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sábado, 28 de março de 2020

No meio da pandemia cientistas não param de nos surpreender.




Ciência
Festins de lapas e de outros recursos marinhos são nova prova de que temos mais de neandertal do que julgávamos


Conchas de lapa (Patella vulgata) encontradas da gruta da Figueira Brava, no Portinho da Arrábida <span class="creditofoto">Foto João Zilhão/UNIARQ</span>
Conchas de lapa (Patella vulgata) encontradas da gruta da Figueira Brava, no Portinho da Arrábida Foto João Zilhão/UNIARQ
Um estudo liderado por investigadores portugueses, publicado agora na revista “Science”, é “mais uma prova de que os neandertais tinham cultura e comportamento de Homo sapiens”, explica ao Expresso o paleontólogo João Zilhão, que coordenou o projeto. Os habitantes da gruta da Figueira Brava refastelavam-se com lapas e outras espécies de marisco
Texto Carla Tomás
“Os neandertais estão a passar nos exames e com distinção”, ironiza o paleontólogo João Zilhão. É que afinal, explica ao Expresso, “aquela imagem tradicional de caçadores de mamutes e renas de aspeto robusto, que sobreviviam na neve e no gelo quase sem roupa, é um disparate”. Isto porque a investigação que coordenou — esta quinta-feira publicada na revista “Science” — concluiu que os humanos de há 65 mil a 115 mil anos na Europa, sobretudo as populações da Península Ibérica, estavam muito mais familiarizados com o consumo de peixe e de marisco do que se julgava. “O neandertal típico é muito mais o da Figueira Brava do que o da Alemanha”, diz João Zilhão. E gostava de comer lapas, enguias e outros peixes e marisco.


Foi na gruta da Figueira Brava, no Portinho da Arrábida, que a equipa de 21 investigadores do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) descobriu os fósseis de lapas, de enguias e de outros recursos marinhos que permitiu “mais uma prova de que os neandertais tinham cultura e comportamento de Homo sapiens”, afirma João Zilhão.

O paleontólogo João Zilhão, que coordenou a investigação <span class="creditofoto">Foto António Pedro Ferreira</span>
O paleontólogo João Zilhão, que coordenou a investigação Foto António Pedro Ferreira

O paleontólogo está convicto de que “90% dos neandertais viveram na Península Ibérica e no sul de França e Itália, onde encontraram uma condição muito mais favorável, com mais sol, animais e vegetação para o desenvolvimento de populações”. E como demonstra o estudo agora publicado, “a pesca e a recoleção de marisco contribuíram de forma muito significativa para a economia de subsistência do Homem de Neandertal”.

Pinças de sapateira (Cancer pagurus) abertas para extrair a carne, algumas queimadas (o fragmento maior tem 4,5 cm de comprimento) <span class="creditofoto">Foto Mariana Nabais/ UNIARQ</span>
Pinças de sapateira (Cancer pagurus) abertas para extrair a carne, algumas queimadas (o fragmento maior tem 4,5 cm de comprimento) Foto Mariana Nabais/ UNIARQ

O trabalho de campo decorreu entre 2010 e 2013 e permitiu encontrar vestígios arqueológicos deixadas por comunidades do Homem de Neandertal nesta gruta, entre os quais utensílios em quartzo e sílex, vestígios de uso do fogo e de restos de peixe e marisco que os levaram a constatar que “a dieta alimentar com uma componente marinha importante chega a ser de 50%”. Tudo isto foi provado pelos passos seguintes em laboratório, com observação grão a grão à lupa binocular e estudos de datação.
A gruta da Figueira Brava, agora à beira mar, estaria a não mais de 2000 metros da costa, entre há 86 e há 106 mil anos, o que, explica João Zilhão, “permitia que os habitantes à época se tenham dado ao trabalho de levar para casa os recursos que apanhavam no mar”. Este consumo habitual de recursos marinhos — ricos em Ómega 3 e outros ácidos gordos que favorecem o desenvolvimento dos tecidos cerebrais — terá tido “um papel importante no desenvolvimento das capacidades cognitivas dos nossos antepassados”.
Esta conclusão leva o paleontólogo a refutar uma outra teoria científica — a que chama “história da carochinha” — de que “teria sido uma população africana de Homo Sapiens, que por consumir estes recursos marinhos teria uma inteligência mais elaborada, uma organização social mais complexa e um crescimento populacional que os levou a expandirem-se para o resto do mundo”, conta. Teriam então entrado na Europa e acabado com os neandertais, por terem uma inteligência mais avançada. Segundo João Zilhão, “isto é fantasia”.
Em seu entender, esta descoberta do uso de recursos marinhos pelos neandertais na Figueira Brava — a juntar a outras já publicadas também na “Science” que demonstram que o Homem de Neandertal usava adornos e praticava arte rupestre há 65 mil ou 115 mil anos (com base em descoberta noutras grutas em Portugal, Espanha e França) — reforça a constatação de que “os neandertais eram Homo Sapiens”. E que “não estamos a falar de espécies diferentes, mas da mesma espécie, com características ‘rácicas’ ou anatómicas que podem ser diferentes, como a morfologia do crânio e da mandíbula”, mas que, acrescenta, “usa e fabrica ferramentas, tem uma linguagem, comunica por símbolos, e forma sociedades complexas”.
Estas descobertas científicas levam o paleontólogo a refutar a ideia de que a expansão da população africana teria levado à extinção da população de neandertais da Europa e da Ásia. “Eles misturaram-se, e 40 mil anos depois podemos afirmar que 70% do genoma neandertal está presente no homem moderno”.

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