Ainda vamos a tempo de adotar comportamentos sustentáveis. História da herdade que recorreu ao montado para sobreviver
texto alexandra carita fotografias antónio pedro ferreira
É uma
revolução silenciosa. Está a ser levada a cabo por 130 famílias, três
dezenas de trabalhadores, centenas de animais e milhares de organismos
vivos. Chama-se montado e está em curso no Alto Alentejo, perto de
Montemor-o-Novo, na Herdade do Freixo do Meio. O objetivo é fazer parte
do ecossistema, respeitá-lo sem lhe ultrapassar os limites e regressar a
um modo de vida comunal. É voltar à Idade do Ouro com consciência.
A
experiência plena deste comportamento dá os primeiros passos de há
quatro anos a esta data, mas começou a ser vivida há mais de duas
décadas. O desespero da não sobrevivência foi a pedra de toque para que
tudo se desenvolvesse no sentido inverso ao que vinha sendo tomado.
Com
a terra transformada em deserto, a produzir pouco trigo e cortiça q.b.,
e com borregos para vender, a família Cunhal Sendim foi chamada a gerir
os muitos hectares que lhe tinham sido retirados como consequência das
políticas praticadas após o 25 de Abril. Estávamos em 1990. A Herdade do
Freixo do Meio era trabalhada por uma dúzia de pessoas, e o desemprego
grassava na aldeia ao lado, sobretudo entre as mulheres. Alfredo,
acabado de cursar Engenharia Zootécnica na Universidade de Évora, não
muito longe dali, é chamado a ajudar a mãe e a responsabilizar-se por
ser dono da terra outra vez.
Às apalpadelas e sem
perceber muito do assunto, foi-se intensificando ainda mais a produção.
“A minha mãe tinha uma lógica produtivista, muito contrária à minha.
Costumava dizer que não semeava as estradas porque tinha de passar com o
carro por cima delas. Dizia que precisava de levantar a casa, precisava
de dar de comer às pessoas. O meio natural estava cada vez mais
degradado. Isto era um deserto. O risco era enorme. Tínhamos cada vez
menos margem de manobra. Estávamos desesperados”, conta Alfredo Cunhal
Sendim, hoje presidente da direção da Cooperativa de Usuários Herdade do
Freixo do Meio, uma economia social sem fins lucrativos, gerida numa
lógica comunitária.
Naquela altura, a herdade já
não conseguia dar trabalho, ter as contas certas. “Pensei em comprar
mais ovelhas, de mil queria passar para cinco mil. Tínhamos uma
dependência enorme do exterior, comprávamos quase tudo e vivíamos uma
fragilidade enorme”, continua. Era o começo da evidência de que tinha de
se mudar alguma coisa, senão tudo.
A ideia passou
por tentar descobrir o que alterar, como fazer, que alternativas
adotar. Ana Fonseca, uma colega de Alfredo que estava a escrever uma
tese sobre a Idade Média no Alentejo, e que trabalhava na herdade,
ia-lhe falando na estrutura do montado. Ou seja, “do resultado da
experiência humana de conseguir relacionar-se com o ecossistema por
forma a poder sobreviver, tendo sempre em conta os limites desse
ecossistema”.
A história foi fazendo sentido e o
desespero foi tão grande que, em determinado momento, Alfredo propôs à
mãe e aos irmãos experimentar o montado à luz do conhecimento e da
tecnologia da atualidade. Porque não regressar ao modelo da Idade do
Ouro? Sem nada a perder, tomaram a “única” decisão estratégica para o
Freixo. Com ela, abriram-se muitas portas e iniciou-se a agricultura
biológica, da qual a família Sendim ouviu pela primeira vez falar
através de um subsídio comunitário.
“A
minha mãe achava que tínhamos de ter a nossa estratégia e não ir atrás
da Europa, mas sempre que ela se cruzasse com a estratégia da UE
deveríamos aproveitar. Em 1997 aparece um subsídio para o olival
biológico. Já o fazíamos assim, sem químicos, sem nada. Aproveitámos,
claro, mas fui saber o que era a agricultura biológica. Passámos a olhar
para ela como uma ferramenta de diferenciação, talvez pudéssemos até
aceder a um mercado que fizesse com que esta experiência continuasse”,
recorda Alfredo.
Rapidamente a herdade certificou
os seus produtos todos, o seu selo foi o primeiro a certificar carne em
Portugal, o peru do Freixo. Mas o mercado biológico não existia ainda no
país. Com três carrinhas, começaram então a vender, “uma costeleta de
borrego em Sagres e um pão em Braga”. Faziam rotas de horas e horas, mas
não servia de nada em termos de sobrevivência financeira. Por isso,
durante anos, passaram a vender carne na Holanda. “Ia daqui com um
camião até à Holanda vender a uma cadeia de talhos biológicos. Para
descansar, comecei a ficar uns dias em casa dos meus clientes e a
aprender a cortar carne. Isso levou-me a acreditar que tínhamos de ir
diretamente para o retalho.” Entusiasmou-se e montou um talho e uma loja
para vender outros produtos no mercado de Montemor-o-Novo. Em dois anos
foram à falência. “Não havia consciência, nem pessoas.” Foram para
Évora, faliram novamente. Até que abriram, no Mercado da Ribeira, em
Lisboa, um talho e uma charcutaria. “Lá fomos começando a vender.”
Porém,
os primeiros passos na criação do antigo montado foram a alteração da
estrutura de produção. “Há 50 anos que não crescia aqui uma árvore,
voltámos à reflorestação natural”, frisa Alfredo.
“Uma
aldeia tem uma estrutura que são as casas, as ruas, a eletricidade, as
águas. Depois há um sistema que vive lá dentro. São as trocas, as
relações entre as pessoas. Deparámo-nos com uma aldeia abandonada,
tínhamos tirado os elementos que lá estavam dentro. O meu bisavô foi
tirando peças de um puzzle muito completo.
Hoje tiro a coruja, amanhã tiro o lince, depois tiro a bactéria e
desaparece o fungo, tiro o porco, tiro a vaca, fica só a ovelha, tiro o
cavalo, tiro o burro. Vou tirando elementos do sistema, simplificando-o e
intensificando-o. Às tantas, tiro o solo e começo a comer a estrutura,
as pastagens, os arbustos e as árvores.”
Caminho ao contrário
Ao
compreenderem o que tinha acontecido no passado, fizeram o processo
inverso, introduzindo no modelo produtivo todos os elementos que tinham
sido retirados e que já estavam em falta. “Se só tínhamos ovelhas,
introduzimos perus, galinhas, porcos, vacas, cavalos, burros, muitos
animais selvagens. Fizemos um plano para conservação do gato bravo,
entre outros, um elemento fundamental nesta estrutura, fizemos planos
para conservar mais animais, coelhos, javalis, ginetes, saca-rabos,
toirões. Começámos a compreender todas as funções destes bichos.”
Os
animais selvagens são uma ferramenta fundamental na perspetiva de
funcionamento do macro-organismo, alerta Alfredo. Têm, entre muitas
outras coisas, uma função essencial, a de autocontrolo. São muitas vezes
eles os responsáveis pela criação de um sistema que promove o respeito
pelos limites. Se, por exemplo, crescer muita erva, aparecem os animais
que a comem, porque não é interessante para o sistema haver tanta erva.
Mas, “matámos os superpredadores todos, e neste momento ninguém regula o
javali se não formos nós”.
“A
vontade de regressar ao montado, porém, passou também por pensar em
profundidade como podíamos voltar a esse cenário.” Paulatinamente, foram
sendo introduzidos o porco alentejano, a vaca, as galinhas, foram sendo
introduzidas culturas. “O montado não são apenas uns sobreiros com uns
animais por baixo, mas sim, um sistema completo que está ligado às
hortas, às vinhas, aos olivais. Há aqui toda uma interação de fatores
que fazem com que a bateria se carregue. Alterámos ainda a maneira como
mexíamos no solo e criámos condições para a regeneração natural.
Voltámos a estabelecer a estrutura com todos estes elementos, depois
tivemos de aprender a trabalhar com eles.”
600 produtos diferentes
Como
consequência disso, surgiram imensas surpresas. A primeira foi o deixar
de viver de três produtos para passar a viver de uma panóplia enorme de
produtos que apareceram em pequena escala, mas com muita sazonalidade e
com muita variedade. “Já chegámos a fazer mais de 600 referências de
comida num mês nesta herdade, são 600 códigos de barras, são 600
produtos diferentes.”
Era preciso sobreviver com
eles em quantidades pequenas. “Ninguém vinha cá comprar dez borregos,
mais dez porcos e dez leitões.” No entanto, todo o sistema natural é
baseado em diversidade. Por isso se acrescentou à produção a
transformação. “Percebemos que se não transformássemos, se não
acrescentássemos valor, se não diversificássemos, nunca íamos ser
capazes de pagar os ordenados ao fim do mês. Começámos com o porco.
Chamei duas senhoras aqui da aldeia, Foros de Vale de Figueira, e
disse-lhes: vamos fazer linguiças. Não conseguimos vender o porco doutra
maneira.”
Hoje são sete as microfábricas de
transformação alimentar da Herdade do Freixo do Meio, uma padaria, que
faz pão, tostas e bolos, um matador de aves e uma operação de
charcutaria, que põe cá fora desde os enchidos tradicionais do porco
alentejano à alta charcutaria austríaca, uma outra operação de carnes,
onde se transforma o porco, o bovino e o borrego. Há ainda a
transformação de vegetais, que começa pela bolota, símbolo do Freixo, e
vai para os produtos hortícolas frescos, conservas de tomate, sopas,
empadas, quiches, vinhos, vinagres, azeites e por aí fora. A herdade só
trabalha com matérias-primas próprias, compra muito poucas matérias
fora, só mesmo para complementar as suas. Falamos apenas de sal e de
alguns cereais.
É
obrigatório servir o sistema, colaborar com ele em prol do mesmo
objetivo. Travar a velocidade do planeta, folgar os ecossistemas já tão
degradados e mudar mentalidades. Só assim construiremos coisas
duradouras
O
truque foi pôr em prática o conceito de agricultura multifuncional:
produção, transformação, distribuição por grosso, distribuição a
retalho. Ao qual se juntam as atividades turístico-didáticas. “Se não
tivermos oportunidade de explicar às pessoas o que estamos a fazer, não
vamos ter hipótese de sobreviver, não vamos ter clientes. E se as
pessoas não virem o que fazemos ainda é pior. Tivemos de arranjar
maneira de abrir a porta e de trazer cá gente.” Criaram-se rotas e
percursos. “Não vinha ninguém. Só depois de percebemos que os
portugueses se enganam pela barriga é que tivemos sucesso.”
De
início fazia-se um cozido, depois montou-se uma cantina, fizeram-se
festas e dias abertos. Deram-se passos significativos. E criou-se toda
uma nova forma de vida, diferentes comportamentos. “Só temos uma grande
hipótese e é muito simples: é preciso percebermos que o homem não é um
animal egoísta por natureza e que foram as circunstâncias que ele
próprio criou que o transformaram num animal competitivo,
individualista, sem noção do interesse comum da nossa e das próximas
gerações.”
Deixarmos de olhar para o homem como
uma peça fora do todo é preciso, como é preciso mudar a forma como nos
relacionamos com o sítio onde vivemos, o tal sistema natural com a sua
própria ética. Aquela que vai no sentido da cooperação e não no caminho
da competição. É obrigatório servir o sistema, colaborar com ele em prol
do mesmo objetivo. Travar a velocidade do planeta, folgar os
ecossistemas já tão degradados e mudar mentalidades. Só assim se
alcançará a sustentabilidade, essa ideia de construirmos coisas
duradouras.
“Um dos grandes dramas é termos criado
um sistema que se mexe por causa de uma máquina chamada consumo, mas
onde os consumidores não podem ser responsabilizados porque não lhes dão
oportunidade para fazer parte da decisão”, considera Alfredo. Na
Herdade do Freixo do Meio isso não acontece. Os 35 trabalhadores
permanentes, os voluntários, os estagiários, os trabalhadores sazonais e
as famílias que se alimentam à conta dos produtos que lá são produzidos
são todos responsabilizados nas suas ações e na tomada de decisões
relativas àquele bem comum. Uma economia social apoiada na total
transparência.
Vida de convento
“A
grande experiência é sair da lógica da competição e voltar à
consciência de que somos parte de um todo, somos parte integrante desse
todo que está conectado, que tem as suas regras, as do bem e as do mal. O
que queremos experienciar é a construção de um espaço verdadeiro de
cooperação”, diz o presidente da direção da Cooperativa. Alfredo
acrescenta ainda: “Somos aquilo que praticamos, não o que
racionalizamos, como nos explica António Damásio.”
Nessa
lógica, a vida nos 600 hectares que compõem o Freixo é muito diferente
daquela a que estamos habituados. Todos olham a natureza como parte do
nós. “Vivemos aqui quase como num convento.” Sendo que um convento é uma
estrutura de pessoas que tentam trabalhar a colaboração e a integração.
“Tentamos que haja um respeito enorme pela individualidade da pessoa,
cada um tem o seu espaço, mas tudo nos incita a criarmos relações e
cooperação, encontros e partilha.” É toda uma ideologia de vida da qual
comungam por opção. “Não há ninguém aqui só pelo salário. Todos têm a
inquietude de, pelo menos, fazerem parte de uma construção. Estamos aqui
para cocriar este sistema e não para fazermos o nosso projeto, estamos
aqui para fazer o projeto da Humanidade.”
Concorrem
para esses princípios a demissão de tratar a terra apenas como um ativo
económico e a recusa de a manter como um bem privado. “Ela é o legado
do qual partimos para fazer estas experiências sem riscos. Sou guardião,
sou responsável, mas não o sou sozinho. Tenho de trabalhar numa lógica
comunal.” Ora, esse bem comum tem diferentes tipos de usuários com
diferentes interesses, como harmonizá-los?
Através
de um modelo sociocrático, um espaço de diálogo ordenado com base na
tal transparência, que é apoiada por um sistema informático que permite
que todas as pessoas da cooperativa saibam o que ganha cada um, o que
faz a cada hora, ou quanto custa uma cenoura. A par foi desenvolvido um
programa modelar. Chama-se Agricultura Apoiada pela Comunidade e CSA —
Comunidade que Sustenta a Agricultura — e transforma todos os que
subsistem a partir da produção efetiva da herdade em coprodutores e não
simplesmente em consumidores. São as famílias que se comprometem a ter o
Freixo como fornecedor semanal da sua alimentação básica. Um ‘consumo’
comprometido de parte a parte, viabilizando as contas da herdade. “Se
temos 50 frangos por semana porque é que não temos 50 pessoas a usar
esses frangos e ter zero desperdício alimentar?” Alfredo pergunta e
responde: “Todas as civilizações colapsaram pela mesma razão, o não
relacionamento com os recursos. Estamos na época mais imperialista de
sempre, na qual não há pão. É preciso cuidar a relação com o
ecossistema.
in EXPRESSO, com a devida vénia
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