Cuba: à nova geração cabe “defender um socialismo que já não é o socialismo anterior”
O 8º Congresso do Partido Comunista de Cuba começa esta sexta-feira, entre a renovação das lideranças políticas e reformas económicas profundas. Diante de um bloqueio com mais de 60 anos, agudizado pela política externa de Trump, o socialismo cubano não consegue estar fora das dinâmicas da globalização: das redes sociais às fake news, da sabotagem à dissidência.
A maioria dos actuais dirigentes do Partido Comunista de Cuba (PCC) nasceu depois de 1959 e tem menos de 62 anos – a idade da revolução cubana. O 8.º Congresso do PCC, que esta sexta-feira começa, aposta na renovação da liderança e na formação ideológica dos seus quadros (cuja média de idade é 42 anos). Até dia 19, um novo Secretário-Geral substituirá o líder histórico Raúl Castro, com 89 anos.
É um momento simbólico de transição e de passagem de testemunho geracional, num contexto extremamente adverso, apesar dos números da covid-19 serem dos mais baixos na América Latina (491 mortos em mais de 90 mil casos) e das notícias positivas sobre cinco vacinas em estudo, duas na fase final de testes clínicos (Cuba espera começar a vacinar a população no Verão). Mas a política de Trump ainda em vigor (que suspendeu ligações entre cubanos dentro e fora do país e dificultou o envio de remessas de emigrantes), as sanções à Venezuela e a interrupção do turismo devido à pandemia, levaram a uma contracção do PIB em 11% em 2020. Em Janeiro, um novo plano económico pôs fim às duas moedas, permitindo a livre circulação do dólar, o investimento estrangeiro e o aumento dos salários.
Este novo modelo económico, na “continuidade” de que fala o presidente Miguel Díaz-Canel, será discutido no Congresso. O PÚBLICO ouviu analistas e comunistas entre os 20 e os 40 anos, para perceber que desafios o país enfrenta, diante do bloqueio dos EUA e da invasão do digital, na criação de consensos.
Heranças e desafios
Fiorella Franco olha para a geração da Sierra Maestra com “respeito e orgulho”. Estudante de Jornalismo na Universidad de Oriente, Santiago de Cuba, esta militante da Juventude Comunista (UJC), 22 anos, vê na “continuidade” de Díaz-Canel uma política que dá seguimento ao que “criou a geração histórica, continuar o seu legado, as suas ideias e convicções, mas mais do que isso, fazê-las actuais, trazê-las para o contexto de hoje”. Raynier Pellón Azopardo, 41 anos, investigador do Centro de Investigações de Política Internacional, militante do PCC diz-se “grato à geração de Fidel e Raúl”. O seu legado fundamental foi “deixar-nos um país independente e soberano”; graças à sua liderança “o futuro de Cuba hoje repousa unicamente nas mãos do povo cubano”.
Para o politólogo Rafael Hernández, o grande desafio dos novos líderes, contudo, é que “nenhum deles é Fidel Castro nem Raúl Castro – não se trata de uma questão de idade; trata-se de que não têm uma trajectória histórica como os que lideraram a revolução”. Os dois líderes históricos tinham “visões coincidentes, mas formas diferentes de as materializar: Fidel sempre foi o mobilizador e, nesse sentido, ele alimentava a alma. Raul percebia a necessidade de galvanizar, mas lembrava, pragmático: é necessário alimentar o corpo”, explica o historiador Antoni Kapcia, do Centre for Research on Cuba (Nottingham, Reino Unido). Fidel e Raul foram os pontos de um pêndulo que oscilou entre idealismo e pragmatismo, mobilização e eficiência. A actual geração não tem, diz Hernández, o “crédito político acumulado” de Fidel e Raúl. Por isso “tem de construir um consenso político e é o que já está a fazer”.
Claudia Damiani, 29 anos, é designer, professora, escritora, activista do colectivo Cimarronas (iniciativa feminista anticapitalista) e militante da UJC. Entende esta continuidade como “procura da justiça social e da soberania política e económica, como horizonte do projecto revolucionário”. Acrescenta: “A revolução está no poder há 62 anos, e para mim a continuidade não se refere à manutenção, tal qual, desse poder, mas à manutenção do seu espírito revolucionário, ou seja, que cada vez se aprofunde mais o seu carácter socialista.” É esta ideia sublinhada por Iramis Rosique, 26 anos, também da UJC, licenciado em Bioquímica/Biologia Molecular: “O solo da história pode ser pantanoso. Ficar-se imóvel, nele, fazendo o mesmo e o mesmo, pode significar afundar-se. [Creio que] a continuidade a que se refere o presidente é a da política criadora, da subversão permanente, da luta pela emancipação.”
A construção do socialismo não está terminada, dizem. Até porque esta geração tem diante de si todos os desafios: “Tocou-lhe lidar com uma transição política, uma situação económica dura, transformar o modelo económico, e não há maneira de o fazer sem transformar todo o modelo político”, diz Rafael Hernández. Cabe-lhe “construir uma nova ordem social: defender um socialismo que já não é o socialismo anterior”. Perante uma crise económica, mudança política, pandemia, nova ordem legislativa e jurídica instaurada pela nova Constituição (aprovada em 2019): “É uma tarefa descomunal.”
O partido e o governo
Foi Raúl Castro que, no mandato de 2008-2018, começou a política de renovação de quadros e dirigentes, abrindo espaço na liderança do país a uma geração já nascida com a revolução, como é o caso de Díaz-Canel, 60 anos. Também foi Raul que trouxe de novo a discussão sobre a separação entre Partido e governo, e as funções de cada um na gestão do país. O Partido deverá ser o guia ideológico, mas não controlar o governo nem interferir na governação. O Governo é eleito pela Assembleia de Poder Popular, por sua vez eleita pelos 10 mil delegados representantes de organizações populares de massas, eleitos por cidadãos maiores de 16 anos por voto secreto e directo.
A nova Constituição é clara: “Separar o aparelho do governo das empresas estatais para se constituir um sector público realmente público e não estatal, autónomo”, diz Hernández. A problemática da autonomia é o eixo principal da agenda das reformas económicas em curso: “Constituir uma economia mista onde haja um sector privado, um mercado e um sector público”; mas também garantir “autonomia dos municípios, do poder e governos locais. São as duas lógicas principais desta reforma.”
Rafael Hernández lembra que o PCC “não é um Partido Comunista que se criou para tomar o poder, mas um partido que se criou já no poder para unificar as forças revolucionárias”. Fundado em 1965, o PCC juntou organizações políticas e revolucionárias anteriores e posteriores à revolução de 1959. O primeiro Partido Comunista existiu na clandestinidade entre 1925 e 1935, dando origem ao “legalizado” Partido Socialista Popular (PSP). O golpe de Fulgencio Batista, em 1952, ilegalizou também o PSP.
A revolução de 1959 foi conduzida pelo Movimento 26 de Julho (M26), criado após o ataque ao Quartel Moncada, em Santiago (1953). Foi o M26 que liderou a guerrilha na Sierra Maestra. O PSP fazia, então, oposição cívica à ditadura de Batista, ainda que alguns dos seus membros participassem na luta armada. Muito separava os rebeldes dos comunistas, mas tiveram de se entender após a queda de Batista. Entre 1961-62, o PSP juntou-se ao M26 e ao Directório Revolucionário, criando as Organizações Revolucionárias Integradas (ORI), que deram lugar ao Partido Unido da Revolução Socialista (PURS), depois transformado no actual PCC. É essa geração que agora se retira de combate.
O algoritmo contra Cuba
Cuba não é alheia às dinâmicas da globalização, das alterações climáticas às pressões geoestratégicas do seu poderoso vizinho. O neoliberalismo penetra todas as esferas, do espaço público ao privado, da dolarização ou turistificação da economia às fake news.
Com a explosão digital na ilha, a partir de 2018, veio a internet e redes sociais. Claudia admite que Cuba chegou a “um cenário digital já maduro sem ter a preparação político-ideológica necessária para o enfrentar”. Dirigentes e instituições avançaram para as redes, criando contas, informando e interagindo com os cidadãos. Mas é hábito, sobretudo no Twitter, contas oficiais de dirigentes cubanos serem suspensas ou bloqueadas. “Chegámos a esse mundo tarde e sem preparação. E os que se nos opõem movem-se nas novas tecnologias como peixe na água”, explica Iramis. “Se em Cuba ‘a rua é revolução’, então estamos em franca desvantagem. Por isso é fundamental a educação dos líderes e do povo, em geral, não só no uso técnico e instrumental das tecnologias, mas sobretudo numa cultura crítica que imunize e ao mesmo tempo sirva de arma na guerra cultural.”
Como combater um algoritmo que invisibiliza ou boicota vozes desde a ilha é um dos desafios, dizem. A preparação para o mundo digital estará também em discussão no Congresso. Como jornalista, para Fiorella, no contexto mediático actual é importante continuar a “triangular as fontes, buscar mais versões da história” porque “são muitos os meios e as pessoas que, desde dentro e fora, procuram tergiversar e impor as suas verdades e mentiras” sobre Cuba.
Rafael Hernández diz que as redes sociais são um problema velho com a cara nova da tecnologia. A difusão da dissensão através do digital “tem mais a ver com os meios do que com a substância do problema, que é articular um consenso e construir um diálogo com a cidadania”. Existe em Cuba uma sociedade civil activa, nos media, na cultura, nas instituições, que critica e discute problemas, e aponta soluções para o país. A revista Temas, de que Hernández é director, é um dos actores mais dinâmicos dos últimos 20 anos de discussão entre economistas, antropólogos, politólogos, intelectuais. “Avançou-se muito em relação à possibilidade de pôr os nossos problemas em cima da mesa. Isto tem a ver com a pressão que a sociedade gerou sobre a política”, diz. A política tem de aceitar que os problemas existem porque a sociedade os discute. O problema não é a “discrepância nas redes sociais” ou a sua “volatilidade”, até porque ela vai sempre existir: “Mas em que medida o governo será capaz de reagir de frente aos problemas reais que a opinião pública manifeste.”
Raynier é explícito sobre um deles: burocracia. “A excessiva papelada e trâmites que tornam lenta a gestão” pública. E reconhece deficiências no sistema: “Refiro-me àquelas pessoas que dentro do sector burocrático, aproveitando-se das suas funções públicas, trabalham em defesa de interesses próprios e dos seus círculos sociais.” São eles que “subliminarmente subvertem a essência do processo revolucionário”. Assim, “a prevenção e a luta contra a corrupção, o delito, e as indisciplinas deverá ser um trabalho de todos”.
Dissensão e dissidência
Estatismo, verticalismo, inércia, autoritarismo. Racismo e homofobia. Fake news, sabotagem, autocrítica. Cuba também não é imune às pressões da política dos EUA, nem aos seus problemas internos como a dissidência. Os EUA herdaram a política de Clinton: “Sabotar o sistema através de contactos com a sociedade civil, grupos religiosos e jovens, como já tinham feito na Europa de Leste. Fazem-no continuamente em Cuba. Enquanto a política norte-americana não mudar, isto continuará a acontecer”, explica Kapcia.
Mas já não são as Damas de Branco, Yoani Sánchez ou Guillermo Fariñas. Em 2020, o Movimento San Isidro (MSI) deu corpo a intervenções políticas de rappers, jornalistas, intelectuais contra o governo. Vários foram presos por desacato. Seguiu-se uma greve de fome colectiva em protesto, dissolvida agressivamente pelo governo por alegadamente não se cumprirem regras de saúde pública face à pandemia. A intervenção policial no bairro San Isidro, em Havana, filmada e difundida pelas redes sociais para todo o mundo, criou um movimento internacional de solidariedade, apesar de a conta do Tik Tok de um dos activistas do MSI usar a hashtag #cubanosforTrump. Dias depois, instigados pela intervenção policial, um grupo de intelectuais e artistas, alguns afectos ao MSI, outros de maior protagonismo cultural (como a artista plástica Tania Bruguera ou o realizador Carlos Lechuga) organizaram um protesto à porta do Ministério da Cultura, exigindo reunir-se com o ministro. As primeiras conversas e reuniões foram difundidas em directo no Facebook. Este movimento chama-se 27 de Novembro (27N). Dias depois, outro grupo reuniu-se no Parque Trillo, em Havana, para debater os acontecimentos dos últimos meses. Claudia Damiani e Iramis Rosique estavam lá.
Mais do que uma resposta ao 27N, “eu diria que foi uma alternativa”, explica Claudia: “O MSI é um projecto pró-imperialista e em grande medida uma construção mediática. O 27N, contudo, tem um cariz mais heterogéneo, mas não é menos certo que surja em apoio ao MSI, que são os actores verdadeiramente mercenários”. O que se passou no Parque Trillo, diz, foi a “forma revolucionária de aproveitar a situação criada de raiz pelos acontecimentos de San Isidro”.
in jornal Público
Rafael Hernández distingue com firmeza noções de dissensão e dissidência. “Francamente creio que temos uma dissidência bastante raquítica do ponto de vista político. Nenhum destes grupos consegue pôr-se de acordo, nunca conseguiram articular-se, e continuam sem o conseguir, vivam dentro ou fora de Cuba. Nenhum realmente representa uma alternativa política nem tem capacidade de liderança real.” Lidar com eles através da força é “um erro, porque é contraproducente”, diz: converte-os em “vítimas ou heróis, dá-lhes uma estatura que realmente não têm”.
A dissensão, por seu lado, é o que transforma a sociedade. “A dissensão mais importante atravessa o consenso do socialismo: um consenso heterogéneo e contraditório que existe há mais de 20 anos. É aí que está o gérmen do processo de transformação”, explica Hernández. A oposição de que o socialismo precisa está “dentro das fileiras de revolução”: nas organizações, instituições, universidades. “Estamos a falar de um país onde 30% da força de trabalho tem um curso superior. Os profissionais são 41% da militância do partido, num universo de mais de 500 mil militantes. Não é uma minoria ou uma elite. É um sector criado por uma política educacional durante 60 anos e que produziu um sector profissional que é o seu capital humano. O maior capital cubano não é o açúcar, o turismo, nem as praias. São as pessoas. É nelas que está a mudança para pressionar a política.”
Claudia Damiani admite que a “revolução não é perfeita”. A sociedade cubana é fruto de séculos “de tradições hetero-patriarcais, deformações coloniais e subdesenvolvimento, cujas feridas não se apagam num ápice, e que subsistem em larga medida no imaginário popular”. Iramis admite que “nem sempre é fácil fazer a crítica dentro da Revolução”. O importante é “não ceder à tentação de, ouvindo-nos a nós mesmos, sairmos da revolução ou ir contra ela para fazer críticas que, no fim de contas, só se podem resolver na transição socialista.”
No Parque Trillo, os jovens apontaram críticas à ordem actual, diz Iramis: “Falámos da ampliação do poder popular e da participação que são a essência da democracia socialista. Da necessidade de formas produtivas novas fundadas na solidariedade e na harmonia com a natureza. Da necessidade de lutar contra o racismo, o patriarcado, a homofobia; contra os atrasos do estalinismo e do dogmatismo na política nacional. Tudo isto sempre a partir de um anticapitalismo e um anti-imperialismo de raiz.”
Dentro do sistema, é nestas críticas que está a base da revolução. “Mais do que o partido, a noção de comunismo ou socialismo, é a noção de revolução que é fundamental”, explica Kapcia. “O processo revolucionário cubano é sobre construção de identidade da nação. Sobre a noção de pátria. Não é ‘só’ sobre comunismo ou socialismo. Socialismo é o meio para chegar à Cuba libre.”
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