A suzanificação veio para ficar e Rui Rio, no temor de Passos Coelho, fará o mesmo que esperaria que o seu adversário interno fizesse
13 Abril 2021 10:42
Causou algum clamor a escolha de Suzana Garcia para encabeçar a lista do PSD na Amadora. Não percebo a razão. Não só é uma escolha natural, como vai ser repetida noutros municípios, motivo pelo qual Moedas, ameaçado por este vendaval, fará tudo para que nos esqueçamos que é do mesmo partido. Em todo o caso, a alegação de que Rio tinha anunciado “um banho de ética” e lhe virou costas é irrelevante, a ocasião faz a decisão.
Ora, tudo favorece este ascenso de quem se destaca na luta de lama nas televisões, um processo natural nos tempos que correm: já há dois presidentes que foram entronizados por esta via (Jimmy Morales, da Guatemala, e Volodymyr Zelensky, da Ucrânia) e, em Portugal, o principal partido da extrema-direita foi fundado por alguém que só ganhou galões no tribunismo futebolístico. Quem se destacou como paladina da justiça linchadeira não destoa dessas carreiras. Ali, a única regra é gritar mais alto: se Ventura quer a castração química, Garcia aceita o machado. E haverá sempre um José Silvano a tirar as medidas e a assegurar que os valores essenciais do partido estão salvaguardados, seja isso o que for.
Esta autoestrada do entretenimento televisivo dominado pela obsessão do choque para captar audiências, via futebol ou crime, conjugado com a ocupação avassaladora do espaço público mobilizando as técnicas virais das redes sociais, produz uma política a que, para atalhar razões, se deve chamar trumpismo, que é e será o modo de comunicação dominante desta época. De facto, à medida que a globalização cria mais vítimas, que um crescimento medíocre com desigualdade obscenamente galopante cria mais ressentimentos, que as políticas de divisão e de humilhação social dos pobres, ou das mulheres, ou dos imigrantes, agrava a dor na vida de tantas pessoas, os mecanismos de poder serão mais autoritários e o trumpismo é o seu instrumento.
Foi por isso que, iluminada pela sabedoria da sua “direita clássica”, Fátima Bonifácio escreveu há pouco um manifesto a apresentar a sua esperança de que, como “a direita não se conseguiu impor com boas maneiras e falinhas mansas”, uma vitória do Chega seja o início de “uma barrela de alto a baixo” no país. A suzanificação do PSD é uma via para essa “barrela”, mais do que as diatribes de Ventura e, de facto, é assim que poderão convergir os processos de reidentificação da direita: uma milícia de redes sociais a criar a onda, uma extrema-direita a bater à porta para uma coligação e a transformação do PSD à sua imagem e semelhança.
Suzana Garcia será provavelmente derrotada na sua excursão à Amadora, mas a suzanificação veio para ficar e Rui Rio, no temor de Passos Coelho, fará o mesmo que esperaria que o seu adversário interno fizesse. Estarão por isso de acordo, há uma direita que não vê outro caminho, como têm vindo a anunciar alguns dos seus ideólogos, desde a malta do Observador até outros mais distintos, entre a resignação e o entusiasmo. É já disso testemunho a homenagem comovida a um genocida da guerra colonial ou a alegria esfuziante com que se associaram à campanha do “fundo de verdade” sobre “os comunistas comerem crianças”, como o à vontade com que um dos seus arautos se permite acusar quem cometa o pecado de dele discordar de padecer de “síndrome de loucura”. Esta trumpização do espaço público e a a suzanificação do PSD são agora as vozes da direita em Portugal.
Não só em Portugal, a bem dizer. A eleição autárquica mais decisiva em Espanha é a de Madrid, cuja comunidade tem sido dominada pelo Partido Popular, malgrado os casos sucessivos de corrupção de alto a baixo que o têm atingido. Ayuso, a sua recandidata, campeã da resistência negacionista contra as medidas sanitárias antipandémicas, disputa a liderança do seu partido radicalizando a herança da direita espanhola, que é a referência à guerra civil. Vai uns passos à frente da direita portuguesa que, coitada, se queixa do fracasso das suas próprias “boas maneiras e falinhas mansas”, mas o caminho é o mesmo. É certo que há quem garanta que a extrema-direita se civiliza se for domesticada nos governos, lembrando que, na Áustria, a extrema-direita (FPÖ) coligou-se entre 1999 e 2005 com o ÖVP, o Partido Popular Austríaco, e repetiu a aliança recentemente, tendo colapsado eleitoralmente em setembro de 2019, ou que a Alleanza Nazionale, a herdeira do Movimento Sociale Italiano, neofascista, se dissolveu em 2009 na coligação Il Popolo della Libertà, com Silvio Berlusconi, ou que bastou o Chega entrar num aliança de governo nos Açores para que se dividisse entre os dois deputados.
No entanto, engana-se quem pensar que isto são nuvens passageiras. O que se passa em Espanha prova o contrário e o PP, a direita clássica, é agora a contraparte do Vox, a extrema-direita emergente. Pois, o problema é mesmo este: a extrema-direita é uma lantejoula na radicalização da direita, é a suzanificação que tem um alcance maior, é um sinal de transformação intestina da direita no seu todo. Como Silvano elegantemente discorreu, os “princípios” não são postos em causa, passaram é a ser isto mesmo.
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