David Harvey: Política anticapitalista em tempos de coronavírus
Quarenta anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa deixaram o público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise de saúde pública desse calibre, apesar de sustos anteriores como a SARS e o Ebola fornecerem avisos abundantes e lições convincentes sobre o que seria necessário ser feito.
Por David Harvey.
* Publicado originalmente em inglês na Democracy at Work. A tradução é de Cauê Seigner Ameni, para a Jacobin Brasil.
Ao tentar interpretar, entender e
analisar o fluxo diário de notícias, tenho a tendência de localizar o
que está acontecendo em dois cenários distintos, mas interligados, de
como o capitalismo funciona. O primeiro cenário é um mapeamento das
contradições internas da circulação e acumulação de capital, à medida
que o valor monetário flui em busca de lucro através dos diferentes
“momentos” (como Karl Marx os chama) de produção, realização (consumo),
distribuição e reinvestimento. Este é o arranjo da economia capitalista
como uma espiral de expansão e crescimento sem fim. Fica mais complicado
à medida que é analisado, por exemplo, através das rivalidades
geopolíticas, desenvolvimentos geográficos desiguais, instituições
financeiras, políticas estatais, reconfigurações tecnológicas e a rede
em constante mudança de divisões do trabalho e relações sociais.
Eu imagino esse modelo incorporado, no
entanto, em um contexto mais amplo de reprodução social (em lares e
comunidades), em uma relação metabólica contínua e em constante evolução
com a natureza (incluindo a “segunda natureza” da urbanização e do
ambiente) e todas maneira de formações culturais, científicas (baseadas
no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações
normalmente criam no espaço e no tempo. Esses últimos “momentos”
incorporam a expressão ativa das vontades, necessidades e desejos
humanos, o desejo de conhecimento e significado e a busca pela
realização em um cenário de mudanças nos arranjos institucionais, nas
disputas políticas, nos confrontos ideológicos, nas perdas, nas
derrotas, nas frustrações e alienações, todas elaboradas em um mundo de
acentuada diversidade geográfica, cultural, social e política. Esse
segundo cenário constitui, por assim dizer, minha compreensão prática do
capitalismo global como uma formação social distinta, enquanto o
cenário é sobre as contradições dentro do mecanismo econômico que
alimenta essa formação social ao longo de certos caminhos dentro da sua
evolução histórica e geográfica.
Espiral produtiva
Quando, em 26 de janeiro de 2020, li pela
primeira vez sobre o coronavírus ganhando espaço na China, pensei
imediatamente nas repercussões para a dinâmica global da acumulação de
capital. Eu sabia dos meus estudos sobre o modelo econômico que
bloqueios e interrupções na continuidade do fluxo de capital resultariam
em desvalorizações e que, se as desvalorizações se tornassem
generalizadas e profundas, isso sinalizaria o início de crises. Eu
também estava ciente de que a China é a segunda maior economia do mundo e
que, na prática, resgatou o capitalismo global no período pós-2007–8.
Portanto, qualquer impacto na economia chinesa provavelmente teria
sérias conseqüências para uma economia global que já estava em péssima
condição.
Pareceu-me que o modelo existente de
acumulação de capital já estava com muitos problemas. Movimentos e
protesto estavam ocorrendo em quase todos os lugares (de Santiago a
Beirute), muitos focados no fato de que o modelo econômico dominante não
estava funcionando bem para a maioria da população. Esse modelo
neoliberal repousa cada vez mais no capital fictício e em uma vasta
expansão na oferta de moeda e na criação de dívida. Entretanto, já está
enfrentando o problema da demanda por ser insuficiente para realizar os
valores que o capital é capaz de produzir.
Como o modelo econômico dominante, com
sua legitimidade decadente e saúde delicada, será que ele pode absorver e
sobreviver aos impactos inevitáveis de uma pandemia? A resposta
dependia fortemente de quanto tempo a interrupção poderia durar e se
espalhar, pois, como Marx apontou, a desvalorização não ocorre porque as
mercadorias não podem ser vendidas, mas porque não podem ser vendidas a
tempo.
Há muito que recusei a ideia de que a
“natureza” estivesse fora e separada da cultura, economia e vida
cotidiana. Adoto uma visão mais dialética e relacional da relação
metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais de
sua própria reprodução, mas o faz em um contexto de conseqüências não
intencionais (como as mudanças climáticas) e no contexto de forças
evolutivas autônomas e independentes que estão remodelando perpetuamente
as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um desastre
verdadeiramente natural. Os vírus sofrem mutação o tempo todo para ter
certeza. Mas as circunstâncias em que uma mutação se torna ameaçadora e
fatal dependem das ações humanas.
Existem dois aspectos relevantes para
isso. Primeiro, condições ambientais favoráveis aumentam a
probabilidade de mutações vigorosas. Por exemplo, é plausível esperar
que sistemas de suprimento de alimentos nos subtrópicos úmidos possam
contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo
na China ao sul do Yangtse e o Sudeste Asiático. Em segundo lugar, as
condições que favorecem a transmissão rápida através dos organismos
hospedeiros variam muito. Populações de alta densidade pareceriam um
alvo fácil para o hospedeiro. É sabido que as epidemias de sarampo, por
exemplo, apenas florescem em grandes centros populacionais urbanos, mas
morrem rapidamente em regiões pouco populosas.
Conforme os seres humanos interagem, se
movimentam, se disciplinam ou esquecem de lavar as mãos, as formas como
as doenças são transmitidas são afetadas. Nos últimos tempos, a SARS, a
gripe aviária e suína parecem ter saído da China ou do Sudeste Asiático.
A China também sofreu muito com a peste suína no ano passado,
implicando no abate em massa de porcos e o aumento dos preços da carne
suína. Não digo tudo isso para indiciar a China. Existem muitos outros
lugares onde os riscos ambientais para mutação e difusão viral são
altos. A gripe espanhola de 1918 pode ter saído do Kansas e a África
pode ter incubado o HIV / AIDS e certamente iniciado o Nilo Ocidental e o
Ebola, enquanto a dengue parece florescer na América Latina. Mas os
impactos econômicos e demográficos da propagação do vírus dependem de
fendas e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico.
Não fiquei indevidamente surpreso que o
COVID-19 tenha sido encontrado inicialmente em Wuhan (embora não seja
conhecido onde ele se originou). Claramente, os efeitos locais são
substanciais e, dado que lá era um centro de produção sério,
provavelmente haveria repercussões econômicas globais (embora eu não
tivesse idéia desta magnitude). A grande questão era como o contágio e a
difusão poderiam ocorrer e quanto tempo duraria (até que uma vacina
pudesse ser encontrada). Experiências anteriores haviam mostrado que uma
das desvantagens do aumento da globalização é como é impossível impedir
uma rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em um mundo
altamente conectado, onde quase todo mundo viaja. As redes humanas para
potencial difusão são vastas e abertas. O perigo (econômico e
demográfico) era que a interrupção durasse um ano ou mais.
Embora houvesse uma queda imediata nos
mercados financeiros quando as notícias iniciais foram divulgadas, foi
impressionante como os mercados atingiram novos picos no mês seguinte.
As notícias pareciam indicar que os negócios estavam normais em todos os
lugares, exceto na China. Acreditavam que iríamos experimentar uma
reprise da SARS que acabou sendo contida rapidamente e manteve um baixo
impacto global, apesar de ter uma alta taxa de mortalidade e criar um
pânico desnecessário (em retrospecto) nos mercados financeiros. Quando o
COVID-19 apareceu, a reação dominante foi descrevê-lo como uma
repetição da SARS, tornando o pânico redundante. O fato de a epidemia
ter ocorrido na China, que rapida e implacavelmente se moveu para conter
seus impactos, também levou o resto do mundo a tratar erroneamente o
problema como algo acontecendo “lá” e, portanto, fora do horizonte
(acompanhada por alguns problemas que sinalizam uma visão de xenofobia
anti-chinesa em certas partes do mundo). O pico que o vírus colocou na
história triunfante do crescimento chinês foi recebido com alegria em
certos círculos do governo Trump.
No entanto, histórias de interrupções nas
cadeias produtivas globais que passavam por Wuhan começaram a circular
no noticiário. Estes foram amplamente ignorados ou tratados como
problemas pontuais para determinados produtos ou corporações (como a
Apple). As desvalorizações foram locais e particulares e não sistêmicas.
Os sinais de queda na demanda do consumidor também foram minimizados,
embora empresas como McDonald’s e Starbucks, que tinham grandes
operações no mercado interno chinês, precisassem fechar suas portas por
um tempo. A sobreposição do Ano Novo Chinês com o surto do vírus
mascarou os impactos ao longo de janeiro. A complacência dessa resposta
foi mal interpretada.
As notícias iniciais sobre a disseminação
internacional do vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto
grave na Coréia do Sul e em alguns outros pontos críticos como o Irã.
Foi o surto italiano que desencadeou a primeira reação mais violenta. O
colapso do mercado financeiro, que começou em meados de fevereiro,
oscilou um pouco, mas em meados de março levou a uma desvalorização
líquida de quase 30% nas bolsas de valores do mundo todo.
A escalada exponencial das infecções
provocou uma série de respostas muitas vezes incoerentes e às vezes em
pânico. O presidente Donald Trump fez uma imitação do rei Canute diante
de uma potencial maré crescente de doenças e mortes. Algumas das
respostas parecem estranhas. Ter o Federal Reserve com taxas de
juros mais baixas diante de um vírus parecia estranho, mesmo quando se
reconheceu que a medida pretendia aliviar os impactos do mercado em vez
de impedir o progresso do vírus.
As autoridades públicas e os sistemas de
saúde foram, em quase todos os lugares, pegos em flagrante. Quarenta
anos de neoliberalismo na América do Norte e do Sul e na Europa deixaram
o público totalmente exposto e mal preparado para enfrentar uma crise
de saúde pública desse calibre, apesar de sustos anteriores como a SARS e
o Ebola fornecerem avisos abundantes e lições convincentes sobre o que
seria necessário ser feito. Em muitas partes do suposto mundo
“civilizado”, os governos locais e as autoridades regionais, que
invariavelmente formam a linha de frente da defesa em emergências de
saúde e segurança pública desse tipo, tinham sido privados de
financiamento graças a uma política de austeridade projetada para
financiar cortes de impostos e subsídios para as empresas e os ricos.
O corporativismo da grande industria
farmacêutica tem pouco ou nenhum interesse em pesquisas não remuneradas
sobre doenças infecciosas (como toda a categoria do coronavírus que são
bem conhecidas desde a década de 1960). A industria farmacêutica
raramente investe em prevenção. Tem pouco interesse em investir na
prevenção de crises na saúde pública. Adora desenhar curas. Quanto mais
doentes estamos, mais eles ganham. A prevenção não contribui para o
valor do acionista. O modelo de negócios aplicado à provisão de saúde
pública eliminou as capacidades excedentes de enfrentamento que seriam
necessárias em uma emergência. A prevenção não é nem uma hipótese de
trabalho suficientemente atraente para justificar parcerias
público-privadas.
O presidente Trump cortou o orçamento do Centro de Controle de Doenças e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias no Conselho de Segurança Nacional no
mesmo espírito que cortou todo o financiamento de pesquisas, inclusive
sobre as mudanças climáticas. Se eu quisesse ser antropomórfico e
metafórico sobre isso, concluiria que o COVID-19 é a vingança da
natureza por mais de quarenta anos de maus-tratos e abuso nas mãos de um
extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.
Talvez seja sintomático que os países
menos neoliberais, China e Coréia do Sul, Taiwan e Cingapura, tenham
passado melhor pela pandemia do que a Itália. Embora houvesse muitas
evidências de que a China lidava mal com a SARS, com muita dissimulação e
negação inicial, desta vez o presidente Xi Jinping passou rapidamente a
exigir transparência, tanto nos relatórios quanto nos testes, assim
como a Coréia do Sul. Mesmo assim, na China, perdeu-se um tempo valioso
(apenas alguns dias fazem toda a diferença). O que foi notável na China,
no entanto, foi o confinamento da epidemia à província de Hubei, com
Wuhan no centro. A epidemia não se mudou para Pequim, nem para o oeste
nem para o sul. As medidas tomadas para confinar geograficamente o vírus
foram draconianas. Seria quase impossível replicar em outros lugares
por razões políticas, econômicas e culturais. Os relatórios que saem da
China sugerem que os tratamentos e as políticas não foram nada
cuidadosos.
Além disso, a China e Cingapura
empregaram seus poderes de vigilância pessoal em níveis invasivos e
autoritários. Mas eles parecem ter sido extremamente eficazes em
conjunto. Embora as medidas tenham sido acionadas alguns dias antes, os
modelos sugerem que muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Esta é uma
informação importante: em qualquer processo de crescimento exponencial,
existe um ponto de inflexão além do qual a massa ascendente fica
totalmente fora de controle (observe aqui, mais uma vez, o significado
da massa em relação à taxa). O fato de Trump ter demorado por tantas
semanas ainda pode ser oneroso a muitas vidas.
Os efeitos econômicos estão agora fora de
controle, tanto na China quanto fora dela. As interrupções no trabalho
nas cadeias de produção das empresas e em certos setores se mostraram
mais sistêmicas e substanciais do que se pensava inicialmente. O efeito a
longo prazo pode ser o de encurtar ou diversificar as cadeias de
suprimentos, enquanto se move para formas de produção menos intensivas
de mão-de-obra (com enormes implicações para o emprego) e maior
dependência de sistemas de produção inteligentes. A ruptura das cadeias
produtivas implica demitir ou dispensar trabalhadores, o que diminui a
demanda final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo
produtivo. Esses impactos no lado da demanda já teriam produzido por si
só uma leve recessão.
Mas as maiores vulnerabilidades existiam
em outros lugares. Os modos de consumismo que explodiram após 2007–8
caíram com conseqüências devastadoras. Esses modos eram baseados na
redução do tempo de rotatividade do consumo. A enxurrada de
investimentos em tais formas de consumo teve tudo a ver com a absorção
máxima de volumes de capital exponencialmente crescentes em formas de
consumismo rápida rotatividade. O turismo internacional foi emblemático.
As visitas internacionais aumentaram de US$ 800 milhões para US$ 1,4
bilhão entre 2010 e 2018.
Essa forma de consumismo instantâneo
exigiu investimentos maciços em infra-estrutura de aeroportos e
companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos
culturais e etc.. Este local de acumulação de capital está agora morto:
as companhias aéreas estão perto da falência, os hotéis estão vazios e o
desemprego em massa nas indústrias hoteleira é iminente. Comer fora não
é uma boa ideia e restaurantes e bares foram fechados em muitos
lugares. Até a comida para viagem parece arriscada. O vasto exército de
trabalhadores na economia de freelancers e autônomos ou em outras formas
de trabalho precário estão sendo demitido sem meios visíveis de apoio.
Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquete, shows,
convenções profissionais e de negócios e até reuniões políticas em
torno das eleições estão sendo cancelados. Essas formas de consumismo
experiencial “baseadas em eventos” foram encerradas. As receitas dos
governos locais foram afetadas. Universidades e escolas estão fechando.
Grande parte do modelo mais avançado no
consumismo capitalista contemporâneo é inoperável nas condições atuais. O
esforço em direção ao que André Gorz descreve como “consumismo
compensatório” (no qual os trabalhadores alienados deveriam recuperar o
ânimo através de um pacote de férias em uma praia tropical) foi
sabotado.
As economias capitalistas contemporâneas
são 70% ou até 80% motivadas pelo consumismo. Nos últimos quarenta anos,
a confiança e o sentimento do consumidor tornaram-se a chave para a
mobilização da demanda efetiva e o capital tornou-se cada vez mais
orientado pela demanda e pelas necessidades. Essa fonte de energia
econômica não foi sujeita a flutuações violentas (com algumas exceções,
como a erupção vulcânica da Islândia que bloqueou os vôos
transatlânticos por algumas semanas). Mas o COVID-19 não está
sustentando uma flutuação violenta, mas um colapso onipotente no coração
da forma de consumismo dominante nos países mais ricos. A forma espiral
de acumulação infinita de capital está entrando em colapso interior, de
uma parte do mundo para outra. A única coisa que pode salvá-lo é um
consumismo em massa financiado pelo governo, evocado do nada. Isso
exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem
chamar isso de socialismo.
As linhas de frente
Existe um mito conveniente de que as
doenças infecciosas não reconhecem classe social ou outras barreiras e
fronteiras sociais. Como muitos dizem, há uma certa verdade nisso. Nas
epidemias de cólera do século XIX, a transcendência das barreiras de
classe foi suficientemente dramática para gerar o nascimento de um
movimento público de saneamento e saúde que se profissionalizou e
perdurou até os dias de hoje. Se esse movimento foi projetado para
proteger todos ou apenas as classes altas nem sempre foi uma história
clara. Hoje, porém, o diferencial de classe e os efeitos e impactos
sociais contam uma história diferente. Os impactos econômicos e sociais
são filtrados através de discriminações “costumeiras” que estão em toda
parte em evidência. Para começar, a força de trabalho que deve cuidar do
número crescente de doentes é altamente seccionada por gênero, raça e
etnia na maior parte do mundo. Nisso reflete as forças de trabalho
baseadas em classe encontradas em, por exemplo, aeroportos e outros
setores logísticos.
Essa “nova classe trabalhadora” está na
vanguarda e tem o peso de ser a força de trabalho que está com o maior
risco de contrair o vírus por meio de seus empregos ou de ser demitida
sem ter garantias por causa da contenção econômica imposta pelo vírus.
Há, por exemplo, a questão de quem pode trabalhar em casa e quem não
pode. Isso aumenta a divisão social, assim como a questão de quem pode
se dar ao luxo de se isolar ou se colocar em quarentena (com ou sem
pagamento) em caso de contato ou infecção. Da mesma maneira que aprendi a
chamar os terremotos na Nicarágua (1973) e na Cidade do México (1995)
de “terremotos de classe”, o progresso do COVID-19 exibe todas as
características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça.
Embora os esforços de mitigação estejam
convenientemente ocultos na retórica de que “estamos todos juntos
nisso”, as práticas, principalmente por parte dos governos nacionais,
sugerem motivações mais sinistras. A classe trabalhadora contemporânea
nos Estados Unidos (composta predominantemente por afro-americanos,
latino-americanos e mulheres assalariadas) enfrenta a falta de escolha
entre contrair a contaminação em nome de cuidar e manter os principais
recursos da provisão (como supermercados) abertos ou ficar desempregada
sem benefícios (com cuidados de saúde adequados). O pessoal assalariado,
como eu, podem trabalhar em casa e receber seus salários, enquanto os
CEOs voam em jatos particulares e helicópteros para se isolarem.
As forças de trabalho em muitas partes do
mundo são socializadas há muito tempo para se comportarem como bons
sujeitos neoliberais, o que significa culpar a si mesmas ou a Deus se
algo der errado, mas nunca ousar sugerir que o capitalismo pode ser o
problema. Mas mesmo bons indivíduos que defendem o neoliberalismo podem
ver que há algo errado com a maneira como esta pandemia está sendo
respondida.
A grande questão é: quanto tempo isso vai
durar? Pode demorar mais de um ano e, quanto mais tempo, mais
desvalorização, inclusive da força de trabalho. Os níveis de desemprego
quase certamente subirão para níveis comparáveis aos da década de 1930
na ausência de intervenções estatais maciças que terão que ir contra o
mantra neoliberal. As ramificações imediatas para a economia e para o
cotidiano social são múltiplas. Mas eles não são todos ruins. Na medida
em que o consumismo contemporâneo estava se tornando excessivo, estava
se aproximando do que Marx descreveu como “consumo excessivo e consumo
insano, alimentando, por sua vez, o monstruoso e a bizarra queda” de
todo o sistema.
A imprudência desse consumo excessivo tem
desempenhado um papel importante na degradação ambiental. O
cancelamento de voos de companhias aéreas e a restrição radical de
transporte e movimentação tiveram conseqüências positivas em relação às
emissões de gases de efeito estufa. A qualidade do ar em Wuhan está
muito melhor, como também ocorre em muitas cidades dos EUA.
Os locais de ecoturismo terão tempo para
se recuperar das pegadas ambientais. Os cisnes retornaram aos canais de
Veneza. Na medida em que o gosto pelo excesso de consumo imprudente e
insensato for reduzido, poderá haver alguns benefícios a longo prazo.
Menos mortes no Monte Everest podem ser uma coisa boa. E, embora ninguém
diga isso em voz alta, o viés demográfico do vírus pode acabar afetando
as pirâmides etárias, com efeitos a longo prazo sobre os encargos da
Previdência Social e o futuro da “indústria de assistência médica”. A
vida cotidiana diminui e, para algumas pessoas, isso será uma bênção. As
regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência
persistir por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única
forma de consumismo que quase certamente se beneficiará com tudo isso é o
que eu chamo de economia “Netflix”, que atende a “binge watchers” de qualquer maneira.
Na frente econômica, as respostas foram
condicionadas pelo êxodo na crise de 2007–8. Isso implicou uma política
monetária ultra-flexível, associada ao resgate dos bancos, complementada
por um aumento dramático no consumo produtivo conduzido pela expansão
maciça do investimento em infra-estrutura na China. Este último não pode
ser repetido na escala necessária. Os pacotes de resgate criados em
2008 focavam nos bancos, mas também envolviam a estatização da General
Motors. Talvez seja significativo que, diante do descontentamento dos
trabalhadores e do colapso da demanda do mercado, as três grandes
montadoras de Detroit estejam fechando, pelo menos temporariamente.
Se a China não pode repetir seu papel de
2007–8, então o ônus de sair da atual crise econômica agora muda para os
Estados Unidos e aqui está a ironia final: as únicas políticas que
funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais
socialistas do que qualquer coisa que Bernie Sanders possa propor e
esses programas de resgate terão que ser iniciados sob a égide de Donald
Trump, presumivelmente sob a máscara do “make America Great again”.
Todos os republicanos que se opuseram
visceralmente ao resgate de 2008 terão que engolir a seco ou desafiar
Donald Trump. Este último, se for sagaz, cancelará as eleições em
caráter emergencial e declarará a origem de uma presidência imperial
para salvar a capital e o mundo dos “tumultos e revoluções”.
* * *
Tem livro novo de David Harvey saindo do forno…
Os sentidos do mundo, reúne
ensaios escolhidos pelo próprio David Harvey, oferecendo uma síntese
retrospectiva de suas mais importantes e originais contribuições
teóricas. A coletânea abarca um imenso leque de temas – da ecologia à
pós-modernidade, passando por imperialismo, geopolítica, história
urbana, crises financeiras e as dinâmicas de urbanização – e ao mesmo
tempo revela um fio condutor comum e uma coerência articulada no
trabalho de edição.
Harvey
é um dos mais notáveis intelectuais marxistas da última metade do
século e um dos autores mais citados do mundo nas ciências sociais. Com
cinco décadas de carreira acadêmica e militante, escreveu diversos
livros e dezenas de ensaios e artigos influentes sobre temas que
atravessam política, cultura, economia e justiça social.
Além
de reunir artigos clássicos, a obra traz ensaios inéditos em língua
portuguesa, todos acompanhados de comentários do autor, explicando o
contexto da publicação original e refletindo sobre sua atualidade e sua
relevância para a contemporaneidade.
in Blogue da Boitempo, Brasil
Sem comentários:
Enviar um comentário