Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista
"No coração do capitalismo mundial está se desenvolvendo não apenas uma crise gigantesca graças ao patamar de endividamento alcançado, mas também um incalculável crash imobiliário e acionário. A crise que se avizinha deve ser uma espécie de síntese monstruosa de todos os grandes colapsos da história."
Por Maurilio Lima Botelho.
Nas últimas semanas, um alarme soou entre
os “mercados emergentes”: suas moedas sofreram uma súbita
desvalorização frente ao dólar. Os especialistas à disposição
rapidamente tentaram explicar o fenômeno por meio de um suposto
“aquecimento” da economia norte-americana e de uma crescente divergência
entre as taxas de juros. A dimensão mais profunda dessa instabilidade
monetária – o endividamento generalizado em todo o mundo – esteve longe
de qualquer problematização, e reduziu-se tudo apenas à protocolar
administração econômica das catástrofes sociais. Com essa cegueira
diante do óbvio, é preciso insistir com uma reflexão sobre a relação
entre esses eventos e o horizonte mais amplo de crise do capitalismo.
A paisagem econômica mundial está tomada
por montanhas de dívidas. O nível superou recordes históricos porque a
própria economia está, há décadas, amparada em um endividamento
sistemático. Mas agora o acúmulo de tensões impõe limites à continuidade
dessa dinâmica, o que deve levar a uma dramática ruptura.
Até o momento tudo, foi parte da lógica
do capitalismo de crise. Quando a superacumulação de capital deixou de
ser cíclica e se tornou crônica, as transformações da microeletrônica
levaram a uma reorganização dos processos produtivos sem a inovação
correspondente dos produtos e a produção se ampliou de modo autônomo
diante do emprego de força de trabalho, o crédito farto tornou-se uma
necessidade essencial. Desemprego estrutural e excesso de mercadorias em
quase todos os setores representaram mercados em contração. Mas a
economia capitalista, como se sabe, só funciona num sentido inverso: é
preciso vender cada vez mais mercadorias para que o fogo do capital
nunca se apague. Essa evidente sinuca-de-bico só pôde ser resolvida por
meio do crédito. Para enfrentar o poder de compra em declínio,
mercadorias sobrando nas prateleiras ou depósitos e gastos cada vez
maiores com a infraestrutura produtiva, foi preciso multiplicar o
dinheiro em circulação.
A era do capitalismo de crise é também a
era do crédito abundante. O aparente contrassenso é na verdade o
corolário lógico de uma sociedade ilógica. Com o capitalismo altamente
desenvolvido, quanto mais mercadorias inundam os mercados, menos
trabalho é utilizado para produzi-las e menor é a possibilidade,
portanto, de serem adquiridas.1 Por isso, quanto mais
limitada for a capacidade de consumo mundial, mais é preciso elevar a
circulação de dinheiro pelo sistema para simular esse poder de aquisição
ausente. Isso só é difícil de compreender para aqueles que insistem em
tomar a riqueza capitalista imediatamente como a disponibilidade de
recursos monetários. Desse ângulo obtuso, até “até uma acumulação de
dívidas pode aparecer como acumulação de capital”.2
Sem dúvida que, de um ponto de vista isolado e completamente individualizado, a riqueza pode ser expressa imediatamente
como a disponibilidade de dinheiro. Entretanto, assim como todo ato de
compra é mero contraponto de uma venda, todo o mecanismo de circulação
de dinheiro está entrelaçado a um processo global de produção e
circulação de mercadorias, entre elas a dessa mercadoria especial, o
dinheiro. Para ser compreendido em sua forma social, de um ponto de
vista mediado, o dinheiro não pode ser dissociado dos processos de produção de mercadorias.
O dinheiro podia representar, de modo
individual, uma parte da riqueza socialmente produzida porque guardava
em seu corpo uma parte dessa substância formal do “modo de produção” – o
valor. A riqueza estava sintetizada na mercadoria-dinheiro disponível.
Embora seu uso pudesse ser impulsionado e mediar a circulação de várias
mercadorias (aceleração da rotação), sempre existiu alguma proporção
entre a riqueza efetivamente produzida e a massa monetária disponível,
ainda que não fosse idêntica e direta.
Com a ampliação vertiginosa da
produtividade, a gigantesca estrutura produtiva desenvolvida no
pós-guerra e a oferta mundial de mercadorias originadas de centenas de
países, a própria capacidade monetária de espelhar a riqueza social foi
perdida. O antigo vínculo que mantinha o dinheiro preso ao mundo das
mercadorias foi rompido e as formas monetárias se desvincularam de seus
lastros “metálicos”. O fim do padrão dólar-ouro foi o resultado de uma
sociedade que, por assim dizer, tornou-se tão rica que não podia mais
exprimir toda essa abundância em uma única mercadoria padrão. O mundo
inundado de riquezas não era mais capaz de passar pelo buraco de agulha
do dinheiro ainda ancorado no mundo das mercadorias. Nenhum padrão
monetário, por mais amplo que fosse, seria capaz de espelhar a riqueza
desenvolvida pela interação global das cadeias produtivas.
O rompimento do padrão dólar-ouro,
imposto unilateralmente pelos EUA no início da década de 1970, não foi
por isso um arbítrio “imperialista” que buscava “enquadrar” o resto do
mundo em sua dinâmica financeira, como quer uma certa interpretação
conspiratória sobre o sistema financeiro. É verdade que o resultado
desse ato foi a manutenção de uma dinâmica monetária que manteve o dólar
como moeda hegemônica, portanto, aprofundou a sujeição mundial às
variações automáticas ou políticas dessa moeda – nas cínicas palavras de
Milton Friedman, os “EUA devem afirmar que um dólar vale um dólar; os
outros países, se quiserem, determinarão o valor do dólar na sua própria
moeda”.3 A atitude yankee foi uma necessidade
estrutural que revelava que no capitalismo, tal como numa figuração
hegeliana, o ponto mais elevado de desenvolvimento correspondia ao
início de sua decadência.
A elevada produtividade alcançada tornava
o processo de produção, como dito, gradativamente autônomo diante dos
processos de trabalho e o processo produtivo sintetizava cada vez menos
valor nas mercadorias. Com isso era rompida a própria relação entre a
substância social da riqueza, o valor, e a representação dessa riqueza
na superfície do mercado, o dinheiro. O capitalismo tornou-se vítima de
seu próprio sucesso: um mundo abundante em mercadorias tornava-se cada
vez menos capaz de se reproduzir em termos ampliados, pois sua
substância essencial escasseava.
Entretanto, tal como um acidentado que
não consegue mais andar sem muletas, mesmo recuperado, a sociedade
amparada no mercado, reificada pela mercadoria, toma como imperativa a
continuidade de um sistema que já não se justifica mais. Por isso passou
a criar dinheiro independente do fundamento substancial que lhe
sustentava. Um mundo com cada vez menos valor tornou-se, paradoxalmente,
um mundo com muito mais dinheiro. O capital fictício, uma forma até
então utilizada em momentos específicos da dinâmica econômica para obter
atalhos em investimentos de longo prazo, servir de amparo às
necessidades infraestruturais (deficit spending) ou como
mecanismo especulativo no auge de um ciclo econômico, tornou-se agora
parte essencial da dinâmica econômica. Já não era mais uma forma
derivada, autonomizada e secundária do capital: o capitalismo de crise
passou a produzir capital fictício como um marca-passo da reprodução
econômica, que deixou de ser pautada na acumulação de capital (com
fundamentos na valorização) e passou a se guiar pela acumulação
monetária (capitalização).
Com o fim do padrão dólar-ouro, o sistema
de crédito se aprimorou em todos os níveis. Desde as formas estatais de
endividamento (títulos soberanos), passando pelo mercado de ações e
obrigações (com sua rede de derivativos cambiais e mercados
secundários), até chegar às várias formas de financiamento ao cidadão
comum, o mundo assenta-se, há cerca de meio século, numa complexa teia
de crédito sistemático, dívidas, obrigações e alavancagem. O capital
fictício ergueu um pouco mais o mundo através da multiplicação
desavergonhada de dinheiro sem fundamento e a mobilização de mercadorias
por esses recursos simulados criou a impressão – amparada no
materialismo vulgar de nossa sociedade – de que tudo ainda funcionava.
Robert Kurz, num texto de 1986, só agora
publicado no Brasil, apresentou pela primeira vez uma teoria sistemática
da crise estrutural do capitalismo, restabelecendo o nexo essencial
entre teoria do valor e teoria monetária para apontar a
dessubstancialização da moeda:
“O último cordão
umbilical com o padrão-ouro foi cortado no início dos anos 1970 com o
abandono do sistema de Bretton Woods, ou seja, também o dólar, como
dinheiro-mundial, foi finalmente dissociado do padrão-ouro. Mas isso não
significa senão a sucessiva superação do dinheiro como mercadoria,
pois a massa de papel dinheiro emitida sem cobertura em ouro não possui
mais realmente qualquer substância de valor, com exceção de uma
negligenciável quantidade de trabalho em relação ao papel-dinheiro
criado. Isso se aplica universalmente ao papel-dinheiro e, portanto,
também ao dinheiro que existe apenas de forma puramente contábil, em
especial para a criação de dinheiro do nada, de um modo fantástico e
puramente jurídico, como os ‘direitos de saque especiais’, que podem
circular apenas entre os bancos centrais. Todavia, o desaparecimento da
substância do valor do dinheiro reflete apenas a tendência ao completo
desaparecimento do valor, isto é, o fato de que a produção material
ultrapassou os limites do valor.”4
Exatamente por isso, um mundo de riqueza
material abundante, determinado por uma medida de riqueza substancial
cada vez mais estreita (valor), teve que passar a pautar a circulação
dos bens e serviços por uma representação fictícia da riqueza social.
Numa configuração dessa, quando a própria moeda já não tem nada que lhe
sustente, toda dívida representa ela mesma uma forma monetária. Um
complexo aparato de “mercadorias de segunda ordem” (Ernst Lohoff) se
ergueu ao lado da mera multiplicação das moedas correntes, ampliando
ainda mais a ilusão da riqueza: hoje se mede um banco não pela
quantidade de depósitos que detém, mas pelas obrigações que possui de
terceiros na forma de títulos, promessas de pagamento etc.5
Assim ocorreu em 2007. A crise do subprime alastrou-se como incêndio em campo seco porque a riqueza financeira estava baseada em obrigações de pagamentos futuros (CDOs – Collateralized Debt Obligations)
adquiridas no mercado secundário de hipotecas. Os ativos eram, em
realidade, passivos. As dívidas eram tomadas como capital. Mero crédito
simulado era sinônimo de riqueza. E tudo, no estômago da circulação,
podia ser convertido em moeda e parecer, temporariamente, como riqueza
disponível ao consumo ou ao investimento. Até mesmo a periferia do
capitalismo, que segundo alguns sofre com “escassez de capital”, foi
inundada por liquidez, o que estimulou o crédito e pôde simular uma
integração social via consumo (o lulismo foi parte integrante dessa
conjuntura forrada por capital fictício).6 Quando explodiu a crise do subprime,
primeiro vieram abaixo as economias centrais, no momento imediato após a
bolha imobiliária arrebentar; depois, as economias periféricas, quando a
bolha das commodities também esvaziou.
Dez anos depois, a imprensa, os
economistas e os políticos, principalmente no centro do capitalismo,
acreditam numa recuperação dos EUA, o que explicaria a fuga de
investimentos principalmente para o dólar. Mas não é possível confiar
nisso. A superação da crise financeira de 2007/2008 foi obtida apenas
através de uma ampliação ainda mais violenta de capital fictício em toda
economia capitalista. O encolhimento de liquidez em determinados
mercados ou a contração de crédito em uma parte do planeta,
imediatamente após o colapso dos mercados financeiros, foram compensados
largamente pela aceleração do endividamento em todo o resto do mundo e
mesmo pela multiplicação das dívidas pré-existentes, apesar do
rebaixamento generalizado das taxas de juros na última década – com a
inédita temporada de juros reais negativos que serviu para alastrar
ainda mais dinheiro barato por vários setores econômicos. Um
levantamento recente publicado pela Bloomberg indica um
endividamento total correspondente a 317 % do PIB mundial em 2017, algo
em torno de 237 trilhões de dólares, um crescimento de 40 % em dez anos.7
O ponto mais débil dessa estrutura
mundial de endividamento sistemático está, evidentemente, nos “mercados
emergentes”. O México, de 2007 a 2014, ampliou seu endividamento total
em cerca de 30%. A África do Sul ampliou sua dívida em 19%, a Turquia em
28%, o Chile em 35%.8 A Argentina, que tinha reduzido seu
endividamento público com o casal Kirchner por meio de moratórias e
troca de empréstimos de altos juros por juros baixos, ampliou
freneticamente os empréstimos com Macri: aumentou em 20% a dívida
pública nacional, principalmente em dólar, o que deixa o país
vulnerável.9 Há poucas semanas, um acordo com o FMI de mais
50 bilhões de dólares foi anunciado para cobrir as despesas do Estado.
No geral, as dívidas públicas e privadas dos países periféricos estão
mais elevadas do que em qualquer momento anterior, superando em muito o
momento crítico da “década de perdida” na proporção com o PIB.
No cume de todo o processo entre os
“países emergentes” está a China, responsável, segundo o FMI, por 40% do
endividamento mundial no período 2007/2014. Tentando contornar o
colapso do mercado consumidor norte-americano após a crise do subprime,
o “colosso” oriental iniciou um pesado investimento em infraestrutura
que ampliou em 85% as dívidas totais do país nesse período. Esse
gigantesco conjunto de obras, que alcançou um recorde de investimentos
de quase 50 % do PIB em 2012,10 pôde, assim como o crédito
farto injetado no mercado financeiro mundial, puxar temporariamente
outras economias nacionais emergentes.
Aqui se encontra uma das causas da
recente corrida ao dólar. Quando as taxas de juros estavam baixíssimas
ou até mesmo negativas, as economias periféricas se endividaram de modo
inconsequente, muitas vezes baseadas numa teoria desenvolvimentista
requentada, esperando que as infraestruturas criadas pudessem compensar
as dívidas contraídas (até então baratas). A maior parte desse
investimento foi muito mais voltada aos setores exportadores do que
propriamente à criação de mercado interno ou à produção industrial
substancial – o que, evidentemente, apesar de todas as aspirações
keynesianas e da esquerda, já não fazia sentido frente ao “crescimento
sem emprego” (jobless growth) da tecnologia avançada ou pela
inútil tentativa de concorrer com baratos produtos industrializados
exportados por China, Índia, Coreia etc. Assim, mesmo os menos iludidos
com o “neodesenvolvimentismo” e suas ideológicas variações confiavam que
os empréstimos poderiam ser saldados com os preços crescentes das commodities
exportadas, principalmente tendo por destino a China. Muitos
investidores e bancos dos países centrais confiaram nessa perspectiva e
começaram a investir em economias frágeis que estavam exportando
recursos naturais com “termos de troca apreciados” – até o chamado
“renascimento africano” foi fruto ilusório dessa maré de liquidez e
integração comercial com a China.11
A queda dos preços internacionais com a
desaceleração chinesa, nos últimos cinco anos, lançou todo o resto do
mundo, que parecia imune à “marola” de 2007/2008, na lona: a crise
atingiu em cheio a periferia do capitalismo e os países exportadores de commodities.
A possibilidade de saldar as dívidas contraídas ficou cada vez mais
comprometida. Com a alta dos juros de longo prazo nos mercados
internacionais (e uma iminente elevação também das taxas de curto e
médio prazo nos EUA), o que era uma desaceleração ou recessão econômica
começou a se transformar também em severa crise monetária em boa parte
do “Terceiro Mundo”. Em poucas semanas, uma acelerada desvalorização de
moedas locais frente ao dólar levou a um déjà vu generalizado
da década de 1980. Chile, Índia, Rússia e, principalmente, Argentina e
Turquia sofreram com uma valorização brusca do dólar, perda de poder de
compra de suas moedas no mercado internacional e alta de preços nos
produtos sensíveis ao câmbio.
O caso do Brasil não é diferente dos
demais. Embora por aqui os idiotizados pelo mercado insistam que a
situação monetária é “sólida”, graças a um excedente cambial derivado da
exportação desenfreada da última década, a realidade está bem distante
disso. A dívida pública brasileira, sem dúvida, não é mais denominada em
dólar (apenas 3,6 % do total), resultado de uma progressiva conversão,
nos últimos 20 anos, da dívida externa em dívida pública interna.12 Mas passou por um crescimento explosivo nos últimos cinco anos, ampliando cerca de 20 pontos percentuais em relação ao PIB.
O fato de termos uma desvinculação da
dívida com o dólar não representa imediatamente uma válvula de segurança
diante das instabilidades, pois há formas de correção variáveis nos
títulos públicos que estão sob pressão. Os títulos que seguem taxas
flutuantes estão sob o risco de variação na política monetária diante da
escalada de juros internacionais (esses documentos já correspondem a um
terço do total) e os títulos com algum tipo de correção indexada pela
inflação podem, num descontrole futuro, vir a tomar parte substancial
dos gastos do governo (principalmente com os limites impostos pela PEC do Teto de Gastos sobre as demais rubricas).
Entretanto, ainda que se possa ter uma
atitude de Pangloss diante da ascendente dívida pública, é o
endividamento privado nacional que explica, em grande medida, a tensão
do mercado financeiro brasileiro nos últimos meses. Assim como ocorre
com os demais países periféricos, é a dívida externa privada o atual
calcanhar da economia brasileira já em ruínas. Aproveitando-se dos juros
baixos no mercado de capital internacional, as empresas brasileiras
elevaram explosivamente seus contratos em dólar e, no período pós crise
do subprime, a dívida externa privada aumentou 130%. A dívida
externa total está em torno de 500 bilhões de dólares, a maior parte
corporativa.13 Somando tudo, o Brasil já possui pelo menos
150% do PIB em débitos e uma estimativa atualizada deverá indicar algo
próximo a 10 trilhões de reais em dívida total, um crescimento de 50% em
cerca de dez anos.
Essa situação, que afeta de maneira mais
violenta a periferia capitalista, não pode ser simplesmente atribuída a
uma dominação financeira mundial por parte das grandes potências ou –
numa visão antissemita cada vez mais comum – a uma exploração por parte
dos grandes bancos. O explosivo endividamento em todo o mundo, após a
crise de 2007/2008, afeta também as instituições financeiras, que
sofreram forte elevação de seus passivos em países como França, Itália,
Suécia e Holanda. Nações que conseguiram uma redução da dívida do setor
financeiro, como a Alemanha ou Estados Unidos, no período, o fizeram
graças a uma vergonhosa absorção estatal dos ativos tóxicos privados.
Embora a China seja o mais importante dínamo desse processo recente –
incluída uma elevação de 41% da dívida dos setores financeiros entre
2007 e 2014, principalmente dos chamados shadow bankings –, ainda são os Estados Unidos os responsáveis pela maior fatia de dívida mundial.
De 2007 a 2014, os Estados Unidos
ampliaram sua dívida total em 16%, chegando a 233% do PIB. Trata-se de
cerca de 40 trilhões de dólares em obrigações a pagar por parte do
governo, empresas e famílias, algo como um quinto de toda a dívida
mundial. Para garantir que o Estado superendividado pudesse continuar
funcionando, o congresso norte-americano teve que se reunir várias vezes
nos últimos anos para elevar a permissão legal de emissão de títulos
públicos. Entretanto, o caso mais grave aqui não se refere somente ao
nível elevado dos débitos empilhados pelos diversos setores econômicos
(mesmo com a redução nos últimos anos, a dívida familiar apenas com
cartões de crédito, financiamento de automóveis e crédito universitário
chega a quase 3,5 trilhões de dólares).14 Um dos indícios de
uma acumulação monetária sem precedentes é o nível de alavancagem dos
mercados financeiros, particularmente o mercado imobiliário e as bolsas
de valores. Aquilo que os jornais chamam hoje de “retomada” nada mais é
do que o efeito combinado de um endividamento histórico, uma alavancagem
dos mercados de títulos e uma nova bolha no mercado de imóveis.
Os índices econômicos mais significativos
mostram hoje um patamar de alavancagem nas bolsas norte-americanas
acima até mesmo do auge de 1929 ou de 2007, muito próximo do nível
recorde atingido em dezembro de 1999 (durante a bolha da new economy).
Também para o caso dos preços dos imóveis, os níveis nacionais superam
os patamares de 2007, quando o declínio abrupto levou ao colapso do
setor. Se as bolsas atravessam o segundo período mais inflado da
história, o mercado imobiliário dos EUA já adentrou o momento mais
crítico, o que significa dizer que no coração do capitalismo mundial
está se desenvolvendo não apenas uma crise gigantesca graças ao patamar
de endividamento alcançado, mas também um incalculável crash
imobiliário e acionário. A crise que se avizinha deve ser uma espécie de
síntese monstruosa de todos os grandes colapsos da história.
Evidentemente, não é possível prever uma
data exata para este evento. Talvez ele já tenha se iniciado com a crise
cambial na periferia do capitalismo, assim como o declínio das moedas
virtuais pode indicar o limite dessa capacidade de ficcionalização – o bitcoin
desvalorizou 64% em seis meses. Mas é quase certo que as negociações
comerciais internacionais estejam adicionando gasolina no incêndio que
começa a se alastrar. A bravata protecionista de Donald Trump, com a
ameaça de erguer barreiras tarifárias sobre uma série de produtos de
países periféricos (Brasil, China, México), assim como o seu recente
avanço sobre os aliados europeus e japonês (G7), pode lançar ainda mais
capacidade excedente num mercado mundial com problemas de excesso de
mercadorias.
Aqui pode se repetir, num contexto muito
mais grave, o que ocorreu após a aprovação da Lei Smoot-Hawley em 1930,
quando um governo americano desorientado elevou as tarifas de mais de 20
mil produtos importados, levando a uma sistemática retaliação e uma
corrida protecionista que aprofundou a depressão ao reduzir ainda mais a
circulação de mercadorias em todo o mundo. Mas se isso se realizar,
corremos o risco de testemunhar não apenas o agravamento da crise
estrutural do capitalismo, mas também uma generalização do
curto-circuito monetário, que deve atingir mesmo a moeda mundial.
Até agora, exatamente por sua função de
última moeda hegemônica mundial, o dólar foi o ponto de fuga dos
investimentos globais. Qualquer crise, não importando a sua origem,
levava imediatamente a uma corrida ao dólar, que por isso se fortalecia
sobre as demais moedas. Até mesmo a crise do subprime, com
epicentro no território norte-americano, provocou uma alta do dólar: o
efeito em cascata da crise por todo o globo acabava por promover uma
externalização dos riscos financeiros para as demais moedas. Apesar de
todos os problemas – assim se comporta a resposta behaviorista do
mercado –, o aparato estatal e militar dos EUA deve permanecer de pé
mesmo com a derrocada mundial por ele provocada. Com políticas
comerciais baseadas na redução do déficit que têm alimentado esse
sistema multilateral de endividamento, é possível que esse ponto de fuga
também seja destruído.
Desde o rompimento do padrão dólar-ouro
na década de 1970, os Estados Unidos encontraram no financiamento
externo a ferramenta para a manutenção do seu consumo, também
progressivamente dependente do mercado internacional. Em 1972, os EUA
entraram no primeiro déficit comercial desde 189315 e a
partir daí nunca mais deixaram de apresentá-lo – quase sempre
acompanhado anualmente dos déficits fiscal e familiar. Com uma política
atual focada na quebra desse mecanismo de sustentação dos déficits e no
estreitamento de fornecedores, os Estados Unidos correm o risco de
implodir sua débil moeda. O desmonte de um circuito global de
financiamento dos déficits norte-americanos eliminará a sustentação de
sua própria base monetária. Produzida por uma era de fundamentos
econômicos frágeis e agora por uma política destrutiva, a inevitável
crise do dólar abrirá um horizonte desconhecido de colapso econômico
mundial.
Notas:1 “A falta de procura como falta de poder de compra na forma do dinheiro não é outra coisa senão o reverso de uma falta de substância do valor dos próprios produtos enquanto mercadorias, ou seja, de uma falta geral de produção de valor”. Robert Kurz, Robert. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política (Lisboa: Antígona, 2014), p. 234.
2 Karl Marx. O capital: crítica da economia política, Livro III: o processo global da produção capitalista (São Paulo: Boitempo, 2017, 1986), p. 553.
3 Manuel Esteve. O sistema monetário internacional. Rio de Janeiro: Salvat, 1979, p. 106.
4 Robert Kurz. A crise do valor de troca (Rio de Janeiro: Consequência, 2018), p. 60.
5 O conceito de “mercadorias de segunda ordem” foi desenvolvido por Ernst Lohoff e Norbert Trenkle no livro A Grande Desvalorização (La grande dévalorisation. Pourquoi la spéculation et la dette de l’État ne sont pas les causes de la crise. Paris: Póst-éditions, 2014) e em artigos posteriores, principalmente de Lohoff. Esse conceito tornou-se tema de uma acalorada discussão no âmbito da chamada “crítica do valor”, opondo a interpretação de autores do grupo Exit aos colaboradores da Revista Krisis. Sobre isso ver o comentário crítico de Bernd Czorny. Ernst Lohoff e o individualismo metodológico. Disponível em: http://www.obeco-online.org/bernd_czorny.htm. No Brasil, embora o debate seja desconhecido, a obra de Lohoff e Trenkle foi debatida por Eleutério Prado.
6 Marcos Barreira e Maurilio Botelho, “A implosão do ‘pacto social’ brasileiro”, revista Krisis, 21.06.2016.
7 Alexandre Tanzi, “Global Debt at Record Level”, Bloomberg, 10.04.2018.
8 A compilação de todos esses números, cujas fontes são principalmente o FMI e a consultoria McKinsey, estão disponíveis em: https://www.zerohedge.com/news/2015-02-23/biggest-problem-facing-world-today-9-countries-have-debt-gdp-over-300. Acesso em jun. 2018.
9 “Dívida externa argentina sobe 35% desde a chegada de Macri”, Frederico Rivas Molina, El País, 5 jan. 2018.
10 Mylène Gaulard. La burbuja inmobiliaria em China. In: Revista Problemas del Desarrollo, 178 (45), julio-septiembre 2014, p. 71.
11 Larry Elliott, “Are we heading for another developing world debt crisis?”, The Guardian, 14 jan. 2018.
12“Como a dívida pública do Brasil cresceu. E mudou seu perfil”, Nexo, 03 fev. 2018.
13 “Dívida privada em dólar cresce 130%”, Estadão, 01 ago. 2015.
14 “Financiamentos afundam os estudantes nos EUA: dívidas superam 5,9 trilhões de reais”, El País, 8 jun. 2018.
15 Manuel Esteve. O sistema monetário internacional, p. 106.
***
Maurilio Lima Botelho é Professor
de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e
empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social,
organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013),
e do artigo “Guerra aos ‘vagabundos’: sobre os fundamentos sociais da
militarização em curso”, publicado na revista Margem Esquerda #30. Colabora com o Blog da Boitempo esporádicamente. Dele, leia também, “O suicídio da classe média” e “A aprovação do fim do mundo“, no dossiê “Não à PEC 241”.
Sem comentários:
Enviar um comentário