O “anarquismo jurídico”: Lenin e Pachukanis versus Ingo Elbe
por LavraPalavra
Por Gabriel Landi Fazzio
“Qualquer
crítica que contribua para tornar mais vigorosa e consciente nossa luta
de classe para a realização de nosso objetivo final merece nosso
agradecimento. Mas uma crítica procurando retroceder nosso movimento,
fazê-lo abandonar a luta de classe e o objetivo final – tal crítica,
longe de ser um fator de progresso, só seria um fermento de
decomposição”.
Rosa Luxemburgo, in “Liberdade de crítica”.
No Brasil, a chamada “crítica marxista do direito” vem cumprindo um
papel propagandístico cada vez mais destacado, em especial no que diz
respeito ao combate às ilusões legalistas (desmistificando a crença na
neutralidade do direito e do Estado, e na a possibilidade de uma mudança
“gradual por dentro”), típicas do reformismo que predomina atualmente
em nosso movimento de massas. Nesse cenário, há muito a se aprender com
os estudos que perseguem a linha investigativa iniciada pelo camarada
jurista bolchevique Pachukanis. Por outro lado, a crítica marxista do
direito padece de inúmeras debilidades, práticas e teóricas. É digna de
destaque, nesse sentido, a debilidade do diálogo desta crítica com toda a
produção teórica de Lenin. Nesse ponto teórico encontramos, talvez, a
síntese das mais diversas debilidades práticas, da dificuldade desta
crítica de se conectar com nitidez ao debate sobre “táticas”,
“estratégia”, “formas de luta”, “palavras de ordem”, etc, e todo o
arsenal categorial tipicamente leninista.
Só se levarmos essa profunda debilidade em conta será possível compreender o recém-traduzido artigo do professor Ingo Elbe, “Pachukanis versus Lenin: dois paradigmas da crítica marxista do Estado”.
No artigo, o professor pretende, com base na contraposição de Lenin a
Pachukanis, apresentar “dois paradigmas marxistas opostos de crítica do
Estado e do direito”. Afirma que “a escolha das posições não é
arbitrária: enquanto as concepções de Lenin sobre o Estado como
instrumento da classe dominante – de modo frequentemente atenuado e
absolutamente paradoxal – elevaram-se ao fundamento de um marxismo
estatal-oficial e ainda hoje persistem em muitas mentes críticas à
globalização, a abordagem analítico-formal de Pachukanis pode ser tomada
como fonte teórica importante do heterodoxo e assim chamado ‘debate da
derivação do Estado’, germinado sobretudo na Alemanha”. (ELBE, p.
25-26).
No
que diz respeito ao “paradigma pachukaniano”, Elbe sintetiza todos
lugares comuns da crítica marxista do direito: ao longo de algumas
páginas, se resume à exposição do caráter mercantil da subjetividade
jurídica, baseando-se largamente em referências bibliográficas a “Teoria Geral do Direito e marxismo”. Como não há tanto o que objetar neste tocante, não esmiuçaremos tal aspecto da exposição: Elbe
expõe a relação de identidade histórica e lógica existente entre a
equivalência dos valores em uma relação mercantil, por um lado, e a
igualdade jurídica dos sujeitos, por outro.
A única sombra que há de Lenin em todo o artigo de Elbe é seu nome. Contudo, seguro de suas impressões, o autor assevera:
“Uma
contraposição radical à concepção de Lenin sobre o direito e o Estado
foi formulada pelo jurista soviético Evguiéni Pachukanis, cuja abordagem
permaneceu singular, desde seu resgate até finais da década de 1960.
Em sua obra ‘Teoria Geral do Direito e marxismo’,
publicada pela primeira vez em 1921, Pachukanis consegue empreender a
quebra paradigmática do materialismo marxiano prático-crítico (ou
materialismo teórico-social) a partir de modelos de explicação do
fetichismo burguês no campo da teoria do direito”. [...] (ELBE, p. 26)
Acerca destes supostos “modelos de explicação do fetichismo burguês no campo da teoria do direito”, Elbe reitera:
“Esse princípio da subjetividade jurídica, que se materializa na personalidade livre, igual e plenamente capaz, não
se constitui como uma mera manipulação ideológica da burguesia, como
Lenin pensava, mas um princípio real de juridicização das relações
humanas no modo de produção capitalista, alicerçado na troca mercantil
universalizada”. (ELBE, p. 28, grifo nosso)
Contudo, na contramão da simplificação grosseira de Elbe, é o próprio Pachukanis quem nota, em seu “Lenin e os problemas do direito” (publicado menos de um ano após “Teoria Geral do Direito e marxismo”) a profunda compreensão de Lenin acerca da relação umbilical entre troca mercantil e forma jurídica:
“Em um de seus primeiros trabalhos [“Quem são os ‘amigos do povo’ e como lutam contra os social-democratas?”], Lenin lembra aos nossos populistas [narodnik]: ‘Marx aponta repetidamente’, escreve ele, ‘como na
fundação da igualdade civil, liberdade de contrato e princípios
similares do Rechtsstaat (Estado de Direito), aí reside a relação entre
produtores de mercadorias’. Lenin começa suas teses sobre a questão nacional e colonial com a mesma crítica materialista da ideologia da igualdade:
‘A
democracia burguesa é, por sua própria natureza, caracterizada por uma
declaração abstrata ou formal da questão da igualdade em geral,
incluindo a da igualdade nacional. Sob a aparência da igualdade
universal da personalidade humana, a democracia burguesa proclama a
igualdade formal ou legal do proprietário e do proletário, do explorador
e do explorado, levando assim as classes subjugadas ao maior engano. A
ideia de igualdade em si mesma, sendo um reflexo das relações de
produção de mercadorias, é transformada pela burguesia numa arma de luta
para se opor à liquidação de classes,
sob o pretexto da supostamente absoluta igualdade das personalidades
humanas. O significado real da demanda por igualdade consiste apenas na
demanda pela eliminação das classes.’” (PACHUKANIS, 2018, grifos e
colchetes nossos)
Lenin não define, de modo algum, a subjetividade jurídica como “mera
manipulação ideológica da burguesia”. Compreendendo a “ideia de
igualdade em si mesma” como “reflexo das relações de produção de
mercadorias”, apenas faz notar que, em um segundo momento, esses
“princípios do Estado de Direito” se tornam também armas na luta
ideológica da burguesia pela submissão voluntária do proletariado. A
ideologia jurídica é dialeticamente concebida tanto como forma social fundada nas trocas mercantis quanto
como um instrumento de luta ideológica da burguesia. Em Lenin, as
formas ideológicas, superestruturais, em momento algum aparecem como
“mera manipulação”, mas como formas que operam materialmente, fundadas
em relações sociais objetivas. A questão é mais complexa do que Elbe
compreende: o "engano" que Lenin menciona não é uma denúncia da
"falsidade" da igualdade jurídica, mas de seus limites. Com efeito,
burgueses e proletários são iguais - mais a igualdade jurídica entre
burgueses e proletários é sua a igualdade de status enquanto
proprietários de mercadorias, e a igualdade dos valores cujas vontades
eles subjetivam ao trocarem; não a "igualdade universal da personalidade
humana".
Essa é uma noção elementar da oposição leninista (que remonta Engels)
entre marxismo vulgar, “objetivista” (e, com isso, metafísico), e o
materialismo dialético: os “reflexos”, as formas jurídicas, políticas,
religiosas, em suma, ideológicas, também exercitam sua própria
influência “derivada” sobre o curso dos acontecimentos históricos, que
se explicam portanto pelo movimento total da base econômica e de suas
formas superestruturais, derivadas.
Em outro de seus textos de juventude (“O
conteúdo econômico dos ensinamentos dos Narodniks e a crítica destes no
livro do Sr. Struve - os reflexos do marxismo na literatura burguesa”),
Lenin dá outra demonstração de compreender que não se pode tratar a
igualdade jurídica como “mera manipulação ideológica”. No texto, entre
outras reflexões sobre o direito e o Estado moderno, associa firmemente a
“juridicização das relações humanas” ao “modo de produção capitalista,
alicerçado na troca mercantil”, como elabora Elbe. Na Rússia pós-reforma
(abolição da servidão), afirma Lenin, a “criação de um novo processo
civil ‘contencioso’ assegurou o mesmo tipo de ‘igualdade’ nas cortes que
aquela corporificada em vida pelo ‘trabalho livre’ e sua venda ao
capital”.
Na verdade, é o professor Ingo Elbe que compreendeu mal a questão:
nenhuma forma ideológica é “mera manipulação” e, nem por isso, se trata
menos de uma forma ideológica. Se é verdade que o “princípio
real de juridicização das relações humanas” está “alicerçado na troca
mercantil universalizada”, também é verdade que essa apresentação
jurídica das relações de produção não é imediatamente a relação de produção.
Um bom exemplo está em pensarmos o caso das formas religiosas: mais do que “mero” “ópio do povo”, a religião é também
“o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração”. “A
miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de
outro, o protesto contra ela”, ainda que o um protesto mistificado.
(MARX, in “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”).
Não é uma mera representação arbitrária da realidade, escolhida ao
acaso, mesmo que seja por excelência uma “forma mistificada”. Marx
chegou mesmo a afirmar, em “O Capital”:
“O
mundo religioso não é mais do que o reflexo do mundo real. Uma
sociedade em que o produto do trabalho toma geralmente a forma de
mercadoria e em que, portanto, a relação mais geral entre os produtores
consiste em comparar os valores dos seus produtos e, sob esta forma
material, em comparar entre si os seus trabalhos privados a título de
trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo, com o
seu culto do homem abstrato, – e sobretudo nos seus tipos burgueses,
protestantismo, deísmo, etc – o complemento religioso mais conveniente.”
Nem a forma ideológica religiosa é “mera manipulação”, para o marxismo.
Mas não ocorreria a nenhum marxista confundir entre as relações de
produção que dão causa a esta forma e esta forma em si. Também não
ocorrerá a ninguém argumentar de modo a contrapor o caráter ideológico e
mistificador destas formas sociais à materialidade com que tais
religiões motivam massas vultuosas de trabalhadores a aceitar
voluntariamente sua situação de exploração.
Outro contraste entre a caricatura que Elbe faz de Lenin e suas
verdadeiras posições pode ser obtido nitidamente a partir da afirmação:
“O
socialismo, por fim, mostra-se, segundo Pachukanis, como realizável por
meio da extinção do direito e do Estado em favor da regulação técnica
dos processos de produção consoante uma meta socialmente definida de
moto unitário. A base disso é a supressão (Aufhebung) de interesses
econômicos antagônicos e da valorização autorreferencial do capital. Na
transição socialista ainda existe, todavia, a forma jurídica de
coordenação dos processos de produção social. Uma caracterização dessas
relações jurídicas como ‘proletárias’ ou genuinamente socialista, como
Lenin e outros autores defenderam, é, porém, recusada categoricamente
por Pachukanis”. (ELBE, p. 33)
E, outra vez, Elbe não se vale de qualquer referência ao atribuir a
Lenin tal opinião. Contudo, a verdade é que não há nada de inovador ao
marxismo nesta consideração de Pachukanis, muito menos estranho a Lenin.
No capítulo V de “O Estado e a Revolução” (intitulado “As condições econômicas do fenecimento do Estado”!), Lenin já expõe completamente o problema (apenas desenvolvendo as próprias considerações já existentes na “Crítica do Programa de Gotha”
de Marx). Pedindo desde já perdão pela extensão da citação, acreditamos
que seja absolutamente necessária, ainda mais se considerarmos a já
mencionada completa ausência de referências no artigo de Elbe:
“É
essa sociedade comunista que acaba de sair dos flancos do capitalismo, e
que ainda traz todos os estigmas da velha sociedade, o que constitui
para Marx a ‘primeira’ fase, a fase inferior do comunismo.
Os
meios de produção deixaram de ser, nesse momento, a propriedade privada
de indivíduos, para pertencerem à sociedade inteira. Cada membro da
sociedade, executando uma certa parte do trabalho socialmente
necessário, recebe um certificado constatando que efetuou determinada
quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns
públicos, uma quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu.
Reina uma "igualdade" aparente.
Mas,
quando, tendo em vista a ordem social habitualmente chamada socialismo e
que Marx chama de primeira fase do comunismo, Lassalle diz que há nela
‘justa repartição’, aplicação do ‘direito igual de cada um ao produto
igual do trabalho’, Lassalle se engana e Marx explica por quê.
O ‘direito igual’, diz Marx, encontramo-lo aqui, com efeito, mas
é ainda o ‘direito burguês’, o qual, como todo direito, pressupõe uma
desigualdade. Todo direito consiste na aplicação de uma regra única a
diferentes pessoas, a pessoas que, de fato, não são nem idênticas nem
iguais. Por consequência, o ‘direito igual’ equivale a uma violação da igualdade e da justiça.
[...]
A
primeira fase do comunismo ainda não pode, pois, realizar a justiça e a
igualdade; hão de subsistir diferenças de riqueza e diferenças
injustas; mas, o que
não poderia subsistir é a exploração do homem pelo homem, pois que
ninguém poderá mais dispor, a título de propriedade privada, dos meios
de produção, das fábricas, das máquinas, da terra.
Destruindo a fórmula confusa e pequeno-burguesa de Lassalle, sobre a
‘desigualdade’ e a ‘justiça’ em geral, Marx indica as fases por que deve
passar a sociedade comunista, obrigada,
no início, a destruir apenas o ‘injusto’ açambarcamento privado dos
meios de produção, mas incapaz de destruir, ao mesmo tempo, a injusta
repartição dos objetos de consumo, conforme o trabalho e não conforme as
necessidades.
Os
economistas vulgares, e entre eles os professores burgueses, inclusive o
‘nosso’ Tugan, acusam continuamente os socialistas de não levarem em
conta a desigualdade dos homens e "sonharem" com a supressão dessa
desigualdade. Essas censuras, como o vemos, não fazem senão denunciar a
extrema ignorância dos senhores ideólogos burgueses.
Não só Marx leva em conta, muito precisamente, essa desigualdade inevitável, como ainda tem em conta o fato de que a
socialização dos meios de produção - o ‘socialismo’, no sentido
tradicional da palavra - não suprime, por si só, os vícios de repartição
e de desigualdade do ‘direito burguês’, que continua a predominar
enquanto os produtos forem repartidos ‘conforme o trabalho’.
Mas
isto, continua Marx, são dificuldades inevitáveis na primeira fase da
sociedade comunista, tal como saiu, depois de um longo e doloroso parto,
da sociedade capitalista. O direito não pode nunca estar em nível mais
elevado do que o estado econômico e do que o grau de divisão social
correspondente.
Assim, na
primeira fase da sociedade comunista, corretamente chamada socialismo, o
‘direito burguês’ é apenas parcialmente abolido, na medida em que a
revolução econômica foi realizada, isto é, apenas no que respeita aos
meios de produção. O ‘direito burguês’ atribui aos indivíduos a
propriedade privada daqueles. O socialismo faz deles propriedade comum. É
nisso, e somente nisso, que o ‘direito burguês’ é abolido.
Mas
ele subsiste em sua outra função: subsiste como regulador (fator
determinante) da repartição dos produtos e do trabalho entre os membros
da sociedade. ‘Quem não trabalha, não come’, este princípio socialista já está realizado; ‘para soma igual de trabalho, soma igual de produtos’,
este outro princípio socialista está igualmente realizado. Mas isso
ainda não é o comunismo e ainda não abole o ‘direito burguês’, que, a
pessoas desiguais e por uma soma desigual, realmente desigual, de
trabalho, atribui uma soma igual de produtos.
É
uma ‘dificuldade’, diz Marx, mas é uma dificuldade inevitável na
primeira fase do comunismo, pois, a não ser que se caia na utopia, não
se pode pensar que, logo que, o capitalismo, seja derrubado, os homens
saberão, de um dia para o outro, trabalhar para a sociedade sem normas
jurídicas de nenhuma espécie. A abolição do capitalismo não dá, aliás,
de uma só vez, as premissas econômicas de uma mudança semelhante.
Ora,
não há outras normas senão as do ‘direito burguês’. É por isso que
subsiste a necessidade de um Estado que, embora conservando a
propriedade comum dos meios de produção, conserva a igualdade do
trabalho e a igualdade da repartição.
O
Estado morre na medida em que não há mais capitalistas, em que não há
mais classes e em que, por conseguinte, não há mais necessidade de
esmagar nenhuma classe.
Mas,
o Estado ainda não sucumbiu de todo, pois que ainda resta salvaguardar o
‘direito burguês’ que consagra a desigualdade de fato. Para que o
Estado definhe completamente, é necessário o advento do comunismo
completo.
[...]
Marx continua:
‘Em
uma fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a
escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com
ela, os antagonismos entre o trabalho manual e o trabalho intelectual;
quando o trabalho tiver se tornado não só um meio de vida, mas também a
primeira necessidade da existência; quando, com o desenvolvimento dos
indivíduos, em todos os sentidos, as forças produtoras forem crescendo, e
todas as fontes da riqueza pública jorrarem abundantemente, só então, o
estreito horizonte do direito burguês será completamente ultrapassado e
a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: ‘De cada um conforme a
sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades’.’
Agora
é que podemos apreciar toda a justeza das observações de Engels, quando
cobre de impiedosos sarcasmos esse absurdo emparelhamento das palavras
‘liberdade’ e ‘Estado’. Enquanto existir Estado, não haverá liberdade;
quando reinar a liberdade, não haverá mais Estado.
[...]
O
Estado poderá desaparecer completamente quando a sociedade tiver
realizado o princípio: ‘de cada um conforme a sua capacidade, a cada um
segundo as suas necessidades’, isto é, quando se estiver tão habituado a
observar as regras primordiais da vida social e o trabalho se tiver
tornado tão produtivo, que toda a gente trabalhará voluntariamente,
conforme a sua capacidade. ‘O estreito horizonte do direito burguês’ –
com os seus cálculos à Shylock: ‘Por acaso, não terei trabalhado mais
meia hora que o meu vizinho? O meu vizinho não terá recebido salário
maior do que o meu’ - esse estreito horizonte será então ultrapassado. A
repartição dos produtos não mais exigirá que a sociedade destine a cada
um a parte de produtos que lhe cabe. Cada um será livre para ter
‘segundo as suas necessidades’.
Até
essa fase "superior" do comunismo, os socialistas reclamam, da
sociedade e do Estado, a fiscalização rigorosa do trabalho fornecido e
do consumo; mas, essa fiscalização deve começar pela expropriação dos
capitalistas e ser exercida pelo Estado dos operários e não pelo Estado dos funcionários.
A
defesa interesseira do capitalismo pelos ideólogos burgueses (e sua
camarilha, gênero Tseretelli, Tchernov & Cia.) consiste precisamente
em escamotear, com discussões e frases sobre um futuro longínquo, a
questão essencial da política de hoje: a expropriação dos capitalistas, a transformação de todos os cidadãos em trabalhadores,
empregados de um mesmo grande ‘sindicato de produção’, o Estado, e a
inteira subordinação de todo o trabalho desse sindicato a um Estado
verdadeiramente democrático, o Estado dos Sovietes dos deputados
operários e soldados.
Abordamos
aqui a questão da distinção científica entre o socialismo e o
comunismo, questão tocada por Engels na passagem precedentemente citada
sobre a impropriedade do nome de "social-democrata". Na
política, a diferença entre a primeira e a segunda fase do comunismo
tornar-se-á, com o tempo, sem dúvida, considerável, mas, atualmente, em
regime capitalista, seria ridículo fazer caso dela, e só alguns
anarquistas é que podem colocá-la em primeiro plano [...].
Mas
a diferença entre o socialismo e o comunismo é clara. Ao que se costuma
chamar socialismo Marx chamou a ‘primeira’ fase ou fase inferior da
sociedade comunista. Na medida em que os meios de produção se tornam
propriedade comum, pode aplicar-se a palavra ‘comunismo’, contanto que
não se esqueça que é esse um comunismo incompleto. O grande mérito da
exposição de Marx é também continuar fiel à dialética materialista e à
teoria do evolução, considerando o comunismo como alguma coisa que nasce
do capitalismo, por via de desenvolvimento. Em lugar de se apegar a
definições escolásticas, artificiais e imaginárias, a estéreis questões
de palavras (que é o socialismo? que é o comunismo?), Marx analisa o que
se poderia chamar de graus da maturidade econômica do comunismo.
Na
sua primeira fase, no seu primeiro estágio, o comunismo não pode,
economicamente, estar em plena maturação, completamente libertado das
tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí, esse fato interessante
de se continuar prisioneiro do ‘estreito horizonte do direito burguês’.
O direito burguês, no que concerne à repartição, pressupõe,
evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um
aparelho capaz de impor a observação de suas normas.
Segue-se
que, durante um certo tempo, não só o direito burguês, mais ainda o
Estado burguês, sem burguesia, subsistem em regime comunista!
Pode
parecer que isso seja um paradoxo ou um simples quebra-cabeça, e esta
censura é frequentemente feita ao marxismo por pessoas que nunca se
deram ao trabalho de estudar, por pouco que fosse, a sua substância
extraordinariamente profunda.
Mas,
a vida nos mostra a cada passo, na natureza e na sociedade, que os
vestígios do passado subsistem no presente. Não foi arbitrariamente que
Marx introduziu um pouco de ‘direito burguês’ no comunismo; ele não fez
mais do que constatar o que, econômica e politicamente, é inevitável
numa sociedade saída do capitalismo.
A
democracia tem uma enorme importância na luta da classe operária por
sua emancipação. Mas a democracia não é um limite que não possa ser
ultrapassado, e sim uma etapa no caminho que vai do feudalismo ao
capitalismo e do capitalismo ao comunismo.
Democracia
implica igualdade. Compreende-se a importância da luta do proletariado
pela igualdade e pelo próprio princípio dê igualdade, contanto que sejam
compreendidos como convém, no sentido da supressão das classes. Mas,
democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização
da igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios
de produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-á,
então, fatalmente, perante a humanidade, o problema do progresso
seguinte, o problema da passagem da igualdade formal à igualdade real
baseada no princípio: "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um
segundo as suas necessidades". Por que etapas, por que medidas práticas a
humanidade atingirá esse objetivo ideal, não o sabemos nem podemos
sabê-lo. Mas, o que importa é ver a imensa mentira contida na ideia
burguesa de que o socialismo é alguma coisa de morto, de rígido, de
estabelecido de uma vez por todas, quando, na realidade, só o socialismo
porá em marcha, em ritmo acelerado, a maioria da população, primeiro, e
depois, a população inteira, em todos os domínios da vida coletiva e da
vida privada.
A
democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. Por
consequência, como todo Estado, ela é o exercício organizado,
sistemático, da coação sobre os homens. Isso, por um lado. Mas, por
outro lado, é ela o reconhecimento formal da igualdade entre os
cidadãos, do direito igual de todos em determinar a forma do Estado e
administrá-lo. Segue-se que, a certa altura do seu desenvolvimento, a
democracia levanta, logo de início, contra o capitalismo, a classe
revolucionária do proletariado e lhe
fornece os meios de quebrar, de reduzir a migalhas, de aniquilar a
máquina burguesa do Estado, mesmo republicano, o exército permanente, a
polícia, o funcionalismo, e de substituir tudo isso por uma máquina mais
democrática, mas que nem por isso é menos uma máquina de Estado,
constituída pelas massas operárias armadas, preparando a organização de todo o povo em milícias.” (LENIN, 1917, grifos nossos)
Depois
de tal citação, como poderia subsistir o espantalho que Elbe faz com o
nome de Lenin (citação, aliás, parcialmente contidas na “Introdução” de “Teoria Geral do Direito e marxismo”)?
Vladimir Ilitch em momento algum define como “proletárias” as relações
jurídicas que permanecem existindo na sociedade socialista, muito pelo
contrário: afirma seu caráter burguês com todas as letras. O direito
burguês persiste não só porque persista a circulação mercantil em maior
ou menor grau (como afirmarão, por exemplo, os leitores de Pachukanis
que se erguem em crítica à NEP), mas porque segue
existindo a relação de equivalência entre a soma de tempo de trabalho
dispendido e a soma de produtos percebida em contrapartida.
O direito não mais consagra a propriedade privada dos meios de
produção, mas segue tendo um caráter de classe burguês justamente porque
reproduz a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição. E Lenin
não cessa aí: afirma claramente que “não só o direito burguês, mas ainda
o Estado burguês” subsiste no socialismo, ainda que “sem burguesia”, na
medida em que serve a este fim de “fiscalização rigorosa do trabalho
fornecido e do consumo” na medida de sua equivalência!
O
direito burguês, mas com a expropriação da propriedade privada dos
meios de produção e sem a compra e venda voluntária da força de
trabalho. O estado burguês, mas sem a burguesia, baseado em um poder
exercido “pelo Estado dos operários e não pelo Estado dos funcionários”,
ou seja, diretamente por uma classe, e não por um ente aparentemente público, “terceiro” às relações de classe:
o “Estado dos Sovietes dos deputados operários e soldados”. E tudo isso
é, a despeito das troças de Elbe, “genuinamente socialista”,
precisamente porque não pode haver um socialismo sem direito burguês!
Qualquer pessoa que já tenha lido “O Estado e a revolução”
sabe que Lenin é justamente o maior inimigos desses “marxistas” que,
como diz Elbe logo em seu primeiro parágrafo, esqueceram-se da pergunta
“Estado livre? O que é isso?”. A citação acima o demonstra
categoricamente. Decerto boa parte dos quadros de destaque do Partido
Comunista soviético se esqueceram de tais lições de Marx e Lenin – em
especial quando, já no avançar dos anos 50, passa-se a falar em um
“Estado de todo o povo”. Contra isso não se pode objetar. Mas não terá
também Elbe se esquecido de toda a polêmica entre Marx e Engels contra
os anarquistas acerca da distinção entre socialismo e comunismo? A
polêmica entre o paradigma anarquista da crítica do Estado (a estratégia
da “destruição imediata do Estado”) e o paradigma marxista da crítica
do Estado, tão bem sintetizado estrategicamente por Marx em sua carta a
Weidemeyer, de 5 de março de 1852, publicada por Mehring em 1907, na “Neue Zeit”:
“No
que me concerne, eu não tenho o mérito de ter descoberto a existência
das classes na sociedade contemporânea, nem o de ter descoberto a luta
dessas classes entre si. Os historiadores burgueses expuseram, muito
antes de mim, o desenvolvimento histórico dessa luta de classes, e os
economistas burgueses a anatomia econômica das classes. O que eu fiz de
novo consiste na demonstração seguinte: 1º) que a existência das classes
só se prende a certas batalhas históricas relacionadas com o
desenvolvimento da produção (historische Entwickelungskampfe der
Produktion); 2º) que a
luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3º)
que essa própria ditadura é apenas a transição para a supressão de
todas as classes e para a formação de uma sociedade sem classes”. (apud LENIN, 1917)
O que Elbe oculta, com seu espantalho leninista-marxista-oficial- estatal,
não é a suposta polêmica contra o “respeito supersticioso pelo Estado”
(expressão de Engels, tomada por Lenin na supracitada brochura
justamente em sua polêmica contra a noção de “Estado livre”): é, em
verdade, a própria teoria marxiana
da ditadura do proletariado como forma política da transição para uma
sociedade sem classes e, por conseguinte, sem Estado. Deliberadamente ou
por desconhecimento, é isso que está por trás de frase de Elbe sobre
como “o socialismo”, supostamente segundo Pachukanis, mostra-se
“como realizável por meio da extinção do direito e do Estado em favor
da regulação técnica”: o completo apagamento das distinções entre
socialismo e comunismo, e a ruptura pra com a teoria da ditadura do
proletariado em direção ao anarquismo, ao “otzovismo” [1], enfim, ao abstencionismo
político (SOARES, p. 47). Por isso Elbe precisa voltar-se contra Lenin,
teórico por excelência da ditadura proletária – não porque haja em
Lenin qualquer traço do marxismo-estatal marcante do período posterior à
sua morte. Contudo, sem oferecer qualquer alternativa estratégica que
não este anarquismo tácito, Elbe apenas desvia ainda mais a teoria revolucionária do proletariado de seu objetivo histórico imediato: a tomada do poder político; ou, “a constituição do proletariado em classe dominante” (Marx, no “Manifesto Comunista”); ou ainda a “ditadura do proletariado”, “a forma política, enfim encontrada, sob a qual era possível realizar-se a emancipação do trabalho” (também Marx, em “Guerra Civil na França”).
Ou, ainda: a luta revolucionária pelo Poder Popular.
Não
pretendemos, com isso, adentrar as polêmicas sobre as causas do
fortalecimento do Estado, ao invés de seu fenecimento, na União
Soviética (para o que, certamente, concorreram tanto a composição de
classes do país; quanto o cerco imperialista, que desembocou na II
Guerra Mundial; bem como as concepções teóricas revisionistas acerca do
problema do fim do Estado, ademais de outros fatores). Apenas
pretendíamos resgatar Lenin ao pântano no qual o meteu Elbe.
Não há qualquer contraposição radical, como insinua o autor, entre as
concepções de Pachukanis e Lenin no que diz respeito à questão do
direito e do Estado. Há,
isso sim, um abandono relativo dessas concepções idênticas pelos
ideólogos mais destacados do Partido Comunista da União Soviética: a
perspectiva do fim do Estado é relegada a um horizonte utópico, quando
não acusada de “idealismo”, messianismo, etc.
Por fim, para demonstrar cabalmente esta coerência entre Lenin e
Pachukanis, resta afastar o confusionismo com que Elbe descreve a
concepção leninista do Estado. Senão vejamos:
“Também no ponto de vista da teoria do Estado, Pachukanis formula, pioneiramente no marxismo, contra aqueles que defendem o caráter puro de classe do Estado burguês, como a posição instrumental de Lenin, a pergunta central da análise da forma política do Estado:
‘porque a dominação de uma classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de uma parte da população à outra, mas assume a forma de uma dominação estatal oficial
ou, o que dá no mesmo, por que o aparelho de coerção estatal não se
constitui como aparato privado da classe dominante, mas se destaca este,
assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal, separado
da sociedade?” (ELBE et PACHUKANIS apud ELBE, p. 30-31, grifos nossos)
“O
caráter de classe do Estado burguês coloca-se em princípio, portanto,
não como a repressão violenta dos trabalhadores e de suas organizações
ou como a influência de capitalistas e suas associações na formulação da
política, mas, sim, na garantia da propriedade privada, no assegurar da
igualdade de direitos e na liberdade de escolha de todos os indivíduos,
na ocultação da violência física no ato da troca”. (ELBE, p. 33)
Terá
Elbe encontrado aqui a contraposição radical entre “as concepções de
Lenin sobre o Estado como instrumento da classe dominante” e “a
abordagem analítico-formal de Pachukanis”? De modo algum: Pachukanis em
nenhum momento nega que o Estado seja o “instrumento da classe
dominante”: apenas busca investigar, para além do conteúdo de classe do Estado, o motivo pelo qual sua própria forma
é a melhor expressão de seu caráter de classes burguês. E isso, ainda
que não tenha sido objeto específico do estudo de Lenin, é plenamente
compreendido por este em sua afirmação de que o Estado segue sendo, no
socialismo, burguês, na medida em que “embora conservando a propriedade
comum dos meios de produção, conserva a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição”. Por outro lado, algo muda neste Estado não apenas em seu conteúdo: o Estado é transformado em sua própria forma,
na medida em que passa diretamente às mãos dos trabalhadores, e não
mais aparece sob “a forma de um aparelho de poder público impessoal,
separado da sociedade”.
Pachukanis,
melhor que qualquer intérprete reformista de Marx e Lenin, comprova o
“caráter puro de classe do Estado burguês”, que reside precisamente em
sua forma, a despeito de qualquer concessão aos trabalhadores que possa este fazer em seu conteúdo.
Justamente
porque não vê no Estado nada além de um “instrumento da classe
dominante” (não tanto pelo seu conteúdo, mas por sua forma) que
Pachukanis afirma, em sua “Teoria Geral do Direito e marxismo”:
“O estado, ou seja, a organização da dominação política de classe, cresce no terreno e relações de produção ou de propriedade dadas”. (PACHUKANIS, 2017, p. 101, grifo nosso)
“O
Estado como fator de força tanto na política interna quanto na externa
foi a correção que a burguesia se viu obrigada a fazer em sua teoria e
prática do ‘Estado de Direito’. Quanto mais a dominação burguesa for
ameaçada, mais comprometedoras se mostrarão essas correções e mais
rapidamente o ‘Estado de Direito’ se converterá em sombra incorpórea,
até que, por fim, o agravamento excepcional d luta de classes force a
burguesia a deixar completamente de lado a máscara do Estado de direito e
a revelar a essência do poder como a violência organizada de uma classe sobre as outras”. (PACHUKANIS, 2017, p. 151, grifo nosso)
Ou, em outro lugar:
“Certamente, pode-se objetar que tudo isso não é novidade, apenas o ABC do marxismo. Em particular, a diferença entre as formas de exploração capitalista e feudal, e a diferença entre as formas derivadas de estado, são suficientemente elucidadas pelo próprio Marx na segunda parte do Volume III do ‘O Capital’.
A formulação de Lenin sobre esse ponto em particular simplesmente
repete Marx. Mas é ainda mais imperdoável desconsiderar essas verdades
quando elas são elementares e são bem conhecidas há muito tempo.
Especialmente se, à luz dessas verdades, surgir uma imagem do
desenvolvimento do direito que é muito mais complexa do que a
apresentada a nós como as últimas conclusões do marxismo.” (PACHUKANIS,
2018, grifo nosso)
Resta claro que há, na polêmica estabelecida por Ingo Elbe, muito mais
jogos de palavras do que divergências teóricas efetivas entre Lenin e
Pachukanis. Que “o caráter de classe do Estado burguês coloca-se, em
princípio”, “na garantia da propriedade privada, no assegurar da
igualdade de direitos e na liberdade de escolha de todos os indivíduos,
na ocultação da violência física no ato da troca”, isso em nada implica
que não se coloque igualmente na “repressão violenta dos trabalhadores e
de suas organizações” que põe em risco, precisamente, tais garantias.
Por outro lado, é evidente que não há qualquer necessidade de repressão
violenta dos trabalhadores e organizações operárias que, ao contrário,
contribuem através de seu economicismo trade-unionista para a “garantia
da propriedade privada”.
Aliás, é o próprio Pachukanis quem vai além de Elbe neste tocante,
justamente na nota de rodapé associada à pergunta central (ponto de
apoio do chamado “debate da derivação do Estado”) citada no artigo de
Elbe:
“Em
nosso tempo, com a intensificação das lutas revolucionárias, podemos
observar como o aparato oficial do Estado burguês passa para segundo
plano em detrimento ‘das Forças Armadas amigas’ dos fascistas etc. Isso
prova mais uma vez que, quando o equilíbrio da sociedade é violado, ela
‘procura salvação’ não na criação de um poder acima das classes, mas na
máxima tensão das forças das classes em luta”. (PACHUKANIS, 2017, p.
143)
De resto, não há também nada de novo, perante Marx e Lenin, no que diz
respeito às considerações sobre a autonomia relativa do Estado: a
especificidade moderna/burguesa de sua apresentação equidistante em
relação a todas as classes sociais. A esse respeito, a tradição
leninista se debruçou longamente sobre o problema do bonapartismo,
que pode muito bem ser esmiuçado em outro momento (mas podemos, desde
pronto, mencionar as contribuição de Marx, Engels, Gramsci, Trotsky, ou,
mais recentemente, Karatani).
É
verdade que “Marx não legou, todavia, uma teoria do Estado à altura de
sua crítica da economia política”, se nos referimos à falta de
sistematicidade de sua crítica do Estado. Isso não autoriza, contudo,
refundar uma teoria marxista do Estado passando ao largo de todas as
reflexões de Marx sobre o tema, e se lastreando tão somente nas
categorias abstratas simples
da crítica da economia política, à margem do movimento concreto e
abstrato das próprias formas estatais – como, em alguma medida, faz
Lenin em sua obra já largamente mencionada.
Se
por de trás desses muitos “meros” (“mero aparato de repressão”, “mero
instrumento de classe”, “mera forma de mistificação”, enfim, toda uma
série de simplificações das posições dialéticas de Marx, Engels e Lenin)
se esconde alguma polêmica consequente, capaz de fornecer um “guia de
ação”, uma estratégia alternativa ou o que seja, caberia aos críticos a la Elbe precisar, e muito, suas reais proposições. Caso contrário, apenas fazem repetir rebaixadamente Pachukanis.
Se é realmente preciso avançar na crítica marxista do Estado, em
especial à luz das modificações do Estado burguês ao longo do último
século (tanto relativas à complexificação dos seus momentos repressivos
quanto dos momentos ideológicos do Estado), decerto não se o fará com
base em caricaturas de “instrumentalismo” que tratam sem distinção o
“instrumentalismo democrático-reformista” e o “instrumentalismo
revolucionário” que advoga a estratégia da dualidade de poderes!
Uma apreciação muito mais honesta, neste tocante, poderia iniciar-se a exemplo da crítica de Elcemir Paço Cunha sobre os efeitos de algumas das simplificações pedagogicamente utilizadas, para fins de popularização teórica, por Lenin:
“O
preconceito já muito difundido de que, para Marx, o Estado
resumir-se-ia à repressão como instrumento nas mãos da classe dominante
encontra ecos por todos os lados. É preciso identificar, logo de
partida, que os mais importantes propagadores desse inadvertido resumo
foram Engels e Lenin, a despeito de todas as demais contribuições e do
respeito que necessariamente daí resulta. Mas fazer a crítica, é bom que
se diga, não é índice de desmerecimento dos autores (desses ora em tela
e dos demais a seguir), mas colocar em movimento o único caminho
possível do avanço do marxismo: a autocrítica. Ora, não podemos dar de
ombros para o problema. É certo que nem Engels ou Lenin poderiam ser
inteiramente acusados de uma defesa tão unilateral, mas foram
divulgadores importantes e com reputação suficiente para fixar uma
apreensão do Estado exclusivamente como repressão.” (CUNHA, 2017)
Aqui, o sentido da crítica é completamente modificado. Também é
significativa a autocrítica feita por Engels, a respeito do debate sobre
a relação entre estrutura e superestrutura:
“Eu
e Marx somos aqueles a quem, parcialmente, culpar pelo fato que as
pessoas mais novas frequentemente acentuarem o aspecto econômico mais do
que o necessário. É que nós tínhamos que enfatizar estes princípios
vis-à-vis nossos adversários, que os negavam. Nós não tínhamos sempre o
tempo, o local e a oportunidade para explicar adequadamente os outros
elementos envolvidos na interação dos fatores constituintes da história.
Mas quando era o caso de apresentar uma seção historiográfica, isto é,
de aplicação prática, era um assunto diferente e nenhum erro era
permissível. Infelizmente, de modo muito frequente, as pessoas pensam
que aprenderam uma nova teoria e podem aplicá-la sem maiores problemas,
crendo que dominaram os principais princípios e isto não é sempre
correto. E eu não posso também isentar os mais recentes ‘marxistas’ do
mais incrível lixo que já foi produzido nos últimos três meses.”
(ENGELS, 1890).
De modo similar, seria possível dizer que Lenin é parcialmente
responsável pela apreensão equivocada da teoria marxista do Estado, uma
vez que, em oposição aos liberais e oportunistas de esquerda, enfatizou
repetidamente o caráter de classe burguês do Estado, denunciando o
conteúdo de classe associado necessariamente a esta sua forma democrática.
Mas isso não autoriza dizer que Lenin não compreendia que essa forma
estatal refletia justamente a igualdade formal abstrata jurídica,
reflexo, por sua vez, das relações mercantis generalizadas, e do
assalariamento em massa do trabalho. A despeito de sua aparente
neutralidade, e justamente por conta desta “forma de neutralidade”, o
Estado democrático tem um caráter de classe burguês. O Estado não é mero
instrumento neutro (e o foco aqui deve ser não no mero, como pretende Elbe, mas no neutro),
e que em sua própria forma reside o maior índice de seu caráter
burguês. Esse é o fundamento da crítica leninista do Estado burguês e de
sua democracia de classe, absolutamente convergente com as
considerações de Pachukanis sobre o tema.
[1]
O otzovismo (em russo, “abstencionismo”) é o nome da corrente expelida
do seio do bolchevismo em 1909, após as polêmicas sobre as formas de
luta legais e parlamentares. É sintomático, a esse respeito, que Ingo
Elbe, em seu “Between Marx, Marxism and Marxisms. Ways of Reading Marx's Theory”, critique duramente como “realista ingênua” a brochura de Lenin “Materialismo e empirocriticismo”,
principal arma ideológica na luta contra os desvios idealistas do
otzovismo. Seria pertinente, em algum momento, uma investigação entre as
relações possíveis entre o abstencionismo político pseudorevolucionário
e o materialismo metafísico, comuns aparentemente tanto Bogdanov quanto
a Elbe. Enquanto Bogdanov afirmava que a concepção da existência das coisas em si é um idealismo kantiano, e que o ápice do materialismo seria recuar ao sensível,
ao fenômeno, sem postular a existência objetiva das coisas e do ser; ou
seja, se limitando ao reconhecimento daquilo que é humanamente sensível
como material (o que, Lenin demonstra em sua brochura, não passa de um
retorno ao idealismo de Berkeley); Elbe, de modo semelhante, acusa Lenin
de um “fetichismo de uma coisa em si, que apenas existe através de um
quadro historicamente determinado da atividade humana”. Lenin objetaria
em Elbe que a consciência das coisas apenas existe através de um quadro
historicamente determinado da atividade humana – mas querer, com isso,
apagar a objetividade das coisas, externamente à cognoscibilidade
humana, é um recuo franco em direção ao idealismo filosófico!
Na foto, reunião do Soviet de Petrogrado, no verão de 1920.
BIBLIOGRAFIA:
CUNHA, Elcemir Paço Cunha. “Movimento
real da forma política em Marx: elementos para a crítica dos ‘aparelhos
repressivos’ como síntese do Estado capitalista”. 2017. Disponível em:
ELBE, Ingo. “Pachukanis versus Lenin: dois paradigmas da crítica marxista do Estado”. In: Margem Esquerda n. 30, 2018, Editora Boitempo.
ENGELS, Friedrich. “Anti-Duhring”. 1877. Disponível em:
ENGELS, Friedrich. “Carta para Joseph Bloch”. 1890. Disponível em:
LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. “O Estado e a revolução”. 1917. Disponível em:
LUXEMBURGO, Rosa. “Liberdade de Crítica”. 1899. Disponível em:
MARX, Karl. “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. 1843. Disponível em:
MARX, Karl. “Guerra Civil na França”. 1871. Disponível em:
MARX, Karl. “Crítica do Programa de Gotha”. 1875. Disponível em:
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “Manifesto Comunist”. 1848. Disponível em:
PACHUKANIS, Evguiéni. “Teoria Geral do Direito e marxismo”. 2017. Editora Boitempo.
PACHUKANIS, Evguiéni. “Lenin e os problemas do direito” 2018. Disponível em:
SOARES, Moisés Alves. “O equilíbrio catastrófico da teoria marxista do direito no Brasil”. In: Margem Esquerda n. 30, 2018. Editora Boitempo.
O “anarquismo jurídico”: Lenin e Pachukanis versus Ingo Elbepor LavraPalavra |
Sem comentários:
Enviar um comentário