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domingo, 1 de março de 2020

Uma história de sucesso entre a propriedade privada e o cooperativismo

Ainda vamos a tempo de adotar comportamentos sustentáveis. História da herdade que recorreu ao montado para sobreviver
texto alexandra carita fotografias antónio pedro ferreira
É uma revolução silenciosa. Está a ser levada a cabo por 130 famílias, três dezenas de trabalhadores, centenas de animais e milhares de organismos vivos. Chama-se montado e está em curso no Alto Alentejo, perto de Montemor-o-Novo, na Herdade do Freixo do Meio. O objetivo é fazer parte do ecossistema, respeitá-lo sem lhe ultrapassar os limites e regressar a um modo de vida comunal. É voltar à Idade do Ouro com consciência.
A experiência plena deste comportamento dá os primeiros passos de há quatro anos a esta data, mas começou a ser vivida há mais de duas décadas. O desespero da não sobrevivência foi a pedra de toque para que tudo se desenvolvesse no sentido inverso ao que vinha sendo tomado.
Com a terra transformada em deserto, a produzir pouco trigo e cortiça q.b., e com borregos para vender, a família Cunhal Sendim foi chamada a gerir os muitos hectares que lhe tinham sido retirados como consequência das políticas praticadas após o 25 de Abril. Estávamos em 1990. A Herdade do Freixo do Meio era trabalhada por uma dúzia de pessoas, e o desemprego grassava na aldeia ao lado, sobretudo entre as mulheres. Alfredo, acabado de cursar Engenharia Zootécnica na Universidade de Évora, não muito longe dali, é chamado a ajudar a mãe e a responsabilizar-se por ser dono da terra outra vez.
Às apalpadelas e sem perceber muito do assunto, foi-se intensificando ainda mais a produção. “A minha mãe tinha uma lógica produtivista, muito contrária à minha. Costumava dizer que não semeava as estradas porque tinha de passar com o carro por cima delas. Dizia que precisava de levantar a casa, precisava de dar de comer às pessoas. O meio natural estava cada vez mais degradado. Isto era um deserto. O risco era enorme. Tínhamos cada vez menos margem de manobra. Estávamos desesperados”, conta Alfredo Cunhal Sendim, hoje presidente da direção da Cooperativa de Usuários Herdade do Freixo do Meio, uma economia social sem fins lucrativos, gerida numa lógica comunitária.
Naquela altura, a herdade já não conseguia dar trabalho, ter as contas certas. “Pensei em comprar mais ovelhas, de mil queria passar para cinco mil. Tínhamos uma dependência enorme do exterior, comprávamos quase tudo e vivíamos uma fragilidade enorme”, continua. Era o começo da evidência de que tinha de se mudar alguma coisa, senão tudo.
A ideia passou por tentar descobrir o que alterar, como fazer, que alternativas adotar. Ana Fonseca, uma colega de Alfredo que estava a escrever uma tese sobre a Idade Média no Alentejo, e que trabalhava na herdade, ia-lhe falando na estrutura do montado. Ou seja, “do resultado da experiência humana de conseguir relacionar-se com o ecossistema por forma a poder sobreviver, tendo sempre em conta os limites desse ecossistema”.
A história foi fazendo sentido e o desespero foi tão grande que, em determinado momento, Alfredo propôs à mãe e aos irmãos experimentar o montado à luz do conhecimento e da tecnologia da atualidade. Porque não regressar ao modelo da Idade do Ouro? Sem nada a perder, tomaram a “única” decisão estratégica para o Freixo. Com ela, abriram-se muitas portas e iniciou-se a agricultura biológica, da qual a família Sendim ouviu pela primeira vez falar através de um subsídio comunitário.
 <span class="arranque">Pioneiro</span> Alfredo Cunhal Sendim é a figura de proa da Herdade do Freixo do Meio. Foi ele que se aventurou na recuperação do montado
Pioneiro Alfredo Cunhal Sendim é a figura de proa da Herdade do Freixo do Meio. Foi ele que se aventurou na recuperação do montado
“A minha mãe achava que tínhamos de ter a nossa estratégia e não ir atrás da Europa, mas sempre que ela se cruzasse com a estratégia da UE deveríamos aproveitar. Em 1997 aparece um subsídio para o olival biológico. Já o fazíamos assim, sem químicos, sem nada. Aproveitámos, claro, mas fui saber o que era a agricultura biológica. Passámos a olhar para ela como uma ferramenta de diferenciação, talvez pudéssemos até aceder a um mercado que fizesse com que esta experiência continuasse”, recorda Alfredo.
Rapidamente a herdade certificou os seus produtos todos, o seu selo foi o primeiro a certificar carne em Portugal, o peru do Freixo. Mas o mercado biológico não existia ainda no país. Com três carrinhas, começaram então a vender, “uma costeleta de borrego em Sagres e um pão em Braga”. Faziam rotas de horas e horas, mas não servia de nada em termos de sobrevivência financeira. Por isso, durante anos, passaram a vender carne na Holanda. “Ia daqui com um camião até à Holanda vender a uma cadeia de talhos biológicos. Para descansar, comecei a ficar uns dias em casa dos meus clientes e a aprender a cortar carne. Isso levou-me a acreditar que tínhamos de ir diretamente para o retalho.” Entusiasmou-se e montou um talho e uma loja para vender outros produtos no mercado de Montemor-o-Novo. Em dois anos foram à falência. “Não havia consciência, nem pessoas.” Foram para Évora, faliram novamente. Até que abriram, no Mercado da Ribeira, em Lisboa, um talho e uma charcutaria. “Lá fomos começando a vender.”
Porém, os primeiros passos na criação do antigo montado foram a alteração da estrutura de produção. “Há 50 anos que não crescia aqui uma árvore, voltámos à reflorestação natural”, frisa Alfredo.
“Uma aldeia tem uma estrutura que são as casas, as ruas, a eletricidade, as águas. Depois há um sistema que vive lá dentro. São as trocas, as relações entre as pessoas. Deparámo-nos com uma aldeia abandonada, tínhamos tirado os elementos que lá estavam dentro. O meu bisavô foi tirando peças de um puzzle muito completo. Hoje tiro a coruja, amanhã tiro o lince, depois tiro a bactéria e desaparece o fungo, tiro o porco, tiro a vaca, fica só a ovelha, tiro o cavalo, tiro o burro. Vou tirando elementos do sistema, simplificando-o e intensificando-o. Às tantas, tiro o solo e começo a comer a estrutura, as pastagens, os arbustos e as árvores.”
Caminho ao contrário
Ao compreenderem o que tinha acontecido no passado, fizeram o processo inverso, introduzindo no modelo produtivo todos os elementos que tinham sido retirados e que já estavam em falta. “Se só tínhamos ovelhas, introduzimos perus, galinhas, porcos, vacas, cavalos, burros, muitos animais selvagens. Fizemos um plano para conservação do gato bravo, entre outros, um elemento fundamental nesta estrutura, fizemos planos para conservar mais animais, coelhos, javalis, ginetes, saca-rabos, toirões. Começámos a compreender todas as funções destes bichos.”
Os animais selvagens são uma ferramenta fundamental na perspetiva de funcionamento do macro-organismo, alerta Alfredo. Têm, entre muitas outras coisas, uma função essencial, a de autocontrolo. São muitas vezes eles os responsáveis pela criação de um sistema que promove o respeito pelos limites. Se, por exemplo, crescer muita erva, aparecem os animais que a comem, porque não é interessante para o sistema haver tanta erva. Mas, “matámos os superpredadores todos, e neste momento ninguém regula o javali se não formos nós”.
 <span class="arranque">Raças</span> Nesta herdade alentejana, são as raças ancestrais que mandam. Vão da vaca barrosã ao porco preto ou às galinhas portuguesas, mas também às ovelhas aos burros e aos cavalos
Raças Nesta herdade alentejana, são as raças ancestrais que mandam. Vão da vaca barrosã ao porco preto ou às galinhas portuguesas, mas também às ovelhas aos burros e aos cavalos
“A vontade de regressar ao montado, porém, passou também por pensar em profundidade como podíamos voltar a esse cenário.” Paulatinamente, foram sendo introduzidos o porco alentejano, a vaca, as galinhas, foram sendo introduzidas culturas. “O montado não são apenas uns sobreiros com uns animais por baixo, mas sim, um sistema completo que está ligado às hortas, às vinhas, aos olivais. Há aqui toda uma interação de fatores que fazem com que a bateria se carregue. Alterámos ainda a maneira como mexíamos no solo e criámos condições para a regeneração natural. Voltámos a estabelecer a estrutura com todos estes elementos, depois tivemos de aprender a trabalhar com eles.”
600 produtos diferentes
Como consequência disso, surgiram imensas surpresas. A primeira foi o deixar de viver de três produtos para passar a viver de uma panóplia enorme de produtos que apareceram em pequena escala, mas com muita sazonalidade e com muita variedade. “Já chegámos a fazer mais de 600 referências de comida num mês nesta herdade, são 600 códigos de barras, são 600 produtos diferentes.”
Era preciso sobreviver com eles em quantidades pequenas. “Ninguém vinha cá comprar dez borregos, mais dez porcos e dez leitões.” No entanto, todo o sistema natural é baseado em diversidade. Por isso se acrescentou à produção a transformação. “Percebemos que se não transformássemos, se não acrescentássemos valor, se não diversificássemos, nunca íamos ser capazes de pagar os ordenados ao fim do mês. Começámos com o porco. Chamei duas senhoras aqui da aldeia, Foros de Vale de Figueira, e disse-lhes: vamos fazer linguiças. Não conseguimos vender o porco doutra maneira.”
Hoje são sete as microfábricas de transformação alimentar da Herdade do Freixo do Meio, uma padaria, que faz pão, tostas e bolos, um matador de aves e uma operação de charcutaria, que põe cá fora desde os enchidos tradicionais do porco alentejano à alta charcutaria austríaca, uma outra operação de carnes, onde se transforma o porco, o bovino e o borrego. Há ainda a transformação de vegetais, que começa pela bolota, símbolo do Freixo, e vai para os produtos hortícolas frescos, conservas de tomate, sopas, empadas, quiches, vinhos, vinagres, azeites e por aí fora. A herdade só trabalha com matérias-primas próprias, compra muito poucas matérias fora, só mesmo para complementar as suas. Falamos apenas de sal e de alguns cereais.
É obrigatório servir o sistema, colaborar com ele em prol do mesmo objetivo. Travar a velocidade do planeta, folgar os ecossistemas já tão degradados e mudar mentalidades. Só assim construiremos coisas duradouras
O truque foi pôr em prática o conceito de agricultura multifuncional: produção, transformação, distribuição por grosso, distribuição a retalho. Ao qual se juntam as atividades turístico-didáticas. “Se não tivermos oportunidade de explicar às pessoas o que estamos a fazer, não vamos ter hipótese de sobreviver, não vamos ter clientes. E se as pessoas não virem o que fazemos ainda é pior. Tivemos de arranjar maneira de abrir a porta e de trazer cá gente.” Criaram-se rotas e percursos. “Não vinha ninguém. Só depois de percebemos que os portugueses se enganam pela barriga é que tivemos sucesso.”
De início fazia-se um cozido, depois montou-se uma cantina, fizeram-se festas e dias abertos. Deram-se passos significativos. E criou-se toda uma nova forma de vida, diferentes comportamentos. “Só temos uma grande hipótese e é muito simples: é preciso percebermos que o homem não é um animal egoísta por natureza e que foram as circunstâncias que ele próprio criou que o transformaram num animal competitivo, individualista, sem noção do interesse comum da nossa e das próximas gerações.”
Deixarmos de olhar para o homem como uma peça fora do todo é preciso, como é preciso mudar a forma como nos relacionamos com o sítio onde vivemos, o tal sistema natural com a sua própria ética. Aquela que vai no sentido da cooperação e não no caminho da competição. É obrigatório servir o sistema, colaborar com ele em prol do mesmo objetivo. Travar a velocidade do planeta, folgar os ecossistemas já tão degradados e mudar mentalidades. Só assim se alcançará a sustentabilidade, essa ideia de construirmos coisas duradouras.
“Um dos grandes dramas é termos criado um sistema que se mexe por causa de uma máquina chamada consumo, mas onde os consumidores não podem ser responsabilizados porque não lhes dão oportunidade para fazer parte da decisão”, considera Alfredo. Na Herdade do Freixo do Meio isso não acontece. Os 35 trabalhadores permanentes, os voluntários, os estagiários, os trabalhadores sazonais e as famílias que se alimentam à conta dos produtos que lá são produzidos são todos responsabilizados nas suas ações e na tomada de decisões relativas àquele bem comum. Uma economia social apoiada na total transparência.
Vida de convento
“A grande experiência é sair da lógica da competição e voltar à consciência de que somos parte de um todo, somos parte integrante desse todo que está conectado, que tem as suas regras, as do bem e as do mal. O que queremos experienciar é a construção de um espaço verdadeiro de cooperação”, diz o presidente da direção da Cooperativa. Alfredo acrescenta ainda: “Somos aquilo que praticamos, não o que racionalizamos, como nos explica António Damásio.”
Nessa lógica, a vida nos 600 hectares que compõem o Freixo é muito diferente daquela a que estamos habituados. Todos olham a natureza como parte do nós. “Vivemos aqui quase como num convento.” Sendo que um convento é uma estrutura de pessoas que tentam trabalhar a colaboração e a integração. “Tentamos que haja um respeito enorme pela individualidade da pessoa, cada um tem o seu espaço, mas tudo nos incita a criarmos relações e cooperação, encontros e partilha.” É toda uma ideologia de vida da qual comungam por opção. “Não há ninguém aqui só pelo salário. Todos têm a inquietude de, pelo menos, fazerem parte de uma construção. Estamos aqui para cocriar este sistema e não para fazermos o nosso projeto, estamos aqui para fazer o projeto da Humanidade.”
Concorrem para esses princípios a demissão de tratar a terra apenas como um ativo económico e a recusa de a manter como um bem privado. “Ela é o legado do qual partimos para fazer estas experiências sem riscos. Sou guardião, sou responsável, mas não o sou sozinho. Tenho de trabalhar numa lógica comunal.” Ora, esse bem comum tem diferentes tipos de usuários com diferentes interesses, como harmonizá-los?
Através de um modelo sociocrático, um espaço de diálogo ordenado com base na tal transparência, que é apoiada por um sistema informático que permite que todas as pessoas da cooperativa saibam o que ganha cada um, o que faz a cada hora, ou quanto custa uma cenoura. A par foi desenvolvido um programa modelar. Chama-se Agricultura Apoiada pela Comunidade e CSA — Comunidade que Sustenta a Agricultura — e transforma todos os que subsistem a partir da produção efetiva da herdade em coprodutores e não simplesmente em consumidores. São as famílias que se comprometem a ter o Freixo como fornecedor semanal da sua alimentação básica. Um ‘consumo’ comprometido de parte a parte, viabilizando as contas da herdade. “Se temos 50 frangos por semana porque é que não temos 50 pessoas a usar esses frangos e ter zero desperdício alimentar?” Alfredo pergunta e responde: “Todas as civilizações colapsaram pela mesma razão, o não relacionamento com os recursos. Estamos na época mais imperialista de sempre, na qual não há pão. É preciso cuidar a relação com o ecossistema.
in EXPRESSO, com a devida vénia

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