Carta de Louis Althusser a Luiz Francisco Rebello, publicada em CARTAS SOBRE A REVOLUÇÃO PORTUGUESA (*) - um longo texto de 1975, a merecer alguma reflexão por quem tenha disponibilidade para o ler...
Caro amigo:
.
(…)
Recordo-me da conversa que tivemos em Sagres, por altura da Páscoa, e
não foi sem emoção que li agora as suas declarações, tão profundamente
de acordo com o homem que então me falava me pareceram elas. Ouvi-o
discorrer sobre a situação social e política do seu país e fiquei
impressionado pela sua liberdade, pela sua franqueza e a inteligência
das suas análises políticas. Você era socialista e eu comunista: nada de
essencial nos separava. Lembro-me das suas reflexões: “a situação
portuguesa é deveras original”, dizia-me, “e não há possibilidade de a
comparar a qualquer outra; desencadeou-se um verdadeiro processo
revolucionário; há lugar para esperança se todas as forças da esquerda
se unirem com o MFA; mas é preciso estarmos vigilantes porque ainda não
se atingiu o ponto de irreversibilidade do fascismo”.
Depois
de nos termos separado, os acontecimentos precipitaram-se e as suas
opiniões nunca deixaram de estar presentes no meu espírito.
Sou
apenas um intelectual, precariamente informado quanto aos pormenores da
vossa actual situação. Para mais, teria escrúpulos em “intervir” na
política do vosso país. Contudo ao observar, aqui de França, a forma
como todas as forças reaccionárias da Europa, da extrema-direita à
social-democracia, desencadeiam contra a revolução portuguesa a mais
gigantesca campanha de pressão, chantagem e calúnia a que se assistiu
desde a guerra de Espanha, considero que um comunista pode, mesmo não
sendo português, dar a conhecer a sua opinião.
É
óbvio que o imperialismo mundial (americano e europeu) foi literalmente
apanhado de surpresa pelo 25 de Abril e pela queda do fascismo.
Pensa-se
com excessiva complacência, em determinadas camadas da burguesia e
entre certos intelectuais, que o fascismo (em Espanha, em Portugal, na
Grécia) se havia tornado, do ponto de vista do imperialismo, dos seus
monopólios e Estados, um processo “arcaico”, “caduco”, “incómodo” e
“dispendioso” que deixara de corresponder aos interesses de um
“neo-capitalismo” activo e esclarecido. Por detrás deste juízo depara-se
facilmente a ideia de que existiria em si, quer dizer, em todas as
circunstâncias, uma forma “normal” do capitalismo “moderno” (isto é, do
capitalismo monopolista ou imperialismo): a forma da democracia
parlamentar burguesa, garantindo um certo número de liberdades
individuais e políticas.
Ora, eu penso que este juízo e esta ideia não correspondem à realidade. O fascismo não é de maneira nenhuma, em si, uma forma “anormal” nem “tornada anormal” do domínio burguês. Historicamente,
o fascismo italiano, alemão, japonês, etc., constituiu uma solução
burguesa para as contradições do imperialismo entre as duas guerras,
sobretudo depois da crise dos anos 30, e principalmente o instrumento da
luta de classes imperialista contra a classe operária. Historicamente, o
fascismo desenvolveu de forma prodigiosa a exploração e a acumulação:
serviu os monopólios. Depois da guerra, o fascismo continuou a ser, se
bem que de modo menos visível, uma das formas necessárias do domínio
burguês: em determinadas conjunturas definidas. Certos fascismos
conferem indubitavelmente características particulares à economia do
país que dominam, travando o desenvolvimento de certos sectores,
obrigando os trabalhadores a emigrar, e submetendo a classe operária, os
trabalhadores rurais e os camponeses pobres a uma exploração
desenfreada. Contudo, este fascismo não impede de forma alguma que os
monopólios nacionais e internacionais se desenvolvam e prosperem:
proporciona-lhes mesmo condições excepcionais de segurança e de lucro
por meio da intensa repressão da luta da classe operária e acréscimo
consequente da exploração.
Não
existe portanto, de forma alguma, em todos e em todos os casos, um
movimento “normal” da história, que, com a bênção do imperialismo
mundial, tendesse espontaneamente a resolver a pretensa contradição
entre as exigências do desenvolvimento do “neo-capitalismo” e os
aspectos “caducos” do fascismo. Simplesmente, quando o imperialismo se
encontra gravemente ameaçado pelas consequências da sua própria política
de hegemonia e de bases militares (como na Grécia: a guerra de Chipre,
contradição explosiva no seio da NATO), susceptíveis de varrer, pela
contestação popular, o regime fascista instalado no poder, finge que
entra no jogo e coloca no poder o “democrata” da direita Caramanlis. É
sob a coacção popular que ele renuncia ao fascismo, e não porque o
fascismo fosse uma forma caduca do domínio burguês.
Há
que pesar bem o sentido desta frase: o imperialismo foi literalmente
apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. A revolta dos jovens oficiais do
MFA, que se manifestou sobre o pano de fundo de uma guerra colonial
abominada, e se juntou à longa resistência dos militantes do interior,
não poderia de forma alguma caber na “lógica” da política imperialista.
Porque admiti-lo seria não só por termo ao fascismo, mas ainda pôr termo
ao fascismo em condições muito perigosas para o imperialismo: a união
de repente estabelecida entre o Povo e o MFA continha na verdade em si a
ameaça de um verdadeiro processo revolucionário.
Foi
a ouvir os seus compatriotas e as suas palavras que adquiri a certeza
de que o sector mais consciente do povo português, não só os militantes
da clandestinidade, “erguidos antes do raiar da aurora”, e que
conseguiram sobreviver à tortura, ao exílio e prisão, mas
também o conjunto da classe operária, os trabalhadores rurais do sul e
os melhores de entre os trabalhadores manuais e intelectuais, sabiam por
instinto que estava em curso um verdadeiro processo revolucionário, que
não tinha em vista simples reformas políticas, mas sim uma
transformação irreversível das estruturas sociais.
Depressa
o imperialismo se apercebeu disto e, rapidamente, tomou as medidas
próprias para canalizar, ou melhor, destruir o processo revolucionário.
Julgou encontrar em Spínola o homem ideal. Contudo, o povo e o MFA foram
mais rápidos ainda. Todas as tentativas do imperialismo foram superadas
por uma radicalização do processo em curso.
Não esqueci todavia as suas palavras: “ainda não se atingiu o ponto de irreversibilidade do fascismo”. Por
detrás destas palavras encontrava-se implícito o que acabo de dizer:
que o fascismo não é, como frequentemente se pensa, uma forma caduca do
domínio da burguesia. Mas outra coisa ainda está implícita: o
que se terá de designar como a base de massa do fascismo. Afirma-se
muitas vezes, e com razão, que num país onde se viveram 50 anos de
fascismo, não se pode passar sem transição nem perigo para a prática de
um regime eleitoral-parlamentar. Mas invocam-se com demasiada facilidade
razões tais como: as pessoas não estão ainda “habituadas” a este
regime; nem todas sabem ler; não estão ainda suficientemente
esclarecidas, nem sequer sabem verdadeiramente o que querem. Reduz-se
assim o problema a explicações “psicológicas” ou “culturais” irrisórias:
como se a massa dos portugueses não tivesse dado provas, nas eleições
para a Assembleia Constituinte, de que sabe “servir-se” na perfeição do
boletim de voto, por iniciativa própria ou, se necessário, depois de se
ter aconselhado junto de determinadas pessoas. Esta explicação
“psicológica” ou vagamente “cultural” aparece para dissimular uma
realidade a que nem sempre se ousa dar o verdadeiro nome. Quero
referir-me à base de classe e de massa do fascismo e da sua
sobrevivência.
Nenhum
regime político pode durar (nem sequer o fascismo, e o fascismo
manteve-se 50 anos em Portugal e mantém-se em Espanha há 40 anos) sem
dispor de uma base de massa. Não só na burguesia monopolista e na sua
clientela, não só na burguesia não-monopolista, mas também nas classes
médias, nos camponeses, e até mesmo numa fracção da classe operária. O
fascismo assegura-se da existência e continuidade desta base de massa
por toda uma série de medidas de repressão, de organização (o partido
único, as corporações), de enquadramento político e sujeição ideológica,
desde a família ao Exército, passando pela Escola e bem entendido pela
Igreja; numa palavra, através de todas as pressões e a doutrinação dos
Aparelhos Ideológicos do Estado. É a forma principal da luta
de classe política e ideológica do fascismo. Esta luta de classe
impiedosa, cínica e desavergonhada tem por objectivo esmagar todas as
formas da luta da classe operária e dos seus aliados; tem igualmente
como finalidade (e aqui estamos perante o cinismo da burguesia elevado
ao máximo) destruir nos espíritos a própria ideia da luta de classes. E
para justificar os seus processos, é-lhe necessário recorrer a Deus, e
sobretudo ao Diabo: o Diabo são os comunistas, a quem se acusa de todos
os crimes do mundo, esses “ateus” que tanto são capazes de arrancar os
filhos às próprias mães como os bens aos camponeses pobres e as
“liberdades” aos homens. A massa destes infelizes explorados é enganada,
mas eles são condicionados e enquadrados, e o resultado está à vista.
O
facto de ter bastado uma palavra do bispo de Braga para que, juntamente
com alguns homens de confiança do fascismo, dispersos na multidão, se
assaltassem, saqueassem e queimassem as sedes do PCP, MDP e
Intersindical no Norte, e se tivesse desencadeado uma verdadeira “caça
ao homem”, prova, alguns meses depois das eleições, que uma parte da
base de massa do fascismo subsiste em Portugal, pronta, se lhe for dada
oportunidade por um provocador bem colocado ou não, a voltar ao serviço e
mesmo ao serviço activo. Fala-se sempre dos camponeses do Norte do
país: seria importante verificar mais de perto qual era a base de massa
do fascismo, em que camadas sociais ela se recrutava e quais os
mecanismos da sua submissão. É certo que esta base de massa foi reduzida
pelo processo revolucionário e numerosos explorados puderam ser
elucidados pelo desenrolar dos acontecimentos; mas seria perigoso
acreditar que essa base tenha desaparecido sem deixar rasto e que se
tenha milagrosamente transformado em simples eleitores do PPD ou mesmo
do PS. O sector popular em relação ao qual se afirma com insistência não
estar suficientemente “amadurecido” para saber o que pretende, parece
ter compreendido razoavelmente onde residia, se não o seu interesse,
pelo menos o interesse dos seus dirigentes ou conselheiros, quando
votou.
Escrevo
tudo isto para lhe dizer como julgo ver, de França, a situação. No
mundo imperialista, e na própria Europa, ergue-se contra o processo
revolucionário desencadeado em Portugal uma espantosa coligação em que
se põem em jogo todos os meios: a chantagem económica da CEE
(“emprestam-vos dinheiro, mas sob a condição absoluta de abandono do
processo revolucionário”); a chantagem política (“abandonem a política
actual em nome dos princípios da democracia e da maioria eleitoral”); e a
chantagem ideológica do anticomunismo generalizado (“os comunistas são
culpados de tudo, mesmo quando lhes incendeiam as sedes e perseguem os
seus militantes”). E, como complemento a esta gigantesca campanha
internacional, desencadeia-se em Portugal uma violenta luta de classe
anticomunista, na qual participa, correspondendo ao apelo de pessoas
perfeitamente responsáveis, o que resta da antiga base de massa do
fascismo. A impressionante conjugação destas duas ofensivas, que não
podemos separar, é significativa e perigosa. O objectivo que se pretende
atingir é óbvio: á a própria existência do processo revolucionário.
Neste ponto, o imperialismo e os seus aliados interiores não se mostram
dispostos a ceder. Se assim é, todos os portugueses que pretendem
defender o processo revolucionário ameaçado têm como dever prioritário
não se deixar enganar quanto ao seu verdadeiro inimigo e ver que o
inimigo é representado por todo este conjunto de forças reaccionárias do
exterior e do interior, conduzidas pelo imperialismo e seus aliados,
sabendo ao mesmo tempo tratar os elementos populares ainda iludidos de
forma diferente dos que lhes exploram as reacções. É contra este inimigo
mortal que a aliança de todas as forças populares e revolucionárias se
deve processar o mais amplamente possível: a todo o preço. (…)
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Gordes, 17 de Agosto de 1975
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(*) Seara Nova, 1976
No
prefácio ao livro, L.F. Rebello escreve, acerca destas cartas, que “são
parte da correspondência trocada com o grande filósofo e pensador
marxista Louis Althusser”, e refere: “ Acontece que Althusser visitara
Portugal, na Páscoa de 75, e percorrera então os centros alentejanos
onde a reforma agrária era uma vitoriosa realidade em marcha; e quis o
acaso que nos encontrássemos numa pousada do sul do país, onde durante
várias horas discutimos o problema político português. Certamente,
recordando das palavras que escrevera num dos ensaios de Pour Marx (“o
humanismo socialista é um tema suficientemente atraente para tornar
possível um diálogo entre comunistas e socialistas, ou mesmo uma permuta
ainda mais larga com todos os homens de boa vontade que recusam a
guerra e a miséria”), o diálogo que entre nós se travou pela noite
adiante confluiu sem dificuldade para um acordo sobre as questões
essenciais.
Este texto foi reproduzido e comentado em vários jornais e revistas, nesse Verão.
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[ Carta Publicada por Helena Pato no blogue Caminhos da Memória, em 2010].
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