade e de
seus limites, é evidentemente tarefa decisiva. Isto conduz, também,
contra “diabolizar” quem pretende responsabilizar a revolução por todas
as misérias do século, a precisar que a União Soviética é certamente o
país que, em três décadas viu o maior número de mortes violentas
concentradas num território limitado, mas que não se pode sem mais nem
menos, imputar à revolução as dezenas de milhões de mortes (os
historiadores discutem a cifra hoje em dia), aqueles da Primeira Guerra
Mundial, da intervenção estrangeira, da guerra civil ou da Segunda
Guerra Mundial. Assim como, no bicentenário da Revolução Francesa era
impossível imputar à Revolução os sofrimentos causados pela intervenção
das monarquias ou das guerras napoleônicas.
Talvez nestes tempos de restauração seja
proveitoso, para terminar, lembrar estas soberbas linhas célebres
de Kant, escritas em 1795, em plena reação termidoriana:
“Um tal fenômeno na história da humanidade não se esquece mais porque ele revelou na natureza humana uma disposição, uma faculdade de progresso tal que não seria possível com uma política de sutileza, separando-a do curso anterior dos acontecimentos somente na natureza da liberdade reunidas na espécie humana segundo os princípios internos do direito na medida da aparência, ainda que quanto ao tempo de uma maneira indeterminada e como acontecimento contigente. Mas mesmo se o objetivo visado por este acontecimento não foi ainda hoje atingido, mesmo quando a revolução ou a reforma da constituição do povo fosse finalmente fracassada, ou tivesse se passado um lapso de tempo, tudo recaísse no estado de coisas anterior (como a manutenção de certas políticas), esta profecia filosófica não perde nem um pouco de sua força. Porque este acontecimento é muito importante, muito ligado aos interesses da humanidade e de uma influência imensa sobre todas as partes do mundo para não se tornar mera memória nos papéis na ocasião de circunstâncias favoráveis e relembrar quando da retomada de novas tentativas deste gênero”.
Ninguém poderá conseguir que os dez dias que abalaram o mundo sejam apagados.
* Este
artigo foi publicado originalmente em francês na revista Imprecor n.
418, em novembro de 1997, por ocasião do 80° aniversário da Revolução
Russa. A tradução. de Maria Regina Pilla e Luis Pilla Vares para
os Cadernos Em Tempo nº 298 (novembro 1997), é recuperada aqui para o
dossiê temático em homenagem ao centenário da Revolução Russa, no Blog
da Boitempo.
***
A Boitempo lança em setembro, durante o no Seminário Internacional “1917: o ano que abalou o mundo”, o explosivo Centelhas: marxismo e revolução no século XXI, livro de ensaios de Daniel Bensaïd e Michael Löwy organizado por José Correia Leite.
Saiba mais sobre o evento, e leia outros textos sobre a história e o
legado da Revolução Russa no dossiê temático do Blog da Boitempo:O dossiê especial “1917: o ano que abalou o mundo“, reúne reflexões de alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos nacionais e internacionais sobre a história e o legado da Revolução Russa. Aqui você encontra artigos, ensaios, reflexões, resenhas e vídeos de nomes como Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Löwy, Christian Laval, Pierre Dardot, Domenico Losurdo, Mauro Iasi, Luis Felipe Miguel, Juliana Borges, Wendy Goldmann, Rosane Borges, José Paulo Netto, Flávio Aguiar, Mouzar Benedito, Ruy Braga, Edson Teles, Lincoln Secco, Luiz Bernardo Pericás, Gilberto Maringoni, Alysson Mascaro, Todd Chretien, Kevin Murphy, Yurii Colombo, Álvaro Bianchi, Daniela Mussi, Eric Blanc, Lars T. Lih, Megan Trudell, Brendan McGeever, entre outros. Além de indicações de livros e eventos ligados ao centenário.
***
Daniel Bensaïd
nasceu em Toulouse, na França, em 1946. Foi filósofo e dirigente da
Liga Comunista Revolucionária, e um dos militantes mais destacados dos
movimentos de Maio de 1968. Professor de Filosofia da Universidade de
Paris VIII, faleceu no dia 12 de janeiro de 2010, aos 64 anos. Pela
Boitempo, lançou Os irredutíveis: teoremas de resistênica para o tempo presente (2008), Marx, manual de instruções (2013), seu último livro escrito em vida, e, junto com Michael Löwy, o mais recente Centelhas: marxismo e revolução no século XXI, organizado por José Correia Leite.
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