Chomsky: Não podemos deixar o Covid-19 nos levar ao autoritarismo
À medida que a pandemia do Covid-19 revira a ordem política e econômica global, dois futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro, enfrentamos a ameaça de uma recaída no autoritarismo. No outro extremo, temos a possibilidade de aprender com esse desastre (outra colossal falha de mercado aprimorada por um ataque neoliberal e agora pela bola de demolição de Trump): a crise atual oferece um poderoso argumento em favor da assistência universal à saúde e de reavaliarmos os problemas mais profundos de nossas sociedades.
Por Noam Chomsky.
* Publicado originalmente em ‘Truth Out‘. A tradução é de César Locatelli, para a Carta Maior.
Enquanto
a pandemia do Covid-19 revira a ordem política e econômica global, dois
futuros muito diferentes parecem possíveis. Em um extremo do espectro,
as sociedades que enfrentam o tributo imposto pelo vírus podem entrar em
colapso no autoritarismo. Mas no outro extremo do espectro, temos a
possibilidade de aprender as lições com esse desastre – outra colossal
falha de mercado aprimorada por um ataque neoliberal e agora pela bola
de demolição de Trump.
A
crise atual oferece um argumento poderoso em favor da assistência
universal à saúde e da reavaliação dos problemas mais profundos de
nossas sociedades. O resultado que prevalecerá depende da força da
opinião pública despertada, conforme descrito nos exemplos a seguir, que
são adaptados, para este artigo para a Truthout, do meu livro Internationalism or Extinction [Internacionalismo ou extinção].
Se
me permitem, gostaria de começar com uma breve reminiscência de um
período que é estranhamente semelhante a hoje em muitos aspectos
desagradáveis. Estou pensando em 80 anos atrás. Por acaso, foi o momento
do primeiro artigo que me lembro de ter escrito sobre questões
políticas. Fácil de datar: foi logo após a queda de Barcelona, em
fevereiro de 1939.
O
artigo era sobre o que parecia ser a disseminação inexorável do
fascismo pelo mundo. Em 1938, a Áustria havia sido anexada pela Alemanha
nazista. Alguns meses depois, a Tchecoslováquia foi traída, colocada
nas mãos dos nazistas na Conferência de Munique.
Na
Espanha, uma cidade após a outra estava caindo nas forças de Franco. Em
fevereiro de 1939, Barcelona caiu. Esse foi o fim da República
Espanhola. A notável revolução popular, revolução anarquista, de 1936,
1937, 1938, já havia sido esmagada pela força. Parecia que o fascismo se
espalharia sem ter fim.
Não
é exatamente o que está acontecendo hoje, mas, se pudermos emprestar a
famosa frase de Mark Twain, “A história não se repete, mas às vezes
rima” – muitas semelhanças para se ignorar. Quando Barcelona caiu, houve
uma enorme inundação de refugiados da Espanha.
A
maioria foi para o México, cerca de 40.000. Alguns foram para a cidade
de Nova York, estabeleceram escritórios anarquistas na Union Square,
sebos na 4th Avenue. Foi aí que recebi minha educação política inicial,
perambulando por essa área. Isso foi há 80 anos. Agora é hoje.
Não
sabíamos na época, mas o governo dos EUA também estava começando a
pensar que na virtual impossibilidade de conter a disseminação do
fascismo. Eles não o viam com o mesmo alarme que eu quando tinha 10 anos
de idade. Agora sabemos que a atitude do Departamento de Estado era
bastante dúbia em relação ao significado do movimento nazista.
Na
verdade, havia um cônsul em Berlim, o cônsul dos EUA em Berlim, que
estava enviando comentários bastante inconsistentes sobre os nazistas,
sugerindo que talvez eles não fossem tão ruins quanto todo mundo dizia.
Ele ficou lá até o dia do ataque de Pearl Harbor, quando foi exonerado –
o famoso diplomata chamado George Kennan. Não é uma má indicação da
atitude dúbia em relação a esses desenvolvimentos. Acontece que, não
poderia saber na época, mas logo depois disso, em 1939, o Departamento
de Estado e o Conselho de Relações Exteriores começaram a planejar o
mundo pós-guerra, como seria o mundo pós-guerra.
E
nos primeiros anos, exatamente naquela época, nos anos seguintes, eles
assumiram que o mundo do pós-guerra seria dividido entre um mundo
controlado pelos alemães, um mundo controlado pelos nazistas, a maior
parte da Eurásia, e um mundo controlado pelos EUA, que incluiria o
Hemisfério Ocidental, o antigo Império Britânico – que os EUA assumiriam
partes do Extremo Oriente. E esse seria o formato do mundo pós-guerra.
Agora, sabemos que essas opiniões foram mantidas até que os russos
mudassem a maré.
Stalingrado,
1942–1943, a enorme batalha de tanques em Kursk, pouco depois, deixou
bem claro que os russos derrotariam os nazistas. O planejamento mudou. A
imagem do mundo pós-guerra mudou e passou para o que vimos no último
período desde aquela época. Bem, isso foi há 80 anos.
Hoje
não estamos enfrentando a ascensão de algo como o nazismo, mas estamos
enfrentando a expansão do que às vezes é chamado de internacional
reacionária ultranacionalista. A aliança no Oriente Médio consiste dos
estados reacionários extremistas da região – Arábia Saudita, Emirados
Árabes Unidos, Egito, sob a ditadura mais brutal de sua história, Israel
no centro – confrontando o Irã.
Existem
ameaças graves que estamos enfrentando na América Latina. A eleição de
Jair Bolsonaro no Brasil colocou no poder o ultranacionalismo de direita
mais extremo, mais ultrajante que agora assola o hemisfério. Lenín
Moreno, do Equador, deu um grande passo em direção à união da
extrema-direita expulsando Julian Assange da embaixada . Ele foi
rapidamente preso pelo Reino Unido e enfrenta um futuro muito perigoso, a
menos que haja um significativo protesto popular. O México é uma das
raras exceções na América Latina a esses desenvolvimentos. Na Europa
Ocidental, os partidos de direita estão crescendo, alguns deles de
caráter muito assustador.
Há
também contradesenvolvimentos. Yanis Varoufakis, ex-ministro das
finanças da Grécia, um indivíduo muito significativo e importante, junto
com Bernie Sanders, pediu a formação de uma Internacional Progressista
para combater a internacional de direita que está se desenvolvendo. No
nível dos estados, o equilíbrio parece esmagadoramente na direção
errada.
Mas
os estados não são as únicas entidades. No nível das pessoas, é bem
diferente. E isso pode fazer a diferença. Isso significa a necessidade
de proteger as democracias em funcionamento, de aprimorá-las, de
aproveitar as oportunidades que elas oferecem, para os tipos de ativismo
que levaram a progressos significativos no passado e que poderão nos
salvar no futuro.
Quero
fazer algumas observações abaixo sobre a grave dificuldade de manter e
instituir a democracia, as forças poderosas que sempre se opuseram a
ela, as façanhas de por algum modo forma salvá-la e melhorá-la, e a
significância disso para o futuro.
Mas
primeiro, algumas palavras sobre os desafios que enfrentamos, sobre os
quais você já ouviu falar o suficiente e todos sabem. Não preciso entrar
neles em detalhes.
Descrever
esses desafios como “extremamente graves” seria um erro. A frase não
captura a enormidade dos tipos de desafios que temos pela frente. E
qualquer discussão séria sobre o futuro da humanidade deve começar por
reconhecer um fato crítico, que a espécie humana agora enfrenta uma
questão que nunca havia surgido na história da humanidade, uma pergunta
que precisa ser respondida rapidamente: a sociedade humana sobreviverá
por muito tempo?
Bem,
como todos sabem, há 70 anos vivemos sob a sombra da guerra nuclear.
Aqueles que analisaram os registros só podem se surpreender com o fato
de termos sobrevivido até agora. Vez após outra, o desastre terminal tem
ficado extremamente próximo, a alguns minutos de distância. É um
milagre que tenhamos sobrevivido. Milagres não duram para sempre.
Isso tem que ser interrompido e rapidamente. A recente Revisão da Postura Nuclear [Nuclear Posture Review]
do governo Trump aumenta drasticamente a ameaça de conflagração, que
seria de fato terminal para a espécie. Podemos lembrar que esta Revisão
da Postura Nuclear foi patrocinada por Jim Mattis, que era considerado
civilizado demais para ser mantido no governo.
Havia
três tratados principais de armas: o Tratado ABM, Tratado de Mísseis
Antibalísticos; o Tratado INF, Forças Nucleares Intermediárias; o novo
tratado START.
Os
EUA se retiraram do Tratado ABM em 2002. E qualquer um que acredite que
mísseis antibalísticos são armas defensivas esta iludido com a natureza
desses sistemas. Os EUA acabaram de sair do Tratado INF, estabelecido
por Gorbachev e Reagan em 1987, que reduziu drasticamente a ameaça de
guerra na Europa, que se espalharia muito rapidamente.
Manifestações
públicas maciças foram o pano de fundo para levar a um tratado que fez
uma diferença muito significativa. Vale lembrar desse e de muitos outros
casos em que o ativismo popular significativo fez uma enorme diferença.
As lições são óbvias demais para enumerar. O governo Trump retirou-se
do Tratado INF. Os russos se retiraram logo depois.
Se
você der uma olhada mais de perto, verá que cada um dos lados tem uma
argumentação credível, dizendo que o oponente não cumpriu o tratado.
Para aqueles que querem uma imagem de como os russos podem olhar para a
situação, o Bulletin of Atomic Scientists,
o principal periódico sobre questões de controle de armas, publicou
recentemente um artigo de Theodore Postol, destacando o quão perigosas
são as instalações americanas de mísseis antibalísticos na fronteira com
a Rússia – quão perigosos eles são e podem ser percebidos pelos russos.
Observem, na fronteira com a Rússia. As tensões estão aumentando.
Ambos
os lados estão realizando ações provocativas. Em um mundo racional, o
que aconteceria seriam negociações entre os dois lados, com
especialistas independentes para avaliar as acusações que cada um está
fazendo contra o outro, para levar a uma resolução dessas acusações,
para restaurar o tratado. Isso seria num mundo racional. Infelizmente,
porém, não é o mundo em que vivemos. Nenhum esforço foi feito nesse
sentido. E não será, a menos que haja pressão significativa.
Bem,
resta o novo tratado START. O novo tratado START já foi designado pela
figura responsável (que se descreveu modestamente como o maior
presidente da história americana) como o pior tratado que já aconteceu
na história da humanidade, a designação usual para qualquer coisa que
tenha sido feita por seus antecessores.
Trump
acrescentou que precisamos nos livrar dele. Na verdade, o tratado entra
em renovação logo após a próxima eleição, muito estará em jogo. Muito
estará em jogo na questão da renovação desse tratado. Ele conseguiu
reduzir significativamente o número de armas nucleares, muito acima do
que deveriam ser, mas muito abaixo do que eram antes. E poderia
continuar.
Enquanto
isso, o aquecimento global prossegue em seu curso inexorável. Durante
este milênio, cada ano, com uma exceção, foi mais quente do que o
anterior. Existem trabalhos científicos recentes, de James Hansen e
outros, que indicam que o ritmo do aquecimento global, que vem
aumentando desde 1980, pode estar aumentando acentuadamente e pode
passar de um crescimento linear para um crescimento exponencial, o que
significa dobrar a cada duas décadas.
Já
estamos nos aproximando das condições de 125.000 anos atrás, quando o
nível do mar era cerca de 10 metros mais alto do que é hoje. Com o
derretimento, o derretimento rápido, dos enormes campos de gelo da
Antártica, esse ponto pode ser alcançado. As consequências disso são
quase inimagináveis. Quer dizer, nem vou tentar descrevê-las, mas vocês
podem descobrir rapidamente o que isso significa.
Enquanto
isso acontece, você lê regularmente relatos eufóricos da imprensa sobre
como os Estados Unidos estão avançando na produção de combustíveis
fósseis. Agora ultrapassamos a Arábia Saudita. Estamos na liderança da
produção de combustíveis fósseis. Os grandes bancos, JPMorgan Chase e
outros, estão despejando dinheiro em novos investimentos em combustíveis
fósseis, incluindo os mais perigosos, como as areias betuminosas do
Canadá. E tudo isso é apresentado com grande euforia, com excitação.
Agora estamos alcançando a “independência energética”. Podemos controlar
o mundo, determinar o uso de combustíveis fósseis no mundo.
Apenas
uma palavra sobre qual é o significado disso, o que é bastante óbvio.
Não é que os repórteres, comentaristas não saibam disso, que os CEOs dos
bancos não saibam disso. Claro que eles sabem. Mas essas são pressões
institucionais das quais é extremamente difícil se livrar. Tente
colocar-se na posição de, digamos, o CEO do JPMorgan Chase, o maior
banco, que está direcionando grandes somas para investimentos em
combustíveis fósseis. Ele certamente sabe tudo o que todos sabem sobre o
aquecimento global. Não é segredo.
Mas
quais são suas escolhas? Basicamente, ele tem duas opções. Uma opção é
fazer exatamente o que ele está fazendo. A outra opção é renunciar e ser
substituído por outra pessoa que fará exatamente o que está fazendo.
Não é um problema individual. É um problema institucional que pode ser
resolvido, mas apenas sob tremenda pressão pública.
E
vimos recentemente, de maneira muito dramática, como a solução pode ser
alcançada. Um grupo de jovens, o Movimento Sunrise, organizado, chegou
ao ponto de se sentar nos escritórios do Congresso e despertou algum
interesse das novas figuras progressistas que conseguiram chegar ao
Congresso. Sob muita pressão popular, a congressista Alexandria
Ocasio-Cortez, acompanhada pelo senador Ed Markey, colocou o Green New Deal na agenda.
Essa
é uma conquista notável. É claro que o plano recebeu ataques hostis de
todos os lados: isso não importa. Alguns anos atrás, era inimaginável
que fosse discutido. Como resultado do ativismo desse grupo de jovens,
ele está agora no centro da agenda. Ele precisa ser implementado de uma
forma ou de outra. É essencial para a sobrevivência, talvez não
exatamente dessa forma, mas com algumas modificações.
Enquanto
isso, o Relógio do Juízo Final do Boletim de Cientistas Atômicos, em
janeiro passado, estava marcado para dois minutos para meia-noite. É o
ponto mais próximo do desastre terminal desde 1947. O anúncio desse
horário – desse cenário – mencionou as duas principais ameaças
conhecidas: a ameaça da guerra nuclear, que está aumentando, e a ameaça
do aquecimento global, que está aumentando ainda mais. E acrescentou uma
terceira ameaça pela primeira vez: o enfraquecimento da democracia.
Essa é a terceira ameaça, junto com o aquecimento global e a guerra
nuclear.
E
isso foi bastante apropriado, porque o funcionamento da democracia
oferece a única esperança de superar essas ameaças. Eles não serão
tratados pelas principais instituições, estatais ou privadas, agindo sem
pressão pública maciça, o que significa que os meios de funcionamento
democrático devem ser mantidos vivos, usados da maneira que o Movimento
Sunrise fez, da maneira como a grande massa demonstração no início dos
anos 80, e da maneira como continuamos hoje.
O
novo coronavírus está causando uma calamidade hedionda – que estava
prevista e poderia ter sido evitada. Análises credíveis, de cenários
extremos possíveis, avaliam que milhões podem morrer, e como sempre, com
os pobres e mais vulneráveis sofrendo mais no mundo inteiro. Houve
outras catástrofes de saúde na história humana. A “Peste Negra” matou
pelo menos um terço da população da Europa, que se recuperou. Também
haverá recuperação neste caso, a um custo humano terrível.
Também
enfrentamos outras ameaças, que são incomparavelmente mais graves,
mesmo que não sejam tão perturbadoras para a vida cotidiana – hoje. Uma é
a ameaça de destruição praticamente total pela guerra nuclear, que é
ameaçadora e crescente. Outra é a ameaça de uma catástrofe ambiental,
que é iminente e devastadora.
Não haverá recuperação. E não há tempo a perder ao tratar decisivamente com as ameaças.
Diante
da imensa tragédia do Covid-19, pode parecer cruel colocar a calamidade
em perspectiva, e também instar uma busca por suas raízes. Mas o
realismo é, no entanto, imperativo, pelo menos se esperamos evitar mais
desastres.
Na
raiz estão colossais falhas de mercado e malignidades mais profundas da
ordem socioeconômica, elevadas da crise ao desastre pelo capitalismo
brutal da era neoliberal. Questões que valem a pena considerar,
particularmente no país mais poderoso da história mundial, que enfrenta a
decisão de permitir ou não que o aríete continue a ser brandido com
força devastadora total.
***O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.
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Noam Chomsky é
analista político e professor de Linguística no Massachussetts
Institute of Technology (MIT). Além do trabalho na área de Linguística,
Chomsky é reconhecido internacionalmente como um dos maiores
intelectuais vivos da esquerda, tendo publicado centenas de artigos e
livros que abordam temas como mídia, movimentos sociais, política e
economia global. Foi traduzido para
centenas de idiomas e publicado, no Brasil, por diversas editoras, como a
Bertrand Brasil, Hedra, WMF Martins Fontes, Editora UNESP, dentre
outras.
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