Armando
de Castro é uma figura de cidadão, intelectual e ser humano exemplar, e
de homens e mulheres exemplares se faz não apenas a memória do passado,
mas também a sementeira do futuro.
Sessão de homenagem a Armando de Castro. Intervenção do homenageado.CréditosFonte: Avante!
A
geração de intelectuais que fizeram vinte anos nos anos trinta do
século XX, influenciada pela revolução soviética e entusiasmada pelo
marxismo, formou uma plêiade de quadros revolucionários que aliaram a
distinção nas ciências e nas artes à acção cívica consequente, com a
qual contribuíram para o fim da ditadura fascista e, após o derrube da
mesma, para a construção do regime democrático do Portugal de Abril.
De
um desses intelectuais, que não apenas se distinguiu perante os seus
contemporâneos como deixou uma profunda marca, tanto nas novas gerações
que ainda puderam conhecê-lo como nas novíssimas que o vieram a estudar
mais tarde, celebra-se neste mês de Julho de 2018 o centenário do seu
nascimento: Armando Fernandes de Morais e Castro.
Uma vida
Nascido
a 18 de Julho de 1918 e falecido em 1999, a 16 de Junho, Armando de
Castro (como ficou conhecido na vida política e académica), advogado,
economista, historiador, investigador, e professor universitário, foi um
intelectual prestigiado, humanista de vasta cultura e um destacado
oposicionista portuense.
Licenciou-se em Ciências Jurídicas (1941)
e em Ciências Político-Económicas (1942) pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. Após terminar a primeira licenciatura já
integrava, como bolseiro do Instituto para a Alta Cultura, o centro de
investigação económica da Universidade de Coimbra. Porém, terminada a
bolsa, «viu-se compelido a regressar ao Porto para durante décadas
exercer a advocacia e o publicismo como modo de sobrevivência e como
suporte da actividade que constituiu a sua verdadeira vocação e paixão: a
investigação científica»1.
Em 1965, a Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu à sua obra o Grande Prémio Nacional de Ensaio.
Por
razões exclusivamente políticas viu-se impedido de prosseguir a
carreira académica, pelo que se viu obrigado a exercer a advocacia até à
queda da ditadura ocorrida na Revolução dos Cravos.
«Advogar
nas condições trágicas que era ter sempre o mínimo de trabalho possível
para poder continuar as minhas investigações. Às vezes descia abaixo
desse mínimo e tinha problemas de subsistência económica. Isto foi assim
durante mais de trinta anos. Às vezes não tinha dinheiro para pagar a
renda da casa. Quando tinha mais um bocado que fazer vivia amargurado,
porque não tinha tempo para os meus trabalhos»
Armando de Castro
A
partir de 1974 foi professor da Faculdade de Economia da Universidade
do Porto, presidindo ao Conselho Directivo dessa instituição até ao
limite de idade, em 1988.
Os seus estudos históricos e económicos
dedicaram-se à compreensão da realidade portuguesa e ao contexto
internacional da mesma, apesar de durante muitos anos lhe ter sido
vedado o acesso às bibliotecas das faculdades.
Armando de Castro
dedicou-se à Economia Política (teórica e aplicada), à História do
Pensamento Económico, à Epistemologia e Gnoseologia. No que diz respeito
à Economia Política dedicou-se aos seus fundamentos teóricos, tratando
de assuntos como a teoria do valor e a inflação.
De uma casa na resistência à resistência na praça pública
Armando
de Castro cresceu numa família de resistentes, qualquer deles a merecer
lembrança e biografia. O pai, Amílcar de Castro (n. 1896), foi um
denodado oposicionista ao regime fascista, preso onze vezes durante a
ditadura. A mãe, Irene de Castro (1895 – 1975)2,
foi uma das dirigentes da Associação Feminina Portuguesa para a Paz e
sua última presidente. Seu irmão Raul de Castro (1921 – 2004), advogado,
foi defensor de presos políticos e também ele uma figura grada da
oposição democrática no Porto.
Irene de Castro, mãe de Armando de Castro.CréditosFonte: Antifascistas na Resistência /
A
adolescência de Armando de Castro faz-se no período violento de
implantação do fascismo em Portugal, o qual tem impacto no seu núcleo
familiar. Em conferência proferida na Universidade Popular do Porto, em
1983, num ciclo comemorativo do centenário da morte de Karl Marx3
o autor recorda «um movimento popular contra a ditadura» no Porto, no
dia 1.º de Maio de 1931, em que se empenhou seu pai, «antifascista
tenaz». Armando de Castro tinha apenas 13 anos mas, poucos anos
decorridos, «em meados dos anos 30», então aluno do Liceu Rodrigues de
Freitas, já conhece a «feroz repressão» do regime, ao integrar os
«estudantes democratas e antifascistas» que lutam «contra a proibição
das associações académicas com direcções livremente eleitas», luta que
continuou a «acompanhar activamente no primeiro ano universitário de
Coimbra, em 1936-1937».
É «por volta de 1937», reconhece, que
adere ao Partido Comunista Português, «pela mão do indefectível
combatente que foi José Augusto da Silva Martins». Estava perto de fazer
vinte anos e bem poderiam aplicar-se-lhe as radicais palavras de
revolta, escritas nos anos 30 pelo jovem escritor Paul Nizan e que
viriam a ser retomadas pela geração de 1968: «Tinha vinte anos. Não
deixaria ninguém dizer que eram os melhores anos da vida»4.
Anos de universidade, anos de formação política
Armando de Castro participa nos «esforços no sentido de expressão legal do pensamento marxista», sobretudo através do jornal O Diabo e das revistas Sol Nascente, Pensamento (até 1940) e Vértice
(a partir de 1942), tribunas dessa e de «outras formações doutrinais e
ideológicas», tendo como adversário comum «o obscurantismo fascista». É
um dos obreiros desse «salto qualitativo no que respeita à presença do
pensamento marxista em Portugal» que, «desde cerca de 1939-1940», ainda
que «muitíssimo limitado, por condições diversas, de que sobressai
naturalmente a repressão fascista» irá dar lugar às «primeiras
manifestações de criação estética a que não é alheia a visão marxista do
mundo» e favorecer «uma produção intelectual original guiada pelo
pensamento marxista»5.
Note-se
que isto se passa no contexto difícil da aparentemente vitoriosa
caminhada nazi para o seu ambicionado domínio do mundo. Na União
Soviética, apesar de os exércitos alemães defrontarem uma resistência
como não tinham encontrado antes, a mancha da «peste castanha» alastra
no mapa, sitia completamente Leninegrado, para às portas de Moscovo mas
prossegue a partir da Ucrânia para o norte do Cáucaso e em direcção a
Estalinegrado, nas margens do Volga. Por toda a Europa os regimes
fascistas e os gauleiters nos países ocupados redobram a opressão para
dobrar a cerviz dos povos. Portugal não é diferente e aqueles que nesses
tempos sombrios lançam as mãos à obra da resistência sabem os riscos
que correm.
Armando de Castro, s/data.CréditosFonte: arquivo jornal Avante! /
Para
ultrapassar a repressão contra a cultura, cujo primeiro patamar é o
gabinete do censor e o seguinte os cárceres do regime e a tortura, os
autores têm de utilizar pseudónimos. Entre 1940 e 1946 Armando de Castro
utilizou «pelo menos uns cinco» – mas foram mais, estes são aqueles que
conseguiu recordar, em tempos de repressão não se anotam pseudónimos em
papéis para memória futura: foi Bruno de Morais nas revistas Pensamento e Regeneração e em O Comércio da Póvoa de Varzim; Pedro Araújo n’O Diabo e na Tribuna Literária; Evaristo Nunes no suplemento Margem; Vasco Sampaio na revista Síntese e Afonso Neves de Jesus na Via Latina.
A derrota do fascismo em 1945 e a explosão do movimento democrático
colocam o fascismo português à defesa. O recurso a pseudónimos foi
abandonado – ou quase: o autor teve pelo menos que recorrer a «esta
ocultação intelectual num texto acerca das relações entre salários e
preços publicado na revista Vértice em Janeiro de 1947 (Álvaro da Costa Júnior)».6. Parafraseando
o título de um autor estimado pela geração revolucionária dos anos 30,
Nikolai Ostrovsky, «assim foi temperado o aço».
Uma vocação de investigador contrariada pelo fascismo luso
A
bolsa, que já referimos, atribuída a Armando de Castro para integrar –
mesmo antes de concluir a licenciatura em Ciências Político-Económicas –
o centro de investigação económica dirigido pelo Professor Teixeira
Ribeiro (seu antigo professor de Economia), indicia o apreço em que o
jovem investigador era tido e o futuro brilhante que lhe estava
reservado como académico.
Tal não veio a acontecer. Em 1943
«viu-se compelido a regressar ao Porto para durante décadas exercer a
advocacia e o publicismo como modo de sobrevivência e como suporte da
actividade que constituiu a sua verdadeira vocação e paixão: a
investigação científica»7.
Apenas
no fim do regime teve, episodicamente, a possibilidade de leccionar no
ensino universitário oficial. Foi entre 1970 e 1973, quando regeu a
disciplina de Introdução às Ciências Humanas no Instituto Superior de
Psicologia Aplicada mas acabou por ser vetado pela PIDE, através de um
«parecer desfavorável» face ao currículo e programa das cadeiras.
O seu esforço de investigação foi conduzido «em condições inenarráveis»8.
Em carta de 1987 dirigida ao Reitor da Universidade do Porto dá conta,
em termos pungentes, do seu sofrimento e dilema: «só tinha uma solução
profissional, que era advogar. Advogar nas condições trágicas que era
ter sempre o mínimo de trabalho possível para poder continuar as minhas
investigações. Às vezes descia abaixo desse mínimo e tinha problemas de
subsistência económica. Isto foi assim durante mais de trinta anos. Às
vezes não tinha dinheiro para pagar a renda da casa. Quando tinha mais
um bocado que fazer vivia amargurado, porque não tinha tempo para os
meus trabalhos»9.
Trabalhou
longo tempo «em rigoroso auto-didactismo, sem suporte universitário e
com limitado acesso aos arquivos nacionais e às fontes bibliográficas
estrangeiras». Ainda assim, «produziu uma extensa e variada obra no
âmbito da economia, da história económica, da história do pensamento
económico e da epistemologia, com apreciável originalidade no plano da
construção teórica como no da investigação aplicada». Carlos Bastien,
que à obra de Armando de Castro dedicou a sua atenção, refere ainda:
«embora recebendo um importante estímulo da literatura marxista a que
foi tendo acesso irregular a partir do início dos anos 40 — terá sido um
dos raros economistas portugueses a ler O Capital nesses anos
—, revelou-se mais um pensador preocupado com a indagação do concreto
português que um exegeta ou divulgador de Marx10.
Em 1965 a Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu à sua obra o Grande Prémio Nacional de Ensaio.
Na oposição democrática, uma intervenção firme e constante
A
participação destacada na actividade da oposição democrática ao regime
fascista é uma constante da actividade cívica de Armando de Castro.
Desde os anos 40 participa no Movimento de Unidade Democrática e, nas
comemorações do 31 de Janeiro no Porto, em 1947, é violentamente
agredido pela polícia, juntamente com seu irmão, Raul de Castro11.
Subscreveu
os pedidos de admissão das candidaturas à Presidência da República de
Ruy Luís Gomes (1951) e de Arlindo Vicente (1958). Entre outros
documentos, subscreveu nos anos 60 diversos manifestos da Comissão
Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Em Maio de 1971 integrou em
Maio de 1971 a Comissão Nacional Contra a Censura e a Comissão Nacional
de Defesa da Liberdade de Expressão.
Participou e apresentou
comunicações nos três congressos da oposição democrática realizados em
1957, 1969 e 1973 na cidade de Aveiro, em todos tendo apresentado teses.
Em 1969 foi candidato pela Comissão Democrática Eleitoral (CDE) do Porto.
Como
advogado, defendeu nos Tribunais Plenários numerosos réus acusados de
crimes políticos, entre os quais Ruy Luís Gomes, Óscar Lopes e Agostinho
Neto, futuro presidente de Angola. Fez parte do grupo de destacados
advogados que enfrentou os tribunais fascistas na defesa de 52 jovens do
MUD Juvenil (1955/1957). Em Março de 1957, foi um dos 72 advogados de
Lisboa e do Porto que assinaram uma representação ao ministro da
Presidência pedindo um «inquérito à PIDE». Emitiu pareceres sobre a
Proposta de Revisão do Contrato Colectivo de Trabalho dos Metalúrgicos
em 1971 e sobre a Revisão do Contrato Colectivo dos Empregados Bancários
em 197312.
Uma vasta obra: brevíssimo apontamento
A vasta obra de Armando de Castro compreende largas dezenas de livros e centenas de artigos publicados sob o seu nome13, não cabendo aqui a sua referência na íntegra.
Cumpre
apenas assinalar, entre tantas, aquelas que são as suas obras mais
significativas, que permanecem marcos da produção científica e
intelectual em Portugal: A Evolução Económica em Portugal nos Séculos XII a XV, 1964-1970, nove volumes, seguido do 10.º Limiar, 1975, e do 11.º, Caminho, 1980; A Teoria do Conhecimento Científico,
obra projectada para 16 volumes, dos quais oito foram escritos e apenas
cinco publicados pela Limiar, Afrontamento e Instituto Piaget; Histórica Económica de Portugal (em 4 volumes), Editorial Caminho; Estudos de Economia Teórica e Aplicada, Seara Nova; A Revolução Industrial em Portugal no Século XIX, Edições 70.
Finalmente a liberdade: o professor e o cidadão
Armando
de Castro teve a felicidade de ver o derrube do fascismo e a chegada da
democracia. Com o 25 de Abril viu o seu trabalho reconhecido. Pode
então ingressar na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, tendo
sido convidado para professor e director da instituição «na sequência
de uma “Assembleia Magna com 2000 alunos e muitos professores e que, com
apenas 8 votos contra”, aprovou a decisão, a que se seguiu o processo
da sua nomeação para professor catedrático»14.
«Dedicou-se
intensamente ao ensino e à vida académica, empenhando-se na dinamização
do Grupo de Ciências Sociais da Faculdade, tendo proferido 14 anos
depois, em Outubro de 1988, a «oração de sapiência» sobre a A
Universidade, a explosão cientifico-tecnológica contemporânea e as
necessidades sociais, tema que hoje nos é apresentado como a última
modernidade do avanço da técnica e da ciência».
Armando de Castro intervém na conferência «Não ao Mercado Comum», 1980
Não
abrandou, porém, a sua intervenção cívica. Armando de Castro foi
candidato «em sucessivas eleições autárquicas, legislativas e ao
Parlamento Europeu», tendo participado em diversas iniciativas de
solidariedade Internacionalista, com o Povo do Chile (Setembro de 1974)
ou com os Povos de El Salvador, Nicarágua e Cuba (Outubro de 1982). Foi
eleito para a direcção do Sector Intelectual do Porto do PCP logo na
primeira Assembleia de Organização deste.
Em 1989 foi homenageado
pelo Sindicato de Professores do Norte, iniciativa a que se juntaram
alguns dos maiores intelectuais e individualidades portuguesas. Mesmo
quem não perfilhava das ideias e visão da sociedade e do projecto
transformador que defendia, não lhe deixavam de reconhecer os méritos de
investigador, professor e homem que cativava pela simplicidade e
sabedoria.15.
Nas
palavras do seu amigo Óscar Lopes, Armando de Castro «deixa, na
lembrança de quantos o conheceram, a imagem de um incomparável amigo,
sempre atento, sempre disponível, e tão incapaz da mera verrina de
endereço pessoalista, como discretamente irónico, e desprendido do valor
das suas próprias intervenções16
Uma justa homenagem, na sua cidade
O Porto assinala a passagem do centenário do nascimento de Armando de Castro com uma exposição, Armando de Castro - um legado que perdura, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, que aí permanecerá até 14 de Agosto de 2018.
No passado sábado, 14 de Julho, uma sessão evocativa, contando com um
momento cultural pelo trio Música com Paredes de Vidro (Fausto Neves,
Hugo Brito e Manuel Pires da Rocha)17,
marcou a abertura da exposição. Nada mais natural, no ano em que se
celebra o bicentenário de Marx, que celebrar um dos destacados
investigadores marxistas do século XX português – «profundo conhecedor
do marxismo», diz dele Carlos Pimenta18.
Mas,
sobretudo, nada mais natural porque Armando de Castro é uma figura de
cidadão, intelectual e ser humano exemplar, e porque de homens e
mulheres exemplares se faz não apenas a memória do passado, mas também a
sementeira do futuro.
3. Armando de Castro. «Para a história do pensamento marxista em Portugal». O texto viria a ser publicado em O marxismo no limiar do ano 2000, Editorial Caminho, 1985. Encontra-se em linha no sítio da revista electrónica Comuneiro.
4. «J'avais vingt ans. Je ne laisserai personne dire que c'est le plus bel âge de la vie». Paul Nizan, Aden-Arabie, Éditions Rieder, 1931. A primeira publicação da obra foi na revista Europe, 93-94-95, respectivamente de 15 de Setembro, 15 de Outubro e 15 de Novembro de 1930. O texto original pode ser acedido aqui.
8. José Madureira Pinto, «Armando de Castro – Uma obra inesgotável», Diagonal, Sector Intelectual do Porto do PCP, Julho de 1997, nº2. Apud Daniel Vieira, «Armando de Castro (1918-2018)», em Avante!, 12 de Julho de 2018
9. Armando Fernandes de Morais e Castro. Carta ao Reitor da Universidade do Porto. Porto, 1987. Arquivo da DORP do PCP. Apud Daniel Vieira,ibidem.
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