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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Um artigo oportuno

A pobreza da cultura na época
da sua descentralização


Rui Matoso – Agosto 2018 https://estc.academia.edu/RuiMatoso


Com a aprovação da Lei-quadro da transferência de competências para as
autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei n.º 50/2018 de 16 de
agosto), que visa concretizar os princípios da subsidiariedade, da descentralização
administrativa e da autonomia do poder local, a dimensão cultural fica reduzida a
umas míseras quatro alíneas do Artº 15, e praticamente despida de qualquer sentido
democrático e da sua importância vital para os territórios.
Sem pretender aqui desenvolver o assunto tabu dos municípios portugueses - a
democracia cultural -, vale a pena, pelo menos, observar a decadência legislativa no
âmbito da descentralização/municipalização da cultura. Para tal comparemos somente
as últimas iniciativas parlamentares neste contexto.
O histórico de legislação relativa à transferência de competências para as
autarquias locais remonta pelo menos a 1999 (Lei nº 159/99), cujo diploma foi
revogado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro, o qual por sua vez sofreu
alterações posteriores. A lei de 2013 mereceu na altura uma acesa discussão pública,
designada então como a «lei do ministro Relvas», tendo inclusive sido chumbada
pelo Tribunal Constitucional.
Tabela comparativa
Lei nº 159/99
Artigo 20.º Património, cultura e
ciência
Lei n.º 75/2013
Artigo 33.º - Competências
materiais
1 — Compete à câmara municipal:
Lei n.º 50/2018
Artigo 15.º
Cultura
1 — É da competência dos órgãos
municipais o planeamento, a gestão
e a realização de investimentos
públicos nos seguintes domínios:
a) Centros de cultura, centros de
ciência, bibliotecas, teatros e museus
municipais;
b) Património cultural, paisagístico e
urbanístico do município.
2 — É igualmente da competência dos
t) Assegurar, incluindo a possibilidade
de constituição de parcerias, o
levantamento,classificação,
administração,manutenção,
recuperação e divulgação do
património natural, cultural,
paisagístico e urbanístico do
município, incluindo a construção de
monumentos de interesse municipal;
É da competência dos órgãos
municipais:
a) Gerir, valorizar e conservar
património cultural que, sendo
classificado, se considere de âmbito
local;
b) Gerir, valorizar e conservar os
museus que não sejam museus
nacionais;
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órgãos municipais:
a) Propor a classificação de imóveis,
conjuntos ou sítios nos termos legais;
b) Proceder à classificação de imóveis
conjuntos ou sítios considerados
de interesse municipal, assegurar a sua
manutenção e recuperação;
c) Participar, mediante a celebração de
protocolos com entidades públicas,
particulares ou cooperativas, na
conservação e recuperação do
património e das áreas classificadas;
d) Organizar e manter actualizado um
inventário do património cultural,
urbanístico e paisagístico existente na
área do município;
e) Gerir museus, edifícios e sítios
classificados, nos termos a definir por
lei;
f) Apoiar projectos e agentes culturais
não profissionais;
g) Apoiar actividades culturais de
interesse municipal;
h) Apoiar a construção e conservação
de equipamentos culturais de
âmbito local.
u) Apoiar atividades de natureza
social, cultural, educativa, desportiva,
recreativa ou outra de interesse para
o município, incluindo aquelas que
contribuam para a promoção da saúde
e prevenção das doenças;
c) Executar o controlo prévio de
espetáculos, bem como a sua
fiscalização, autorizando a sua
realização quando tal esteja previsto;
d) Recrutar, selecionar e gerir os
trabalhadores afetos ao património
cultural que, sendo classificado, se
considere de âmbito local e aos
museus que não sejam museus
nacionais.
A lei de 1999, e bem, convoca desde logo a ciência para integrar as
competências das autarquias, porém, ainda hoje podemos facilmente verificar que a
ciência, a técnica e as tecnologias estão ausentes das linhas programáticas (grandes
opções do plano) e das respectivas políticas e estratégias dos municípios.
Comparando os artigos da Lei de 1999 com os da Lei de 2018 (vide tabela),
observa-se desde logo a pobreza semântica do legislador, e mais grave, o tom
“Salazarista” das expressões utilizadas: «c) Executar o controlo prévio de
espetáculos, bem como a sua fiscalização, autorizando a sua realização quando
tal esteja previsto» (Lei n.º 50/2018, Artigo 15.º).
Aquelas palavras de ordem nem sequer têm lógica ou adesão à realidade, no
actual contexto operacional. O Decreto-Lei n.º 23/2014 (de 14 de fevereiro), que
aprova o regime de funcionamento dos espectáculos de natureza artística e de
instalação e fiscalização dos recintos, através da Inspeção-Geral das Atividades
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Culturais (IGAC), contradiz a linguagem autoritária herdada do antigo regime: «O
promotor deixa de estar sujeito a autorização administrativa para o exercício da
respetiva atividade e o seu registo, efetuado no seguimento de mera comunicação
prévia (…) No funcionamento dos espetáculos de natureza artística, elimina -se o
procedimento associado à atual licença de representação...».
No que se refere à salvaguarda do património, nota-se igualmente a perda de
um discurso colaborativo entre Estado e sociedade civil. Enquanto que as Leis de
1999 e 2013 referem a possibilidade de constituição de parcerias, a lei de 2018 é
taxativa: «É da competência dos órgãos municipais: a) Gerir, valorizar e conservar
património cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local». O que aqui
se despreza é a própria Lei de Bases do Património Cultural, designadamente Artigo
11º -Dever de preservação, defesa e valorização do património cultural: « 3 — Todos
têm o dever de valorizar o património cultural, sem prejuízo dos seus direitos, agindo,
na medida das respectivas capacidades, com o fito da divulgação, acesso à fruição e
enriquecimento dos valores culturais que nele se manifestam».
É preciso ter em atenção que, apesar de revogada a Lei n.º 159/99, não são
prejudicadas as transferências e delegações de competências efetuadas previamente à
entrada em vigor da lei de 2013 (Artigo 3.º - Norma revogatória). Porém, a actual
Lei n.º 50/2018 apenas refere que para além das novas competências identificadas,
são competências das autarquias locais as atribuídas por outros diplomas,
nomeadamente as conferidas pela Lei n.º 75/2013, sem mencionar a lei de 1999.
Assim, de revogação em revogação, e de lei em lei, vai-se perdendo o
entendimento de quais são afinal as competências das autarquias em matéria de
cultura, património e ciência. E, a única coisa que vai crescendo a olhos vistos é a
pobreza da mentalidade política cultural ao nível local – salvo excepções.
Propositadamente ou por ignorância intrínseca, o certo é que para além da
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visão tecnocrática e neoliberal aplicada actualmente à administração da cultura local,
é o próprio Partido Socialista que parece ignorar o legado dos Estados Gerais (1995)
no que concerne à descentralização cultural. Na apresentação das linhas
programáticas para a cultura, pode ler-se: « Descentralizar é hoje muito mais do que
permitir às regiões periféricas um contacto meramente pontual e casuístico com
actividades culturais exteriores. Torna-se também indispensável dotar cada vez mais
as regiões do País dos meios necessários à concretização de uma vida cultural que,
salvaguardando a especificidade de cada sector de actividade artística, incorpore uma
componente cada vez mais significativa de iniciativa própria, capaz de conduzir,
tanto quanto possível, a perfis culturais diversificados e autónomos».
Nesta que foi – consensualmente - a época de ouro das políticas culturais em
Portugal, com Manuel Maria Carrilho como Ministro da Cultura, é possível encontrar
dois dos vectores fundamentais da descentralização e correlativa municipalização da
cultura. Por um lado, salienta-se que o fundamental num processo de descentralização
cultural está para alem de promover o contacto das populações, meramente pontual e
casuístico, com actividades culturais exteriores – leia-se, a descentralização deve
ultrapassar as políticas do “acesso” e a mera democratização da cultura cujo
paradigma reside na acessibilidade da cultura legitimada.
Por outro, afirma-se que, antes pelo contrário, a descentralização reside na
necessidade de dotar o país dos meios necessários à concretização de uma vida
cultural que incorpore uma componente cada vez mais significativa de iniciativa
própria, capaz de conduzir, tanto quanto possível, a perfis culturais diversificados e
autónomos. Ou seja, a defesa e a promoção de medidas em favor :
i) Da mudança de paradigma, da democratização (descentralização da
oferta) à democracia cultural (produção própria)
ii) Da vitalidade cultural endógena dos territórios;
iii) Da existência de meios e condições dirigidas à produção cultural local
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por iniciativa própria dos cidadãos e com autonomia;
iv)Da diversidade cultural.
De um modo geral, estamos confrontados com um cenário de governação
cultural municipal que ignora ou despreza a noção de Cultura 3.0 (Pier Luigi Sacco,
2011), a qual significa o potencial de desenvolvimento cultural e criativo dos
territórios e a capacidade de estimular novas dinâmicas de produção de conteúdos
culturais e novos modos de acesso à cultura. E, ignora ou despreza também a visão
proposta pela Agenda 21 da Cultura (A21C), que encoraja as cidades a elaborar
estratégias culturais a longo prazo e convida o sistema cultural a influenciar os
principais instrumentos de planeamento urbano.
A característica fundamental da Cultura 3.0 é, portanto, a transformação do
público, que ainda é a referência da fase "clássica" da indústria cultural, em
praticante, definindo assim um novo, difuso e cada vez mais múltiplo conceito de
autoria e de propriedade intelectual.
Em suma, no contexto de uma estratégia mais coerente e abrangente de
coordenação sistemática de todos os efeitos indirectos da produção e da participação
cultural, seria muito importante orientar projectos de revitalização cultural com uma
abordagem proactiva e participada que promova e desenvolva as competências locais,
os meios criativos e os recursos endógenos, ao invés de se concentrar em formas de
entretenimento instrumentais e inautênticas para benefício da suposta
competitividade territorial e das “classes criativas”.
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