Losurdo: Como nasceu e como morreu o “marxismo ocidental”
Na esteira das homenagens ao autor, reproduzimos um artigo de Domenico Losurdo que foi posteriormente desdobrado em sua última obra publicada em vida, "O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer" (Boitempo, 2018).
Foi com
profundo pesar que recebemos a notícia do falecimento do filósofo
marxista italiano Domenico Losurdo na manhã de ontem, dia 28 de junho de
2018. Ainda na esteira das homenagens ao autor, reproduzimos aqui um
artigo dele que foi posteriormente desdobrado em sua última obra
publicada em vida, O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer, que recentemente recebeu edição brasileira pela Boitempo. A TV Boitempo está
atualmente preparando a publicação de uma série inédita de vídeos com
ele sobre comunismo e revolução no século XXI. Boa leitura! Losurdo,
presente.
* * *
Por Domenico Losurdo.1
Por muito tempo o “marxismo ocidental”
celebrou a sua superioridade em relação ao marxismo dos países que se
remetiam ao socialismo e que estavam todos situados no Oriente. Em
decorrência dessa atitude arrogante, o marxismo ocidental nunca se
empenhou seriamente em repensar a teoria de Marx à luz de um balanço
histórico concreto: qual era o papel do Estado e da nação nesses países e
no “campo socialista”? Como promover a democracia e os direitos humanos
e como estimular o desenvolvimento das forças produtivas e o bem-estar
das massas numa situação caracterizada pelo bloqueio capitalista? Ao
invés de pôr-se essas questões difíceis, o marxismo ocidental preferiu
abandonar-se à cômoda atitude autoconsolatória de quem cultiva em
particular as suas utopias e rejeita, como uma contaminação, o contato
com a realidade e a reflexão sobre a realidade. Disso derivou uma
progressiva capitulação à ideologia dominante. Por fim, a autocelebração
do marxismo ocidental desembocou na sua autodissolução.
1. O “marxismo ocidental” e a remoção da questão colonial.
Por que o marxismo ocidental, após desfrutar de um sucesso extraordinário até se tornar a koiné das
décadas de 1960 e 1970, mergulhou numa crise tão profunda? Sem dúvida,
os fatos históricos que todos conhecemos e que culminaram com a queda da
União Soviética e do “bloco socialista” desempenharam neste caso um
papel fundamental. No entanto, embora inevitável, esse tipo de
explicação não é exaustivo: é necessário aprofundar a análise,
concentrando a atenção nas fraquezas intrínsecas que o marxismo
ocidental revela no Ocidente, mesmo na época em que sua hegemonia parece
incontestável. Nada é mais verdadeiro em relação à Itália. É preciso
partir de um debate suscitado por Norberto Bobbio em 1954. Ele, embora
insistindo justamente na irrenunciabilidade da liberdade formal e das
suas garantias jurídico-institucionais, atribui como mérito dos Estados
Socialistas o fato de eles “terem começado uma nova fase de progresso
civil em países politicamente atrasados, introduzindo instituições
tradicionalmente democráticas, de democracia formal, como o sufrágio
universal e a elegibilidade dos cargos, e de democracia substancial,
como a coletivização dos instrumentos de produção”. Entretanto, é a
conclusão crítica, o novo “Estado Socialista” não soube transplantar em
seu bojo o governo da lei e os mecanismos de garantias liberais, não
soube ainda proceder à “limitação do poder” e derramar “uma gota de óleo
(liberal) nas engrenagens da revolução já realizada”2.
Como se vê, estamos bem longe das posições assumidas pelo filósofo de
Turim na última fase da sua evolução, no momento em ele se torna, em
última análise, um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 (faltam dois
anos para o XX Congresso do PCUS e a revolta húngara) a influência do
marxismo e o prestígio dos países que fazem referência a ele são
grandes; nesse momento, ao lado da “democracia formal”, Bobbio teoriza
também uma “democracia substancial”; além disso, expressa um juízo a
respeito dos países socialistas que não é univocamente negativo, nem
mesmo a respeito da “democracia formal”.
Quais são as reações dos intelectuais
comunistas italianos? Para rechaçar ou atenuar as críticas dirigidas, em
primeiro lugar, à União Soviética, eles poderiam ter alegado o estado
de exceção permanente imposto ao país surgido da Revolução de Outubro
como justificativa parcial do atraso, bem como a ameaça do aniquilamento
nuclear que pairava de forma contínua sobre ele. Galvano Della Volpe,
ao contrário, segue uma estratégia totalmente diferente, concentrando-se
na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da
individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Desse
modo, por um lado, as garantias jurídicas do Estado de Direito são
desvalorizadas, implicitamente rebaixadas à condição de libertas minor; por
outro lado, acaba-se valorizando a transfiguração realizada por Bobbio
da tradição liberal, enquanto campeã da causa da fruição universal (pelo
menos dos direitos civis), da liberdade formal, da libertas minor, da
“limitação do poder”. Para sustentar essa visão, Bobbio remete ao hino
que John Stuart Mill, em seu ensaio dedica à liberdade, talvez o mais
célebre: On Liberty. Entretanto, é justamente nesse ensaio que
vemos o liberal inglês justificar o “despotismo” do Ocidente sobre as
“raças” ainda “menores de idade”, obrigadas a aceitar uma “obediência
absoluta”, de tal forma que possam ser guiadas no caminho em direção ao
progresso3.
Em 1954, o “despotismo” e a “obediência absoluta” impostos pelo
Ocidente eram muito bem percebidos no mundo colonial; nos Estados
Unidos, os negros continuavam excluídos maciçamente dos direitos
políticos e, às vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não
desaparecera o regime de segregação racial e da white supremacy ). Della Volpe, completamente absorvido pela celebração da libertas maior , não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o equívoco clamoroso de Bobbio.
O fato é que, embora apresentando-se cada
vez de maneira diferente, a remoção da questão colonial caracteriza
amplamente o marxismo ocidental daqueles anos. Em 1961, Ernest Bloch
publica Direito Natural e Dignidade Humana. Como o próprio título revela, estamos bem longe da subestimação dalibertas minor, tão
cara a Della Volpe; ao contrário, a reivindicação da herança da
tradição liberal é explícita, submetida, contudo, a uma crítica que
infelizmente parece uma transfiguração. Bloch critica o liberalismo por
defender uma “igualdade formal e apenas formal”. E acrescenta: “Para
impor-se, o capitalismo está interessado só na realização de uma
universalidade da regulamentação jurídica, que abraça tudo de maneira
igual” 4 .
Essa afirmação pode ser lida num livro
publicado no mesmo ano em que a polícia, em Paris, desencadeia uma caça
impiedosa contra os argelinos, afogados no rio Sena ou mortos a
pauladas; e tudo isso à luz do dia, aliás, na presença de cidadãos
franceses que, sob a proteção do governo da lei, assistem divertidos ao
espetáculo: belo exemplo de “igualdade formal”! Na capital de um país
capitalista e liberal assistimos a ação de uma dupla legislação, que
entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem definido.
Se, depois, considerarmos as colônias e as semi-colônias e olharmos, por
exemplo, a Argélia ou então o Quênia ou a Guatemala (um país
formalmente livre, mas, de fato, sob o protetorado norte-americano),
veremos o Estado dominante, capitalista e liberal, lançando mão, de
forma ampla e sistemática, da tortura, dos campos de concentração e das
práticas genocidas contra os povos indígenas. Disso tudo não há vestígio
nem em Bobbio, nem em Della Volpe e tampouco em Bloch.
Os povos coloniais ou de origem colonial continuam ausentes quando o autor de Direito Natural e Dignidade Humana trata
de Grotius e de Locke (o apreço por sua orientação jusnaturalista não
menciona o empenho de ambos em justificar a escravidão negra), ou no
momento em que faz referência à Guerra de Independência americana (a
homenagem feita aos “jovens Estados livres” nem sequer menciona o peso
da escravidão na realidade político-social e na própria Constituição dos
EUA) 5.
Esse silêncio é ainda mais singular
porque, justamente nesses anos, começa a desenvolver-se, na república do
outro lado do Atlântico, a luta dos afro-americanos. É um acontecimento
que chama a atenção de Mao Tsé-tung, em Pequim, e pode ser interessante
confrontar os posicionamentos de duas personalidades tão diferentes
entre si. Se o filósofo alemão denuncia o caráter meramente “formal” da
igualdade liberal e capitalista, o dirigente comunista chinês procede,
por sua vez, de maneira bem diferente. Decerto, ele ressalta o fato de
os negros apresentarem uma taxa de desemprego bem maior que a dos
brancos, além de serem confinados aos segmentos inferiores do mercado de
trabalho e serem obrigados a contentar-se com salários reduzidos. Isso,
porém, não é tudo: Mao chama a atenção para a violência racista
desencadeada pelas autoridades do Sul e pelos bandos tolerados ou
encorajados por elas e celebra a “luta do povo negro americano contra a
discriminação racial e pela liberdade e a igualdade dos direitos”6.
Bloch critica a revolução burguesa pelo fato de ela “ter limitado a
igualdade à liberdade política”; em relação aos afro-americanos, Mao
observa que “a maioria deles está desprovida do direito de voto” 7
. Reduzidos à mercadoria e desumanizados pelos seus opressores, os
povos coloniais travaram batalhas memoráveis pelo reconhecimento durante
séculos, mas em Bloch se lê: “O princípio pelo qual os homens nascem
livres e iguais já está presente no direito romano; agora deve estar
presente também na realidade”. E vejamos agora a conclusão do artigo de
Mao de 1963, acima citado: “O perverso sistema colonial-imperialista
desenvolveu-se graças à escravidão e ao tráfico negreiro, e ele
certamente chegará ao fim com a total libertação dos negros” 8.
Sinais semelhantes manifestam-se no
Vietnã, onde está ocorrendo uma grande luta de libertação nacional
guiada por Ho Chi Minh, que, já em 1920, acusara a Terceira República
francesa nestes termos: “A chamada justiça indochinesa, naquela região,
tem dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias
dos europeus e dos europeizados”. Não são apenas “vergonhosamente
oprimidos e explorados” mas também “horrivelmente martirizados” e sofrem
“todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital” 9 . Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e de Ho Chin Minh, alibertas minor tão
cara a Della Volpe não é subestimada e tampouco a ilusão (comum, com
modalidades diferentes, em Bobbio, Della Volpe e Bloch), segundo a qual o
capitalismo e o liberalismo garantiriam de qualquer modo a “igualdade
formal” ou até mesmo a “igualdade política”. Tanto o líder chinês como o
líder vietnamita têm, de alguma forma presente, a indicação de Lênin:
“Os homens políticos mais liberais e radicais da livre Grã-Bretanha
[…] se transformam, quando se tornam governadores da Índia, em
verdadeiros Genghis Khan”10
. Na própria metrópole capitalista e liberal manifestam-se “contínuas
violações da igualdade (inclusive) jurídica das nações”: a esse
respeito, Lênin cita em 1920 o exemplo da “Irlanda” e dos “negros da
América”; tanto na Inglaterra, como nos Estados Unidos, as “garantias
dos direitos das minorias nacionais” 11
são vilipendiadas. E tanto Mao como Ho Chi Minh poderiam ter mencionado
as páginas em que Marx denuncia o tratamento da Inglaterra liberal em
relação à Irlanda (uma colônia situada na Europa): trata-se de uma
política ainda mais cruel e terrorista do que a praticada pela Rússia
czarista e autocrática contra a Polônia (MEW, XVI, 552). Como se vê, o
marxismo “oriental” empenha-se, compreensivelmente, muito mais do que o
marxismo “ocidental” na denúncia das cláusulas macroscópicas de exclusão
da liberdade liberal.
2. Althusser e a crítica do “humanismo”
Voltemos ao debate suscitado por Bobbio
em 1954. Há uma intervenção sensivelmente diferente daquela de Della
Volpe. A polêmica com o filósofo de Turim desenvolve-se agora assim:
“Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais aqueles
princípios liberais sobre os quais se diz fundado o Estado inglês do
século XIX, modelo, creio, de regime liberal perfeito para aqueles que
raciocinam como Bobbio?”. A verdade é que a “doutrina liberal […] está
fundada numa discriminação bárbara entre as criaturas humanas”, que se
alastra não só nas colônias, mas na própria metrópole, como demonstra o
caso dos negros estadunidenses, “na maioria privados dos direitos
elementares, discriminados e perseguidos”12 . Nessa tomada de posição não há nenhuma degradação da “liberdade formal” à libertas minor, mas,
ao mesmo tempo, não se perde de vista o fato de sua fruição ter sido
historicamente negada às massas incalculáveis de homens pelo próprio
Ocidente liberal. Essa intervenção deve-se a um autor hoje quase
completamente esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro
Togliatti, na época secretário-geral do PCI. Estamos diante de um
expoente do “marxismo ocidental”? No entanto, deve-se notar que não se
trata de um filósofo profissional, e sim de um político profissional,
além disso ligado organicamente – pelo menos assim julgam seus críticos –
ao orientalizante “socialismo real”.
Concentremo-nos, contudo, na expressão
utilizada por Togliatti: “discriminação bárbara entre as criaturas
humanas”. Trata-se de uma condenação inspirada por aquele “humanismo
integral” em que, segundo Gramsci, consiste o comunismo; por outro lado,
vimos Bloch levantar, em 1961, a bandeira em defesa da “dignidade
humana”. Naqueles mesmos anos, o humanismo exerce um papel fundamental
em Sartre, que faz uma denúncia apaixonada do colonialismo evidenciando
justamente teorias e práticas de desumanização por ele desenvolvidas.
Estamos diante de expressões diferentes daquele “humanismo” que mais
tarde se torna o bicho-de-sete-cabeças de Louis Althusser. Como é
sabido, o jovem Marx denuncia a sociedade existente como negação do
“humanismo positivo” ( positiver Humanismus ) e do “humanismo realizado” ( vollendeter Humanismus ) (MEW, Erg. Bd., I 583 e 536), do “humanismo real” (realer Humanismus )
(MEW, II, 7), e formula seu programa revolucionário, enunciando o
“imperativo categórico de derrubar todas as relações em que o homem é um
ser degradado, escravizado, abandonado, desprezado” (MEW, I, 385). Para
Althusser, essas formulações são ingenuidades ideológicas, felizmente
superadas pelo Marx maduro, a partir aproximadamente de 1845, quando
teria ocorrido a “ruptura epistemológica” e a retórica humanística, que
esqueceu a luta de classes, que teria sido suplantada pelo materialismo
histórico, ou melhor, pela ciência da história.
Na realidade, essa suposta retórica continua ecoando mais forte do que nunca no Manifesto do Partido Comunista, que
convida a derrubar um sistema, o capitalista, que desconhece a
dignidade humana da imensa maioria da população: no banco dos réus são
colocadas as relações econômicas e sociais que implicam a “transformação
em máquina” dos proletários (MEW, IV, 477), rebaixados desde a infância
a “meros artigos de comércio e instrumentos de trabalho” (MEW, IV,
478), a “simples acessório da máquina” (MEW, IV, 468), à apêndice
“dependente e impessoal” do capital “independente e pessoal” (MEW, IV,
476).
Para Althusser, o Manifesto do Partido Comunista faz parte das “obras de maturação teórica” e não das “obras da maturidade” plenamente alcançada 13 . Vejamos, então, em que termos O Capital coloca no banco dos réus o sistema capitalista: a busca pelo lucro implica um “desperdício” de vida humana ,
digno de Timur-Tamerlão” (MEW, XXIII, 279, nota 208). É um sistema que
não hesita em sacrificar vidas humanas em formação e incapazes de se
defender: eis o “grande rapto herodiano das crianças realizado pelo
capital no início do sistema fabril nas casas dos pobres e dos
orfanatos, através do qual ele incorporou um material humano totalmente
desprovido de vontade” (MEW, XXIII, 425, nota 144). São terríveis os
custos humanos do capitalismo. Basta pensar na formação da indústria
têxtil na Inglaterra: procura-se a matéria-prima necessária cercando e
destinando às pastagens as terras comuns que antes asseguravam a
subsistência de grande parte da população que, expropriada, é condenada à
fome e ao desespero: sim – sintetiza O Capital citando Thomas More – “as ovelhas devoram os homens ” (MEW, XXIII, 747, nota 193). A sociedade burguesa ama celebrar a si mesma como “um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem “, na realidade no seu âmbito o “trabalho humano”, aliás, “o homem enquanto
tal […] desenvolve ao contrário um papel miserável” (MEW, XXIII, 189 e
59). Se passarmos apenas da esfera da circulação à da produção, notamos
que, bem longe de ser reconhecido em sua dignidade de homem, o
trabalhador assalariado “leva ao mercado a sua própria pele e não tem
outra coisa a esperar a não ser o… curtume” (MEW, XXIII, 191).
A crítica dos processos de desumanização
ínsitos no capitalismo ressoa com força ainda maior quando Marx fala do
destino reservado aos povos coloniais: com “a aurora da era da produção
capitalista”, a África se transforma em uma “reserva de caça para os
mercadores de pele negra” (MEW, XXIII, 779). Passemos agora para a Ásia e
para o império colonial holandês: aí funciona “o sistema de roubo de homens nas Célebes para obter escravos para Java”, com “ladrões de homens” ( Menschenstehler )
propositalmente “adestrados para tal finalidade” (MEW, XXIII, 780).
Ainda na metade do século XIX vemos nos EUA o escravo negro assumindo
completamente a forma de simples “propriedade” tanto quanto as outras,
enquanto a lei sobre a restituição dos escravos fugitivos determina a
transformação dos próprios cidadãos do Norte em “caçadores de escravos”
(MEW, XV, 333). Nesse meio-tempo, alguns Estados no Sul especializam-se
na “criação de negros” ( Negerzucht ) (MEW, XXIII, 467), ou
seja, no “breeding of slaves” (MEW, XXX, 290: carta a Engels de 29 de
outubro de 1862). Renunciando aos tradicionais “artigos de exportação”,
esses Estados “criam escravos” como mercadorias de “exportação” (MEW,
XV, 336). Por outro lado, quando estoura a guerra, eis que proprietários
de escravos abandonam áreas consideradas pouco seguras para
transferir-se para o Sul, arrastando consigo seu excelente ” black chattel” (MEW,XXX,
290: carta a Engels de 29 de outubro de 1862). Como se vê, também nos
escritos da maturidade, recorre em Marx a motivação crítica que censura a
sociedade burguesa por ela reduzir a grande maioria da humanidade à
“máquinas”, a “instrumentos de trabalho”, à “mercadoria” que pode ser
tranquilamente “esbanjada”, a “produtos de comércio” e a “artigos de
exportação”, a bens móveis dos quais o dono pode dispor como uma
“bagagem”, a animais de criação, ou seja, à pele objeto de caça ou a ser
destinada ao curtume.
A denúncia do anti-humanismo do sistema
capitalista não desapareceu de modo algum e nem pode desaparecer, porque
está no centro do pensamento de Marx: a comparação, tão importante para
ele, entre escravidão moderna e escravidão antiga, escravidão
assalariada e escravidão colonial, significa a permanência, no âmbito do
capitalismo, daquele processo de reificação que se manifesta em toda a
sua crueza em relação ao escravo propriamente dito, completamente
reduzido à mercadoria ou à condição de animal. O rigor científico e a
indignação moral resultam tão entrelaçados entre si, e é somente este
entrelaçamento que pode explicar o apelo à revolução. Por mais fiel e
impiedosa que possa ser, a descrição da sociedade existente não pode por
si só estimular a ação para a sua derrubada, se não houver a mediação
da condenação moral; e essa condenação moral brota em Marx da
constatação dos processos de desumanização ínsitos ao sistema
capitalista; a partir daí, a realização de uma nova ordem é percebida
como um “imperativo categórico”, e isso tanto nos escritos de juventude
quanto nos escritos de maturidade. Se as Teses contra Feuerbach se
concluem com a condenação dos filósofos que se revelam incapazes de
“transformar” um mundo no qual o homem é esmagado e humilhado, O Capital é
uma “Crítica da Economia Política” – como reza seu subtítulo – também
no plano moral: o “economista político” é criticado não apenas por seus
erros teóricos, mas também por sua “imperturbabilidade estóica”, isto é,
por sua incapacidade de indignação moral diante das tragédias
provocadas pela sociedade burguesa (MEW, XXIII, 756). A continuidade na
evolução de Marx é evidente, e aquilo que Althusser descreve como
ruptura epistemológica nada mais é que a passagem para um discurso no
âmbito do qual a condenação moral do anti-humanismo da sociedade
burguesa é expressa de maneira mais sintética e mais elíptica.
3. Da história à “ciência” ou do materialismo ao idealismo, da história mundial ao eurocentrismo
Podemos perfeitamente compreender as
razões da posição adotada pelo filósofo francês: são os anos em que a
bandeira do “humanismo” é agitada para abafar a luta contra o
imperialismo; iniciou-se o processo que mais tarde levará à capitulação
de Gorbachev. Analisando melhor, a crítica filosófica do humanismo,
enquanto inclinada a ocultar o conflito social e sua aspereza, é, ao
mesmo tempo, a polêmica contra as “concepções tingidas de reformismo e
de oportunismo ou, mais simplesmente, revisionistas”, que vinham se
difundindo naquela época14
. Infelizmente, essa polêmica é conduzida a partir de posições erradas.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que não só o apelo à humanidade
comum (e à moral), mas também o apelo à ciência pode levar ao
esquecimento da luta de classes. E, todavia, o filósofo francês toma
posição justamente contra o slogan “ciência burguesa, ciência
proletária” e atribui como mérito de Stalin o fato de este ter-se oposto
à “loucura” que exigia “a todo custo fazer da língua uma
superestrutura” ideológica. Graças a essas “simples páginas” – conclui
Althusser – “vislumbramos que o uso do critério de classe não era
ilimitado e que nos faziam tratar como uma ideologia qualquer ciência,
cujo título incluía as próprias obras de Marx”15.
Pode ser considerado ilimitado o uso do critério de classe pela moral?
Podem ser realmente postas no mesmo plano posições que reivindicam a
unidade do gênero humano e posições que, na prática, e às vezes de
maneira explicita até na teoria, promovem a desumanização das grandes
massas de homens, rebaixados a Untermenschen e destinados somente a serem escravizados ou aniquilados?
Polemizando contra a leitura humanista do
marxismo, Althusser não se cansa de repetir que Marx não parte do
“homem” ou do “indivíduo” mas da estrutura histórica das relações
sociais. Contudo, é estranho que o conceito de “homem” ou de “individuo”
seja considerado óbvio. Convém, então, remeter a Nietzsche que, após
ter condenado a Comuna de Paris desencadeada por uma “classe bárbara de
escravos” em nome da “dignidade do homem” e da “dignidade do trabalho”
humano16, condena a “agitação individualista”17, de um movimento, o socialismo, cuja erro é querer transformar em indivíduos e em pessoas aqueles que por natureza “não são nenhuma pessoa”, mas simples “portadores, instrumentos de transmissão”18.
Ou seja, longe de ser um dado óbvio, o conceito de indivíduo e de homem
enquanto tal é o resultado de lutas gigantescas pelo reconhecimento,
conduzidas agitando justamente a bandeira do humanismo tão desprezado
por Althusser. Isso já vale para os trabalhadores assalariados da
metrópole (muitas vezes desumanizados pela tradição liberal e
assimilados a instrumentos de trabalho, a máquinas bípedes, a bestas de
carga), mas vale de maneira toda especial para os povos coloniais. Não
faz sentido contrapor a estrutura histórica das relações sociais ao
conceito de homem ou de indivíduo como tal, pelo fato de que esse mesmo
conceito pressupõe radicais transformações políticas e sociais. Quando
afirma que o humanismo em última análise é burguês, Althusser argumenta
de maneira análoga a Bloch: tanto num caso como noutro a sociedade
burguesa é recriminada por ater-se apenas à “igualdade formal” e, desse
modo, são removidas também as desigualdades formais e os profundos
processos conexos que caracterizam o capitalismo.
É verdade, o filósofo francês reconhece
que pode existir também um “humanismo revolucionário” originado pela
Revolução de Outubro19,
mas nesse ponto é muito hesitante; e assim impede a si mesmo a
compreensão das lutas gigantescas por reconhecimento conduzidas pelos
“escravos das colônias” (para usar uma linguagem tão cara a Lênin). Esse
resultado é ainda mais inevitável pelo fato de a teoria de Marx ser, em
Althusser, só um capítulo da história do pensamento científico: “Antes
de Marx só dois grandes continentes haviam sido abertos ao conhecimento
científico, após rupturas epistemológicas sucessivas: o continente
matemático graças aos gregos […] e o continente físico, graças a Galileo
e seus sucessores”20
. É um enfoque que determina duas consequências muito relevantes: 1)
Marx insistiu várias vezes sobre o fato de que a sua teoria é a
expressão teórica de um movimento real; agora, porém, é o movimento real
que é considerado o produto, para dizer com Althusser, de uma “ruptura
epistemológica”, ou, para dizer com Della Volpe, de um método científico
que aprende a lição de Galileo e, antes ainda, de Aristóteles, crítico
de Platão. Assistimos assim a uma distorção idealista do materialismo
histórico, visto como o resultado da genialidade de um único indivíduo
que se aventurou na descoberta de um novo continente! Após ter censurado
repetidamente o humanismo por ocultar a luta de classes, agora é o
próprio Althusser que faz desaparecer a luta de classes atrás da
elaboração do materialismo histórico. 2) A distorção idealista do
marxismo é, ao mesmo tempo, sua reinterpretação em termos eurocêntricos.
Para Engels, Lênin e Gramsci, o marxismo tem atrás de si a Revolução
Francesa, e esta acabava remetendo, pelo menos potencialmente, às lutas
gigantescas suscitadas por ela em Santo Domingo e que culminaram com a
abolição da escravidão nas colônias. Agora, ao contrário, a elaboração
do materialismo histórico é o capítulo de uma história que se desenvolve
exclusivamente no Ocidente.
4. O “marxismo ocidental” lê o “marxismo oriental”: um equívoco coletivo
Althusser segue com profunda participação
as lutas realizadas pelos povos coloniais, e olha com simpatia para a
China que aspira pôr-se à frente do movimento anti-imperialista;
contudo, do ponto de vista teórico, ele não parece capaz de apreender
plenamente o significado dessas lutas. Estamos diante de um fenômeno de
caráter geral. No decorrer dos anos de 1960 e 1970, um equívoco coletivo
caracteriza a esquerda de orientação marxista na Europa e nos Estados
Unidos: as grandes manifestações em favor do Vietnã se entrelaçam
tranquilamente com a homenagem tributada a autores propensos a
considerar definitivamente superados os movimentos de libertação
nacional. Em 1966, Adorno, em A Dialética Negativa, liquida a tese hegeliana do “espírito do povo” ( Volksgeist ),
ou seja, o caráter essencial da dimensão e da questão nacional, como
“reacionária” e regressiva “em relação ao universal kantiano de seu
período, a humanidade agora visível”, como eivada de “nacionalismo” e
“provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma
organização mundial do mundo”. Pior ainda, tratar-se-ia do culto
tributado a um “fetiche”, a um “sujeito coletivo” (a nação), no âmbito
do qual “os sujeitos individuais desaparecem sem deixar vestígios” 21 . É uma tomada de posição que a posteriori deslegitimava a guerra conduzida pela Frente de Libertação Nacional da
Argélia, um povo e um país sem dúvida mais provincianos, mais atrasados
e menos cosmopolitas do que a França, contra a qual se insurgiram. Em
todo caso, Adorno colocava-se na impossibilidade de entender as grandes
lutas que estavam acontecendo inclusive debaixo de seus olhos, a começar
por aquela guiada pela Frente de Libertação Nacional do Vietnã.
De resto, vejamos de que maneira o “marxismo oriental” argumenta sobre esse ponto. Três anos depois da publicação de Dialética Negativa, Ho
Chi Minh morre. Em seu testamento, depois de ter convocado seus
concidadãos à “luta patriótica” e ao compromisso “pela salvação da
pátria”, no plano pessoal ele traça este balanço: “Por toda vida eu
servi minha pátria de corpo e alma, servi a revolução, servi o povo”22
. Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo
aniversário, o dirigente vietnamita recordara seu percurso intelectual e
político afirmando que: “no começo fora o patriotismo e não o comunismo
que me levou a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional”. Em
primeiro lugar, os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a
luta de libertação dos povos coloniais, ressaltando seu direito de
constituir-se como Estados nacionais independentes, provocaram grande
emoção: “As teses de Lênin sobre a questão nacional e colonial
despertavam em mim grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé,
e me ajudavam a ver claramente os problemas. Tão grande era a minha
alegria que até chorei”23
. No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que ele dera na
véspera da fundação da Republica Popular Chinesa, em 1949: “A nossa não
será mais uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Já nos
levantamos […] A época na qual o povo chinês era considerado selvagem
agora acabou”24.
Compreende-se perfeitamente a atitude dos
dois grandes revolucionários. Atrás deles estava agindo a lição de
Lênin, que assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em
cujo âmbito algumas pretensas “nações-modelo” atribuem a si mesmas “o
privilégio exclusivo da formação do Estado”, negando-o aos povos das
colônias25;
sim, “poucas nações eleitas” pretendem construir o próprio “bem-estar” e
estabelecer a própria primazia na pilhagem e no domínio do resto da
humanidade 26
. Ou seja, além da pilhagem econômica e da opressão política, o
imperialismo é também caracterizado pela hierarquização das nações. Os
povos explorados e oprimidos são, ao mesmo tempo, rotulados como
incapazes de se autogovernar e de se constituir como Estado nacional; a
luta para livrar-se desse estigma é uma grande luta pelo reconhecimento.
Mas naquela época a homenagem a Ho Chi
Minh, a Mao ou a Castro, não favorecia, de forma alguma, posições de
distanciamento do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo
ocidental. E nem mesmo Sartre era capaz de opor resistência ao niilismo
nacional, apesar de seu grande compromisso na luta contra o
colonialismo. Como esclarece um capítulo fundamental de Crítica da Razão Dialética (Livro I, cap. C), o filósofo francês faz derivar os vários conflitos humanos, em última análise, da “penúria” (rareté).
O resultado dessa abordagem é avassalador. Na medida em que parece
determinar uma luta pela vida e pela morte, a condição de penúria acaba,
de alguma forma, justificando os responsáveis pela opressão. Eles
aparecem como os protagonistas de uma luta trágica pela sobrevivência
que, no presente se impõe de maneira fatal e, no futuro, pode ser
eliminada apenas por um extraordinário desenvolvimento das forças
produtivas. No lado oposto, os oprimidos aparecem movidos apenas pelo
desejo de escapar das intoleráveis condições de vida; mas, então, posto
que a língua, a cultura, a identidade e a dignidade nacional não
desempenham nenhuma função, não se compreende a participação na luta
contra a opressão nacional por parte de camadas sociais que gozam de um
padrão de vida confortável ou de uma comodidade mais ou menos relevante.
Como se vê, a simpatia pelos “deserdados da terra” e a indignação pelos
crimes do colonialismo e do imperialismo na Argélia ou no Vietnã,
embora meritórias, não garantem por si só uma compreensão adequada da
questão nacional.
A razão profunda dessa atitude
contraditória será esclarecida, de maneira exemplar, algumas décadas
mais tarde por Hardt e Negri: “Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietnã, o
Estado é a dádiva envenenada da libertação nacional”. É verdade, os
palestinos podem contar com a nossa simpatia; mas, a partir do momento
em que “forem institucionalizados”, não se pode mais estar do “lado
deles”. O fato é que “no momento em que a nação começa a se formar e se
torna um Estado soberano, suas funções progressistas desaparecem”27
. Ou seja, pode-se ter simpatia pelos vietnamitas, pelos palestinos ou
por outros povos somente enquanto eles forem oprimidos e humilhados;
pode-se apoiar uma luta de libertação nacional apenas na medida em que
ela continua sendo derrotada! A derrota ou a incapacidade de um
movimento revolucionário são a premissa para que o rebelde possa
autocelebrar-se e deleitar-se como rebelde que recusa em qualquer
circunstância contaminar-se com o poder constituído!
É óbvio que os líderes dos povos em luta
pela própria emancipação argumentam de maneira totalmente diferente. Em
setembro de 1949, às vésperas da conquista do poder pelos comunistas,
Mao chama a atenção para o desejo de Washington de que a China “se
reduza a viver com a farinha americana”, acabando assim por “tornar-se
uma colônia americana”28; a luta pelo desenvolvimento da produção se configurava então como uma continuação da luta pela independência nacional.
Na verdade, já o Manifesto do Partido Comunista afirmara
que o “proletário usará seu poder político” e o controle dos meios de
produção, em primeiro lugar, “para aumentar, o mais rapidamente
possível, o total das forças produtivas” e, em particular, para
desenvolver as “novas indústrias”, que não têm mais uma base nacional e
cuja “introdução” é “uma questão de vida e de morte para todas as nações
civis” (MEW, IV, 481 e 466). E, contudo, o problema de caráter geral
sobre o qual Marx e Engels chamam a atenção adquire no Oriente uma
urgência toda particular. Depois de ter se livrado do jugo colonial, os
países e os povos recém-independentes estão comprometidos em consolidar a
independência no plano econômico: não querem mais depender da esmola ou
do arbítrio de seus ex-patrões; consideram essencial quebrar o
monopólio que os países mais poderosos detêm sobre a tecnologia mais
avançada.
De fato, podemos ver no Vietnã uma
orientação semelhante àquela já analisada em relação a Mao. Em plena
guerra pela independência e pela unidade nacional, o então primeiro
secretário do Partido dos Trabalhadores do Vietnã do Norte declara que,
depois da conquista do poder, a tarefa mais importante reside na
“revolução técnica”. Agora “são as forças produtivas que desempenham o
papel decisivo”; trata-se portanto de empenhar-se com afinco para
“alcançar uma produtividade mais elevada, estimulando a construção da
economia e o desenvolvimento da produção”29 .
Mas no Ocidente, justamente no momento em
que se desenvolve com mais intensidade o movimento de apoio à
resistência vietnamita e a influência da China se faz sentir com mais
força, ressoam vozes muito diferentes no âmbito da esquerda marxista. Na
Itália, Mario Tronti publica um livro que tem logo um grande sucesso.
Eis uma de suas teses principais: a revolução socialista “suprime o
trabalho. E justamente assim elimina o domínio de classe. Supressão
operária do trabalho e destruição violenta do capital são, portanto, uma
coisa só”30. Estamos em 1966, ano em que na China eclode a Revolução Cultural. E é nesse momento que a comédia de equívocos chega ao ápice.
A Revolução Cultural é lançada com uma
palavra de ordem bem precisa: “Fazer a revolução e estimular a
produção”. Entre os marxistas ocidentais não são raras as tomadas de
posição concordantes ou entusiastas; a segunda parte desta palavra de
ordem, porém, acaba sendo esquecida. Entretanto, ainda em 1969, por
ocasião do IX Congresso do Partido Comunista Chinês, Lin Piao, herdeiro
designado por Mao naquele momento, afirma:
“Justamente como foi ressaltado em Os 16 pontos que três anos antes haviam inaugurado a Revolução Cultural: ‘A
Grande Revolução Cultural Proletária constitui uma poderosa força
motriz para o desenvolvimento das forças produtivas sociais no nosso
país‘, a produção agrícola no nosso país obteve boas colheitas
por vários anos consecutivos; apresenta-se também uma situação vigorosa
na produção industrial, na ciência e na tecnologia; o entusiasmo das
grandes massas trabalhadoras pela revolução e a produção alcançou um
nível sem precedentes; numerosas fábricas, minas e outras empresas
bateram continuamente recordes de produção, chegando assim a um nível
jamais visto na história e a revolução técnica está em contínuo
desenvolvimento […] ‘Fazer a revolução e estimular a produção’ – este princípio é absolutamente justo”31.
Lin Piao reafirmava com insistência este
ponto: “Devemos […] fazer com firmeza a revolução e estimular com vigor a
produção, cumprindo e superando o plano de desenvolvimento da economia
nacional. É claro que a grande vitória da Grande Revolução Cultural
Proletária continuará alavancando novos saltos para frente na economia e
na nossa causa, para a edificação socialista em seu conjunto”. Aliás,
uma das principais acusações contra o presidente deposto da República
Popular Chinesa, Liu Shao-chi, era “a teoria dos passos de lesma”, ou
seja, a incompreensão de que a Revolução Cultural teria prodigiosamente
acelerado o desenvolvimento das forças produtivas e levado o país, em
curto espaço de tempo, ao nível dos países capitalistas mais avançados32
. Não por acaso, a Revolução Cultural retomava e relançava o Grande
Salto para a Frente de 1958 mediante o qual a China esperava queimar as
etapas para alcançar os países capitalistas mais avançados.
Não se deve esquecer que já, em 1937, em seu ensaio Sobre a Prática, retomando um tema do Manifesto do Partido Comunista, Mao
sublinhara a centralidade da “atividade produtiva material” e do
desenvolvimento das forças produtivas para o aumento não apenas da
riqueza social, mas também do “conhecimento humano”: sim, “a produção em
escala reduzida limitava o horizonte dos homens”; e é em virtude dessa
sua função pedagógica que a atividade produtiva material não está
destinada a desaparecer nem mesmo “na sociedade sem classes”, no
comunismo33. Mas no Ocidente, a celebração de Mao podia conjugar-se bem com a espera do fim do trabalho; muitas vezes citava-se o ensaio Sobre a Prática, para remeter, porém, só à luta de classes, removendo seja a luta pela produção, seja a luta pela experimentação científica.
No marxismo ocidental, a divisão
populista em duas partes da principal palavra de ordem lançada pela
Revolução Cultural, corresponde à divisão do pensamento de Mao. Ele se
sentia fortemente empenhado na eliminação de dois tipos de desigualdade:
a que vigorava dentro do povo chinês mas também, e talvez mais ainda, a
que separava a China dos países mais avançados. Acelerando
poderosamente o desenvolvimento das forças produtivas, a superação da
primeira contradição tornaria possível a superação também da segunda;
dessa forma, a nação chinesa se levantaria de modo estável e definitivo,
a longa luta pelo reconhecimento da China tornada necessária pela
opressão e pela humilhação impostas pelo imperialismo seria coroada de
um sucesso total.
No Ocidente, contudo, a Revolução
Cultural, o pensamento e a obra de Mao, a Revolução Chinesa em sem
conjunto acabava sendo reduzida a um único slogan: “Rebelar-se é justo”.
O grande revolucionário, já dividido no sentido que conhecemos, era
submetido ainda a uma leitura anarcóide. Derrotado a duras penas na
época da Segunda Internacional, o anarquismo obtém uma clamorosa
revanche no movimento de 1968.
5. De Foucault a Negri: a progressiva transfiguração do Império
Nesse clima espiritual e político, a
cultura de orientação marxista começa a ser seduzida e subvertida por
autores e correntes de pensamento que deveriam, no entanto, ter sido
vistos com um certo distanciamento crítico. Apoiado desde o início por
Althusser34,
Foucault irrompe fortemente com sua análise da difusão ou da
onipresença do poder não só nas instituições e nas relações sociais, mas
também no dispositivo conceitual. É um discurso que fascina por seu
radicalismo e, além disso, permite um acerto de contas com o poder e a
ideocracia que estão na base do “socialismo real”, cuja crise se
manifesta cada vez mais nitidamente. Na realidade, o radicalismo não é
só aparente mas se transforma em seu contrário. A atitude que condena
toda relação de poder, aliás, toda forma de poder, tanto no âmbito da
sociedade, como no âmbito do discurso sobre a sociedade, torna muito
problemática, ou impossível, a “negação determinada” (bestimmte Negation),
aquela negação de um “conteúdo determinado” que, hegelianamente, é o
pressuposto de uma transformação real da sociedade, o pressuposto da
revolução35.
Além disso, esse esforço de individuação e desmistificação do domínio
em todas as suas formas manifesta lacunas surpreendentes, justamente
onde o domínio se manifesta em toda a sua brutalidade: a atenção
reservada ao domínio colonial é muito escassa ou inexistente.
Pierre Boulez, amigo de Foucault,
participa do protesto promovido por Sartre contra o massacre dos
argelinos em Paris. Foucault parece não aderir. De maneira geral, ele
não parece desempenhar nenhum papel na luta contra a tortura e a cruel
repressão com que o poder procura debelar a luta pela libertação
nacional. Foi justamente observado, a respeito de Foucault, que “sua
crítica do poder continua olhando para a Europa”36
. Mas é possível ir além: o colonialismo e a ideologia colonial estão
amplamente ausentes na história do mundo moderno e contemporâneo
reconstruída pelo filósofo francês. A julgar por essa história, o
“surgimento do racismo de Estado deve ser colocado no início do século XX”37, enquanto é o advento do Terceiro Reich que marca o “aparecimento de um Estado absolutamente racista”38.
Essa periodização foi posta em dúvida com muita antecedência pelos
abolicionistas que, no século XIX, queimavam em praça pública a
Constituição americana, tachada de ser um pacto com o diabo por
consagrar a escravidão racial; ou aqueles abolicionistas que
recriminavam a lei sobre os escravos fugitivos de 1850 por ela obrigar
todo cidadão estadunidense “a se tornar um caçador de homens”: era
passível de punição não só quem tentasse esconder ou ajudar o negro
perseguido pelos seus legítimos proprietários, mas também quem não
colaborasse para a sua captura39.
Como justificativa parcial de Foucault, poder-se-ia dizer que ele
ignora esse capítulo da história; mas, pelo menos, ele poderia ter lido o
comentário de Marx sobre a Fugitive Slave Law: “Exercer a
função de caçador de escravos por conta dos proprietários sulistas de
escravos parecia ser a tarefa constitucional do Norte” (MEW, XV, 333).
Em todo caso, não estamos diante de um racismo que se manifesta apenas
no âmbito da sociedade civil: o que decide a colocação social e o
destino de um indivíduo, na base de normas jurídicas e constitucionais
explícitas, é sua pertença racial. A realidade do Estado racial surge
com mais clareza nos Estados Unidos antes da Guerra de Secessão do que
no Terceiro Reich: segundo as leis de Nuremberg, o que definia o judeu
era também a pertença à religião judaica deste ou daquele seu
antepassado, enquanto nos EUA a religião não exercia nenhuma função na
definição do negro. O sangue decidia tudo: one drop rule. Hitler
não possuía escravos (nem negros, nem judeus), enquanto nas primeiras
décadas de história da república norteamericana quase todos os
presidentes são proprietários de escravos (negros).
Se não na história dos Estados Unidos,
Foucault poderia ter se concentrado na história da Confederação
Secessionista ou da África do Sul, ou poderia ter manifestado uma
consideração de caráter global: se analisarmos os países capitalistas
juntamente com as colônias que eles possuíam, podemos perceber
facilmente que o fenômeno denunciado por Ho Chi Minh em relação à
Indochina tem um caráter geral: estamos diante de uma dupla legislação,
uma para a raça dos conquistadores, outra para a raça dos conquistados.
Nesse sentido, o Estado racial segue como uma sombra a história do
colonialismo em seu conjunto; só que esse fenômeno se apresenta com mais
evidência nos Estados Unidos por causa da contiguidade espacial em que
vivem diferentes raças. Mas Foucault não dedica nenhuma atenção à
história dos povos coloniais ou de origem colonial.
A história da ideologia racial traçada
pelo filósofo francês também faz pensar. Assim, “na metade do século
XIX”, em contraposição à tradição da Escola dos Anais empenhada em
consagrar a soberania, afirma-se um discurso completamente novo,
antiautoritário e revolucionário, que decompõe a sociedade em raças (ou
classes) em luta e introduz “um princípio de heterogeneidade: a história
de uns não é a história de outros”40.
Entretanto, algum tempo depois, verifica-se uma reviravolta: “a ideia
de raça, com tudo aquilo que ela implica ao mesmo tempo em termos
monista, estatal e biológico, substituirá a ideia de luta de raças”.
Trata-se de uma verdadeira inversão: “O racismo representa,
literalmente, o discurso revolucionário, mas o representa pelo avesso”.
Permanece o fato que “a raiz da qual se parte é a mesma”41.
Desse quadro desapareceram “literalmente” os processos seculares de
racização e desumanização que acometem os povos coloniais, assim como as
grandes lutas pelo reconhecimento a começar daquela que, com a
radicalização da Revolução Francesa, leva à abolição da escravidão nas
colônias.
Enfim, Foucault acredita poder afirmar
que “a grande ritualização pública da morte desapareceu […] a partir do
final do século XIX”42. Na realidade, ainda nas primeiras décadas do século XX, nos EUA da white supremacy, o
linchamento dos negros é organizado como espetáculo de massa, anunciado
pela imprensa local, a que são chamados a assistir e participar também
mulheres e crianças e que termina com a distribuição de lembrancinhas do
rito sacrificial.
As remoções macroscópicas aqui
evidenciadas produzem resultados muito significativos também no plano
político. No momento que em Foucault ministra o seu curso no Collège de
France aqui analisado – estamos em 1976 – ainda vigora o regime de apartheid da
África do Sul racista. Por outro lado, cerca de dez anos antes, Hanna
Arendt chamara a atenção sobre a proibição que, em Israel, ainda atingia
os casamentos interraciais e sobre outras normas de inspiração análoga,
em paradoxal analogia com as “infames leis de Nuremberg de 1935”43.
Mas, quando o autor francês começa a procurar outra realidade para
comparar ao Terceiro Reich em termos de “racismo de Estado”, ele
consegue identificá-la apenas na União Soviética, país que desde sua
fundação tivera um papel decisivo na promoção da emancipação dos povos
coloniais e que, ainda em 1976, estava em primeiro plano na denúncia da
política antinegra e antiárabe conduzida, respectivamente, pela África
do Sul e por Israel!
Foi observado que Foucault exerce uma
influencia considerável sobre Antonio Negri. Com efeito… Hoje em dia,
importantes autores norte-americanos de orientação liberal descrevem a história de seu país como a história de uma Herrenvolk democrac y, ou seja, de uma democracia que vale apenas para oHerrenvolk (é
significativo o recurso de linguagem caro a Hitler), para os “povos dos
senhores” e que, por outro lado, não hesita em escravizar negros e
exterminar os peles-vermelhas da face da terra. Empire , no
entanto, fala em tom compungido de uma “democracia americana” que rompe
com a visão “transcendente” do poder, típica da tradição europeia44.
A apologia, porém, não para aqui. Tomemos uma figura central da
história do imperialismo americano, ou seja, Wilson. No momento em que
ele começa sua carreira política, o Sul, de onde provém, assiste a
irrupção dos esquadrões do Ku Klux Klan contra os negros. Mas o futuro
presidente toma a palavra, com um artigo do Atlantic Monthly de
janeiro de 1901, para pronunciar um libelo contra as vítimas: os
“negros” são “excitados por uma liberdade que não compreendem”, são
“insolentes e agressivos, preguiçosos e ávidos de prazeres”! Em todo
caso, a “emancipação repentina e absoluta dos negros” foi uma
catástrofe: causou uma situação “muito perigosa”, que a “as assembleias
legislativas do Sul” (isto é, os brancos) são obrigadas a enfrentar com
“medidas extraordinárias” (os linchamentos e o terror)45.
Wilson permanecerá sempre fiel a essa plataforma ideológica e política, em conformidade com a white supremacy no
plano interno e internacional. Nesse mesmo contexto pode ser colocado o
grande bastão agitado e usado contra a América Latina. Não se deve
esquecer que as próprias relações com os aliados europeus, muitas vezes,
são caracterizadas por uma rude Realpolitik . Não é por acaso que desde jovem Wilson sente a atração de Bismarck46.
Tudo isso não impede o presidente norte-americano de intervir na
Primeira Guerra Mundial em nome da missão democrática universal dos
Estados Unidos: é uma “guerra santa, a mais santa de todas as guerras”,
um “empreendimento transcendente”, do qual são protagonistas os
“cruzados” protagonistas americanos. Esse entrelaçamento singular da Realpolitik e da ideia religiosa de missão selada por uma relação privilegiada e direta com o Senhor, provoca a pungente ironia de Freud47.
Mas esse entrelaçamento torna mais fácil o recurso ao punho de ferro
contra a oposição pacifista. É uma repressão bem mais dura do que aquela
desencadeada no mesmo período na Alemanha guilhermina e que, não por
acaso, provoca a admiração de Mussolini, que está percorrendo a passos
largos o caminho que o conduzirá ao movimento esquadrista e ao fascismo48.
Agora, porém, leiamos Negri (e Hardt): o que caracteriza Wilson é “uma
ideologia pacifi sta internacionalista”, bem distante da “ideologia
imperialista tipicamente europeia”49! Desde sempre, os ideólogos do Manifest Destiny insistem
no primado moral e político dos Estados Unidos, na exceção, ou melhor,
no “excepcionalismo” representado por um país, que é a única ilha de
liberdade num imenso oceano de despotismo: Empire não argumenta de maneira diferente.
A essa altura proponho uma espécie de
exercício intelectual ou, se quisermos, de jogo. Confrontemos dois
trechos de dois autores sensivelmente diferentes entre si, mas ambos
empenhados em contrapor positivamente os Estados Unidos à Europa. O
primeiro celebra a “experiência americana”, ressaltando “a diferença
entre uma nação concebida na liberdade e devota ao princípio segundo o
qual todos os homens foram criados iguais e as nações do velho
continente, que certamente não foram concebidas na liberdade”50.
Vejamos agora o que diz o segundo:
“O que era a democracia
americana senão uma democracia fundada no êxodo, em valores afirmativos
e não dialéticos, no pluralismo e a liberdade? Esses mesmos valores –
juntamente com a ideia da nova fronteira – não alimentavam continuamente
o movimento expansivo do seu fundamento democrático para além das
abstrações da nação, da etnia e da religião? […] Quando Hannah Arendt
escrevia que a Revolução Americana era superior à Revolução Francesa,
pois a Revolução Americana devia ser entendida como uma busca sem fi m
da liberdade política, enquanto que a Revolução Francesa havia sido uma
luta limitada em torno da escassez e da desigualdade, ela exaltava um
ideal de liberdade que os europeus tinham perdido, mas que
reterritorializavam nos Estados Unidos”51.
Qual dos dois trechos aqui citados é mais
apologético? É difícil dizer, embora o segundo pareça mais inspirado e
lírico: ele foi escrito por Negri (e Hardt), enquanto o primeiro é de
Leo Strauss, o autor de referência dos neoconservadores americanos! Vem à
mente a observação de Marx a respeito de Bakunin que, com todo seu
radicalismo anti-estatalista, acaba poupando a Inglaterra, “o Estado
propriamente capitalista”, aquele que constitui “a ponta de lança da
sociedade burguesa na Europa.” (MEW, XVIII, 610 e 608). O anarquismo dos
nossos dias vai além, poupando o país que, aos olhos de uma grande e
crescente opinião pública mundial, é sinônimo não só de capitalismo, mas
também de militarismo e imperialismo. É um país que, aos olhos de
eminentes historiadores norte-americanos de orientação liberal, encarna
um “excepcionalismo” bem diferente daquele imaginado por Strauss, Negri e
Hardt: “Só nos Estados Unidos houve uma ligação estável e direta entre
propriedade em escravos e poder político. Só nos EUA os proprietários de
escravos tiveram um papel decisivo para fundar uma nação e criar
instituições representativas”52.
Sartre denunciava, na sua época, “aquele monstro supereuropeu, a América do Norte”53. Agora, porém, Empire não
só contrapõe positivamente os Estados Unidos à Europa, mas subscreve,
ainda, a tese de Arendt sobre a nítida superioridade da Revolução
Americana em relação à Revolução Francesa: é evidente que nesse
confronto em preto e branco a deportação e a dizimação dos
peles-vermelhas e a escravidão dos negros, desenvolvida vigorosamente
pela primeira e abolida pela segunda, não exercem nenhum papel. Negri e
Hardt não se deixam impressionar pelo fato que, junto com o jacobinismo,
Arendt arrasta também Marx para o banco dos réus, o autor da “doutrina
politicamente mais prejudicial da Idade Moderna”, o responsável por “uma
verdadeira capitulação da liberdade diante da necessidade”: nisso ele
deixou-se influenciar por “seu mestre de revolução, Robespierre” e
influenciou, de forma ruinosa, por sua vez, “seu maior discípulo, Lênin”54.
Portanto, juntamente com a condenação sem atenuantes das duas
Revoluções que puseram em discussão o sistema mundial da escravidão e da
opressão colonial, Negri e Hardt subescrevem a liquidação do filósofo
que, ao condenar a escravidão assalariada praticada na metrópole,
remete, às vezes de modo explícito, outras de modo implícito, à
escravidão propriamente dita que subsiste nas colônias. É a
autodissolução do “marxismo ocidental”.
6. “Marxismo ocidental”, “marxismo oriental”
A essa altura, é oportuno examinar de
novo a distinção-contraposição formulada por Perry Anderson, à época,
entre “marxismo ocidental” e “marxismo oriental”55.
Primeiramente, convém analisar as condições históricas diferentes em
que um e outro viveram e operaram. Partiremos de 1917. Se no Ocidente
prevalece, em primeiro lugar, a denúncia das consequências nefastas (a
carnificina e o afundamento da democracia) provocadas pela competição e
pela guerra interimperialista, no Oriente, ao contrário, a Revolução de
Outubro tem uma repercussão extraordinária graças ao apelo aos “escravos
das colônias” para quebrar as correntes da opressão e da humilhação
nacional. Se no Ocidente o Estado-nação era o Moloc sanguinário que
sacrificava milhões de homens à sede de domínio e aos interesses do
grande capital, no Oriente era o objetivo a ser alcançado para livrar-se
do jugo colonial e acabar com as práticas escravagistas e genocidas
realizadas pelas grandes potências capitalistas contra os bárbaros. Nas
duas áreas em que o mundo estava dividido, o imperialismo era percebido
de modo diferente; não há contradição, e sim plena convergência entre
esses dois aspectos. Entretanto, o marxismo ocidental e o marxismo
oriental nunca se encontraram? Será que o primeiro nunca compreendeu
realmente o segundo?
É preciso fazer uma ulterior
consideração. A partir do momento em que se esboçam as primeiras
dificuldades e tragédias do regime nascido da Revolução de Outubro mas
sobretudo a partir do momento em que se evidencia a crise do “socialismo
real”, a divergência entre marxistas orientais e marxistas ocidentais
assistiu à contraposição entre marxistas que, de um lado, exercem o
poder e marxistas que, de outro, estão na oposição e se concentram cada
vez mais na “teoria crítica”, na “desconstrução”, aliás, na denúncia do
poder e das relações de poder como tais. Está aqui precisamente o ato de
nascimento do “marxismo ocidental”, o qual, distanciando-se
progressivamente do poder, julga identificar a condição privilegiada
para redescobrir o marxismo “autêntico”, não mais reduzido à ideologia
de Estado.
Contudo, esta autoconsciência orgulhosa
e, talvez, arrogante, possui um fundamento real? Há o outro lado da
moeda, muitas vezes esquecido. Poder-se-ia dizer que o marxismo oriental
encontrou-se numa situação mais favorável para compreender e assimilar
uma tese essencial de Marx:
“A profunda hipocrisia,
a intrínseca barbárie da civilização burguesa estão diante de nós sem
véus, não apenas nas grandes metrópoles, onde elas assumem formas
respeitáveis, mas voltemos os olhos às colônias, onde perambulam nuas”.
(MEW, IX, 225).
O marxismo ocidental, no entanto,
concentrou-se quase exclusivamente nas “formas respeitáveis” do domínio
burguês e capitalista. Após perder de vista a sorte que, em primeiro
lugar, estava reservada aos povos coloniais e de origem colonial, a
crítica do “socialismo real”, embora absolutamente necessária,
desembocou numa banal apologética liberal e numa liquidação
indiferenciada da história do comunismo do século XX. Esclarecedora é a
parábola de Colletti, discípulo de Della Volpe. Mas não menos
significativa é a atitude de dois autores que continuam sendo uma
referência para a esquerda. Falando da União Soviética de Stalin (e
implicitamente de todos os países, que tiveram de curvar-se à lógica do
“socialismo num só país”), Hardt e Negri escrevem: “É uma trágica ironia
do destino que, na Europa, o socialismo nacionalista acabasse por
assemelhar-se ao nacionalsocialismo […]. A máquina abstrata da soberania
constituía o centro de ambos os sistemas”56.
Nesse balanço histórico temerário, os povos em condições coloniais ou
semicoloniais continuam sem desempenhar nenhum papel. Dois países são
tranquilamente comparados e assimilados, dos quais o primeiro deu um
forte impulso ao processo de descolonização, e o segundo se propôs
herdar e radicalizar a tradição colonial, chegando ao ponto de
considerá-la atual na própria Europa oriental.
Se, por outro lado, considerarmos o mundo
colonial, o balanço histórico do século XX é bem diferente daquele tão
caro à ideologia dominante (e, hoje, até mesmo para os sobreviventes do
“marxismo ocidental”). Mesmo concentrando a atenção exclusivamente na
“democracia formal”, ou seja, no governo da lei e nas liberdades
clássicas da tradição liberal, podemos dizer que as sociedades nascidas
do Outubro Revolucionário se fecharam sobre si mesmas e acabaram
anulando toda forma de democracia; portanto, ao mesmo tempo, elas
estimularam a demanda por democracia e emancipação, por reconhecimento,
as demandas provenientes dos países coloniais ou dos países colocados na
periferia da metrópole capitalista. Neste segundo caso, foi justamente a
metrópole democrático-burguesa que sufocou no sangue as reivindicações
democráticas.
A influência positiva da União Soviética e
do “campo socialista” pode ser constatada também no que diz respeito a
uma população de origem colonial colocada no próprio coração da
metrópole capitalista. Refiro-me aos afro-americanos. Eles são oprimidos
por um regime da white supremacy terrorista no momento em que
eclode a Revolução de Outubro. Mas é a partir dela que se percebe uma
nova inquietação entre os negros que, sem se deixar intimidar pela caça
às bruxas, declaram: “Se lutar pelos próprios direitos significa ser
bolchevista, pois bem, nós somos bolchevistas e os outros devem se
resignar”57.
Façamos um salto de quinze anos. É o período mais trágico na história
da União Soviética. Imposta fundamentalmente do alto e de fora, a
coletivização da agricultura difundiu o gulag em larga escala,
enquanto no horizonte vislumbra-se o Grande Terror. É interessante ver,
contudo, de que maneira continua sendo recebido pelos afro-americanos o
país nascido da Revolução de Outubro. Eles, graças à ação do Partido
Comunista dos Estados Unidos, começam a receber aquilo que o regime de
supremacia branca obstinadamente lhes negava: uma cultura que ia além da
instrução elementar, tradicionalmente dada àqueles que estavam
destinados a fornecer trabalho semisservil a serviço da raça dos
senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo Partido Comunista
no Norte dos EUA ou nas escolas de Moscou, os negros se empenham no
estudo da economia, da política e da história mundial; questionam essas
disciplinas para compreender as razões do destino cruel a eles reservado
num país que se vangloria, no entanto, de ser o campeão da liberdade.
Ocorre uma mudança profunda naqueles que frequentam essas escolas: a
“impudência” que lhes é recriminada pelo regime da white supremacy é,
na realidade, a autoestima até aquele momento cerceada e esmagada . Uma
mulher negra, delegada no Congresso Internacional das Mulheres contra a
Guerra e o Fascismo, realizado em Paris em 1934, ficou profundamente
impressionada pelas relações de igualdade e fraternidade, apesar das
diferenças de língua e de raça, que se instauram entre as participantes
desta iniciativa promovida pelos comunistas. “Era o paraíso na terra”.
Aqueles que chegam em Moscou – observa um historiador estadunidense
contemporâneo – “experimentam um sentido de liberdade inaudito no Sul”
dos EUA. Um negro se apaixona por uma mulher branca soviética e casasse
com ela, ainda que mais tarde, ao voltar para a pátria, não possa
trazê-la consigo, conhecendo bem o destino que no Sul aguarda os que se
mancham com a culpa da miscegenation e com o abastardamento racial58. Contudo, mesmo onde grassa o regime da white supremacy, percebe-se um clima novo: olha-se com esperança para a União Soviética e para Stalin como
o “novo Lincoln”, o Lincoln que acabaria desta vez, de maneira
definitiva, com a escravidão dos negros, a opressão, a degradação, a
humilhação, a violência e os linchamentos que continuavam sofrendo59.
Essas esperanças não foram totalmente
frustradas. Pensemos no período e nas modalidades que caracterizam o fim
do regime de supremacia branca. Em dezembro de 1952, o ministro da
Justiça norte-americano envia uma carta eloquente à Suprema Corte,
empenhada em discutir a questão da integração nas escolas públicas: “A
discriminação racial alimenta a propaganda comunista e suscita dúvidas
também entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé
democrática”. Washington – observa o historiador norte-americano que em
nossos dias reconstrói esse acontecimento – corria o risco de se tornar
inimigo das “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo mas no
próprio coração dos Estados Unidos: aqui também a propaganda comunista
conseguia um sucesso considerável na sua tentativa de ganhar os negros
para a “causa revolucionária” abalando-lhes a “fé nas instituições
americanas”60.
Não há dúvida: nesse caso teve papel decisivo a preocupação com o
desafio representado objetivamente pela URSS de Stalin e pela influência
exercida por ela sobre povos coloniais e de origem colonial.
Vimos que, ao contrário de grande parte
do marxismo ocidental, o “marxismo oriental” soube focalizar bem a
barbárie colonial do capitalismo. Mas não se trata só disso. Lembremos
que Lênin subscreve e considera “magnífica” a “fórmula” da Lógica hegeliana segundo a qual o universal deve ser de forma tal que contenha em si “a riqueza do particular”61.
É em homenagem a esse enfoque que personalidades como Lênin, Ho Chi
Min, Mao, Castro etc. nunca puseram em contradição patriotismo e
internacionalismo, aliás, sempre enxergaram na luta de libertação das
nações oprimidas um momento essencial da marcha do internacionalismo e
do universalismo, daquilo que Gramsci define como “humanismo integral”.
Não é assim porém no marxismo ocidental. Por um lado – pensemos
sobretudo em Althusser – as categorias de humanidade, povo e nação foram
vistas com suspeita, como traição da luta de classes. Trata-se de uma
atitude de purismo supersticioso, que esquece como as categorias de
socialismo, revolução e classe operária podem ser submetidas em sentido
conservador e até mesmo reacionário (como no caso da National-sozialistische deutsche Arbeiterpartei de
funesta e hitleriana memória). Em todo caso, as preocupações de
Althusser podem ser respondidas com uma penetrante observação de Mao:
“Em última análise, a luta nacional é uma questão de luta de classes” 62.
Por outro lado – pense-se sobretudo em
Adorno e atualmente em Negri – difundiu-se o desprezo para com as lutas
de libertação nacional, postas em contradição com o internacionalismo e o
universalismo. Não por acaso, hoje em dia, é grande o desprezo que os
sobreviventes do marxismo ocidental ostentam pelos esforços que países
como a China e o Vietnã fazem para consolidar a independência, também no
plano econômico, de modo a poder dar – declara Deng Xiaoping em 1987 –
“uma contribuição real à humanidade”63.
De um lado ou de outro, devido à visão reducionista da luta de classes
ou da visão abstrata do universal, o marxismo ocidental, em geral, não
conseguiu entender a unidade entre universal e particular.
Esse apego a uma visão abstrata e pura do
universal, se de um lado impediu uma adequada compreensão dos
movimentos de libertação nacional (que continuam a se desenvolver também
depois da conquista o poder), de outro tornou impossível a compreensão
de um motivo de fundo da crise do “campo socialista”. A ruptura entre
URSS e Iugoslávia em 1948, e depois a invasão soviética da Hungria e da
Tchecoslováquia, os conflitos intensos, as quase-guerras ou as guerras
propriamente ditas que surgem entre URSS e China, China e Vietnã e
Vietnã e Camboja, tudo isso revela como é difícil a necessária obra de
conciliação do internacionalismo (o universal) com o respeito dos
interesses, das identidades, das sensibilidades nacionais (o
particular). O Partido Comunista Chinês64
mencionou esse problema algumas vezes em seus melhores momentos; quanto
ao marxismo ocidental, este quase sempre leu esses conflitos de modo
estereotipado como choques entre despotismo estalinista e espírito
libertário, entre burocracia e massas, ou entre coerência revolucionária
de um lado e oportunismo ou revisionismo de outro, ou ainda, de modo
mais apressado, como demonstração do estranhamento substancial de ambas
as partes em luta pelo “autêntico” socialismo e marxismo.
Por fim, o marxismo ocidental desfrutou
de sua distância do poder como uma condição privilegiada ou exclusiva
para o desenvolvimento das potencialidades críticas da teoria de Marx.
Mas se por um lado a distância do poder e o desdém diante do poder podem
ofuscar a lucidez do olhar, por outro podem turvar a visão, tornando
mais difícil a compreensão dos conflitos mundiais, favorecendo uma
atitude idealista e, em última análise, a fuga da história. Só assim
pode-se explicar a tese de Bloch segundo a qual a revolução burguesa
“limitou a igualdade à igualdade política”. Mesmo querendo ocupar-se
exclusivamente da metrópole ocidental, trata-se de uma afirmação
historicamente insustentável: basta pensar na longa duração da
discriminação censitária e sexual.
No conjunto, com o passar dos anos, o
marxismo ocidental acabou involuntariamente representando duas figuras
fundamentais da filosofia hegeliana: na medida em que se satisfaz com a
crítica e, aliás, encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o
problema de formular alternativas possíveis e de construir um bloco
histórico alternativo àquele dominante, ele é a ilustração da
sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da distância do poder
como uma condição da própria pureza, ele encarna a bela alma. Talvez não
seja por acaso que hoje tenha tanto sucesso no ambiente de esquerda um
livro, que desde o título convida a mudar o mundo sem tomar o poder65. A autodissolução do marxismo ocidental se configura aqui como o abandono do terreno da política e o desembarque na religião.
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Notas
1 Artigo publicado originalmente na revista de Estudos sociológicos de Araraquara (v.16, n.30, p.213-242, 2011). A tradução e a revisão técnica são de Carlo Alberto Dastoli.NE: o artigo está publicado de acordo com a versão apresentada originalmente, inclusive a normalização, na obra: Wie der «westliche Marxismus» geboren wurde und gestorben ist. In: Erich Hahn, Silvia Holz-Markun (eds.), Die Lust am Widerspruch. Theorie der Dialektik-Dialektik der Theorie. Symposium aus Anlass des 80. Geburtstag von Hans Heinz Holz, Trafo, Berlim, 2008, pp. 35-60.
2 Bobbio, 1977, pp. 164, 167 e 280.
3 Mill, 1972, p. 73.
4 Bloch, 1961, p. 157.
5 Bloch, 1961, p. 80.
6 Mao Tsé-tung, 1998, p. 377.
7 Bloch, 1961, p. 7; Mao Tsé-tung, 1998, p. 377.
8 Bloch, 1961, p. 79; Mao Tsé-tung, 1998, p. 379.
9 In: Lacouture, 1967, p. 37.
10 Sostanze infiammabili nella politica mondiale (1908), In: Lênin 1955-70, vol. XV, pp. 178-9.
11 Primeiro esboço de teses sobre a questão nacional e colonial (junho 1920), In: Lênin 1955-70, vol. XXXI, p. 162.
12 Togliatti, 1974-84, p. 866.
13 Althusser, 1967, pp. 17-8.
14 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 149.
15 Althusser, 1967, p. 06.
16 Nietzsche, 1988, vol. I, p. 117 ( O Nascimento da Tragédia , 18)
17 Nietzsche, 1988, vol. XII, p. 503.
18 Nietzsche, 1988, vol. XII, p. 491-2.
19 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 150.
20 Althusser, 1969, p. 24.
21 Adorno, 1970, pp. 304-5 e 307.
22 Ho Chi Minh, 1969, pp. 75 e 78.
23 In: Lacouture, 1967, pp 39-40.
24 Mao Tsé-tung, 1998, pp. 87-8.
25 Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação (maio de 1914), ver Lênin 1955-70, vol. XX, p. 416-7.
26 Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918), In: Lênin 1955-70, vol. XXVI, p. 403.
27 Hardt, Negri, 2002, pp. 133 e 112.
28 Mao Tsé-tung, 1969-75, vol. IV, p. 467 ( A falência da concepção idealista da história, 16 de setembro de 1949).
29 Le Duan, 1969, pp. 61-3.
30 Tronti, 1966, p. 263.
31 Lin Piao, 1969, pp. 61-2.
34 In: Althusser, Balibar, 1968, p. 27.
35 Hegel, 1969-79, vol. V, p. 49.
36 Taureck, 2004, pp.40 e 116.
37 Foucault, 1990, p. 52.
38 Foucault, 1990, p. 169.
39 Cf. Losurdo, 2005a, cap. IV, 2.
40 Foucault, 1990, pp. 62 e 56.
41 Foucault, 1990, p. 63.
42 Foucault, 1990, p. 160.
43 Arendt, 1993, pp. 15-6.
44 Hardt, Negri, 2002. p. 158.
45 In: Logan, 1997 p. 378.
46 Heckscher, 1991, pp. 44 e 298.
47 Losurdo, 2007, cap. VI, 11 e cap. II, 1.
48 Losurdo, 1993, cap. 5, 2 e 7.
49 Hardt, Negri, 2002, pp. 166-7.
50 Strauss, 1998, pp. 43-4.
51 Hardt, Negri, 2002, pp. 352-3.
52 Davis, 1982, p. 33.
53 Sartre, 1967, p. XXII.
54 Arendt, 1983, pp. 65-6.
55 Anderson, 1997.
56 Hardt, Negri, 2002, p. 115.
57 Franklin, 1983, p. 398.
58 Kelley, 1990, pp. 94-6.
59 Kelley, 1990, p. 100.
60 Cf. Losurdo, 2005a, cap. X, 6.
61 Lênin, 1969, p. 89.
62 Mao Tsé-tung, 1998, pp. 379.
63 Deng Xiaoping, 1994, p. 222.
64 Losurdo 2005b, cap. V, 2.
65 Halloway, 2004.
Losurdo na TV Boitempo
A TV Boitempo está atualmente preparando a publicação de uma série inédita de vídeos com Domenico Losurdo sobre comunismo e revolução no século XXI, gravados aqui na sede da editora durante sua última visita ao Brasil. Enquanto o material não fica pronto, fizemos uma seleção de vídeos do canal com o filósofo, a começar pelo espirituoso depoimento em apoio aos atos contra o governo ilegítimo de Michel Temer e suas reformas, que acabaram redundando no cancelamento de uma de suas conferências aqui em São Paulo.youtube https://www.youtube.com/watch?v=FBt-iakV4NE
youtube https://www.youtube.com/watch?v=494Y05UtreA
youtube https://www.youtube.com/watch?v=f1mZ6xfs9Eo
youtube https://www.youtube.com/watch?v=aQXjZAjT-Vc
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Domenico Losurdo (1941-2018)
foi um filósofo italiano marxista. Professor de História da Filosofia
na Universidade de Urbino, doutorou-se com uma tese sobre Karl
Rosenkranz. Pela Boitempo, lançou A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010), A luta de classes: uma história política e filosófica, Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917 (2017) e o mais recente O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer (2018). Falecido na manhã de 28 de junho de 2018, sua obra deixa uma profunda marca no marxismo do século XXI.
1 comentário em Losurdo: Como nasceu e como morreu o “marxismo ocidental”
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Um grande mestre…guerreiro como poucos das profundezas e dos alicerces do marxismo que une ou divide a todos nós. Não será esquecido, camarada!Curtir