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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Pedaços de uma entrevista ao editor de Saramago e oito laureados com o Prémio Camões


Zeferino Coelho: “Um comunista também se emociona”

Quase a completar 50 anos de carreira, Zeferino Coelho é um editor tranquilo. Duas décadas depois de ter partilhado com Saramago a emoção do Nobel, conta histórias de cumplicidades com escritores, revela algumas mágoas e afirma que não escreverá memórias. Por preguiça.

Miguel Manso

Não há um computador à vista no gabinete. Só papéis, muitos papéis, livros, uma voz calma e cava que conta histórias com muitos escritores. “Um editor é uma pessoa que está sentada numa cadeira a ler uns papéis”, diz Zeferino Coelho, e se é assim ali está um. Editor quase há 50 anos. Começou em 1969 e o seu nome está ligado a uma marca, a Caminho, que ajudou a criar e onde ainda está, agora sob o chapéu de um grande grupo. Seria assim ou teria fechado, admite numa conversa sobre a sua intimidade com os autores, a fuga da nuvem salazarista da terra onde nasceu e cresceu, o único a ter estudos na família. A alegria e a tristeza  relacionadas com o nome Saramago, o Partido Comunista, o acaso de se ter especializado em autores de língua portuguesa, a admiração por Graciliano Ramos, as colecções e uma viagem de sonho para já: ir a S. Petersburgo. Será este mês de Agosto, ver o lugar onde se celebrou e se chorou por uma revolução. Saber mais acerca dos derrotados, porque dos vitoriosos já muito se escreveu. As histórias com Zeferino Coelho, o editor do único Nobel em língua portuguesa e de oito prémios Camões. Se lhe dessem a escolher um autor estrangeiro para publicar, ele diria um nome: W. G. Sebald.

O que mudou nestes 50 anos? 

No fundo mudou tudo e não mudou nada. Já não se fabricam livros como se fabricavam, mas a essência das coisas continua a mesma. Mudou o processo. Os livros continuam a ser, do ponto de vista de cada um dos autores, a coisa mais importante para a vida deles. Do ponto de vista do editor, é mais um; o editor faz vários por ano.

Mas o editor faz uma escolha.

Sim, e depois dessa escolha é mais um. Não é "o" meu livro; é mais um livro do meu programa.

Como gere essa relação com o autor?

Com muita circunspecção, muita paciência e muito respeito pelo autor, seja ele quem for. Os autores, de um modo geral, põem-se inteiros no que escrevem; aquilo é essencial para eles e pode determinar o que vai ser a sua vida. Isso é importante e é preciso ter paciência. 

É conhecido por ter relações próximas com os seus autores. 

A relação do autor com o seu livro é uma relação muito particular, muito íntima, e nós, editores, entramos nela. Sei que estou a trabalhar com uma coisa a que aquele senhor ou aquela senhora dão imensa importância. Quando publico um autor falo muito com ele porque isso me dá imenso gozo. E nesse sentido, o livro é de alguma maneira também meu. Entusiasmo-me com ele, defendo-o. Sou editor, faço um trabalho prático, mas estou entusiasmado com aquilo e isso dá uma proximidade grande com o autor e abre porta para uma reacção mais íntima e menos distante.

Tornam-se amigos?

Sim. Cria-se uma relação de amizade que se constrói em cima da partilha desse universo íntimo: o livro que ele escreveu e que eu estou a publicar. São coisas de grande cumplicidade. Uma vez... Aconteceu com a Sophia, eu estava a fazer mais um livro dela, um dos últimos que ela escreveu. O livro já estava na tipografia, tudo pronto, e ela telefonou-me... "ai Zeferino, aquele poema das ondas; aquilo não está bem. Já está impresso?” Eu disse que não, que ia imprimir naquele dia. "Ai, mas não está bem." Mandei parar a impressão e fui lá a casa falar com ela. Cheguei depois de almoço e eram sete horas da tarde e ela ainda não tinha falado no poema, até que: "E o poema?" Ela continuava a dizer que não estava bem. Fui lá no dia seguinte e só à terceira vez ela fez o acerto que queria. Do meu ponto de vista, isto é uma chatice; o livro estava a imprimir e eu não via onde estava o problema. Para quem está de fora é difícil, mas acho que é preciso respeitar isso. Talvez seja preciso perder três ou quatro dias para que o autor se sinta bem e não sinta que foi empurrado; que as suas dúvidas, as suas interrogações não foram desprezadas por um tipo que está ali preocupado com coisas práticas. Estou a dar o exemplo da Sophia porque era uma pessoa que não tinha sentido prático, como sabem todos os que a conheceram. É um exemplo quase que pelo absurdo, mas como ela própria dizia, e escreveu, a poesia é uma forma de vida, não é uma habilidade que se tem. 

Essa falta de sentido prático é comum a muitos autores?

O que é mais comum nos autores é eles porem nos livros esperanças excessivas; terem uma ansiedade excessiva em relação ao que fazem. Mas as pessoas são como são. Não tome isto como uma crítica ou alguma espécie de desconforto meu. Não se lhes exige que sejam simpáticas ou prestáveis. O que se lhes exige é que escrevam bons livros.

O que é um bom livro?

Ahah... Não sei. Vou-lhe dar a minha perspectiva muito pessoal. Um bom livro é um livro a que a gente adere. Tem-se a sensação de que se está perante um bom livro, não se sabe bem porquê.

É uma definição muito impressiva.

Sim. A gente entra no livro e adere. Quando o Saramago me trouxe o primeiro livro, aliás foi o segundo, porque o primeiro foi uma peça de teatro, e eu pus-me a ler aquilo e pensei: isto é uma coisa a sério; isto é um bom livro. Entrei imediatamente no livro. Às vezes pode ser um bom livro e a gente não entra. Um bom livro é uma coisa que nos conquista, não sei bem porquê, mas há coisas que têm esse condão. 

Trabalha quase em exclusivo com originais de língua portuguesa, e por isso não tem o que pode funcionar como barómetro para muitos editores, ter alguma referência do comportamento desse livro no mercado exterior. É um trabalho solitário?

É, porque são coisas que não têm história, não vêm já com um dossier de imprensa. 

Os jornais fazem vender livros?

Ajudam. Já ajudaram mais porque já dedicaram mais atenção aos livros e já se venderam mais jornais, mas continua a ser importante. No entanto, acho que a boa literatura acaba por se impor. 

modesta; o meu pai era camponês e eu vivia com o meu avô porque era o neto mais velho; fiz a quarta classe numa escola pública, estive até ao quinto ano num colégio que havia lá, e depois para Guimarães até que fui para o Porto, para a Faculdade de Letras.

Nada comum numa família dessas.

Muito raro, não havia dinheiro para isso. Mas foi no Porto que me livrei desse mundo.

E o que o atraiu no outro?

A ousadia. A Faculdade de Letras do Porto começou no ano em que entrei, 62-63, na ressaca da crise de 62. Havia duas turmas, para aí com 40 estudantes cada uma; um curso de História e outro de Filosofia. Fui para Filosofia e encontrei uma série de pessoas que já tinham actividade política antifascista. Para mim foi uma revelação. Andávamos muito pelos cafés, à tarde havia o grupo do café Piolho e à noite era o café Ceuta. A televisão tinha começado mas nem se via. Uma vez estava-se a discutir política em altos berros. Era sobre a Indonésia, e havia dois generais, o Sukarno e o Suharto, um deles tinha sido morto pelo outro, e um desses meus colegas às tantas exalta-se - e desculpe o palavrão, mas estávamos no Porto - e diz bem alto; "esse Suharto, esse filho da puta!". Achei aquela malta do caraças. Esta é a minha malta, pensei. 

A sua educação política fez-se nos cafés?

Sim, ali uns com os outros.

Quem é que costumava estar nesses sítios?

Gente já bastante politizada. Estava um tipo mais velho chamado Mário Alves, casado e com filhos, já tinha estado preso; estava o Zé Bento, tinha estado em Coimbra e sido expulso por ter estado preso e era casado com a Marcela Torres, filha do Flauzino Torres do PCP; um outro chamado Teixeira Lopes, pai deste Teixeira Lopes do Bloco de Esquerda; a certa altura apareceu o César Oliveira, expulso de Coimbra, muito truculento. Era esta gente. Caí aqui por mero acaso. Os livros circulavam e passei a fazer parte do circuito.

O que é que se lia?

Acompanhava-se bastante a literatura portuguesa que se fazia. Na altura, praticamente todos os jornais tinham um caderno literário. Lia-se o Diário de Lisboa e o [Diário] Popular, o Primeiro de Janeiro. Lia-se Namora, Redol, Vergílio Ferreira; lia-se os brasileiros, Jorge Amado e Graciliano [Ramos]; esse grupo dividia-se entre os fãs de Jorge Amado e os do Graciliano. Eu fazia parte dos fãs do Graciliano.

Porquê?

Achava o Jorge Amado um romântico, e o Graciliano olhava a vida com certa displicência, era mais contido, um sentido crítico muito mais agudo. O Jorge Amado deixa-se entusiasmar muito, vai um bocado atrás das ideias. Um dia disseram ao Graciliano para fugir porque ia ser preso, e ele disse que não ia deixar as suas coisas, ia para o estrangeiro fazer o quê, e não fugiu. Quando a polícia foi lá a casa para o levar ele tinha a mala feita. Eu, com 19, 20 anos, achava isto o máximo. Líamos também muitos franceses, como o Louis Aragon, o Henri Lefebvre, os marxistas.

E vai parar à edição pelo interesse que tem pela literatura.

Sim, em 1969 houve umas eleições, daquelas que o regime fazia, eu fui candidato. Eu era o candidato jovem. Quando a oposição democrática precisava de demonstrar que a juventude estava com a oposição chamavam-me. Aderi ao PCP, não sei se em 64 se em 65, e desenvolvi a actividade política no quadro do PCP. Nessas eleições criou-se a comissão possível para convocar as eleições porque não havia partidos; foi quando houve a ruptura com os socialistas. Isso deu-me uma notoriedade grande. A minha fotografia apareceu nos jornais, numa ou outra notícia de um comício. Também acabei o curso [de Filosofia] nesse ano e o meu destino era ser professor do liceu. Mas havia uma espécie de estado civil suplementar nessa altura, para rapazes, que era "O que é que estás a fazer?", e a resposta inevitável era; "estou à espera de ser chamado". Ainda passei dois anos ali antes de ser chamado, e o Cruz Santos, homem de esquerda, criou a Inova, e como me tornei conhecido por essa via política, perguntou-me se eu queria fazer um part-time na editora. Comecei a assim. Trabalhava à tarde.

Foi uma escolha sua trabalhar com autores de língua portuguesa?

Acho que acabou por acontecer, como muitas coisas na minha vida. Uma vez recebemos um livro do Mia Couto, editado em Moçambique, o primeiro livro de prosa dele. Naquela altura Moçambique era o país mais pobre do mundo, a guerra civil mesmo perto de Maputo. Achei que aquilo merecia uma edição melhor e publicámos. Decidimos prestar atenção ao que se estava a passar lá. Chegámos ao Craveirinha, por exemplo e as coisas estenderam-se a Angola. Quando o Mia Couto começou a ter grande popularidade começou a aparecer muita gente. 

Já está a falar da Caminho, a editora onde esteve desde o início, ligada ao PCP... 

Sim. Em 1972 mudei de vida. Fui funcionário do PCP em 72 e mantive-me até ao fim de 76. Mas a uma dada altura fui fazer a tropa. Tinha sido chamado no início de 71 e fiquei numa situação de refractário. Depois do 25 de Abril as autoridades militares decidiram que essas pessoas como eu não podiam ficar assim, porque tinham violado a lei. Foram reinspeccionados e se fossem dados como aptos iriam para a tropa. Eu fui, em Setembro de 75, para os serviços psicotécnicos porque até aos anos 60 o único sítio onde se estudava psicologia era nas faculdades de letras e os licenciados em filosofia, como tinham alguma formação, eram chamados para os serviços psicotécnicos. Era na Avenida de Berna, onde é a Universidade Nova. Nessa altura, em 75, deu-se o 25 de Novembro, o PCP foi varrido dos jornais e decidiu criar um jornal chamado O Diário e criou uma empresa, chamada Editorial Caminho, para publicar o jornal. No início de 76 o jornal começou a sair; eu estava ali na tropa e já andavam a trabalhar na Caminho pessoas que eu conhecia do Porto e que tinham estado sempre ligados aos livros. Eles andavam a pensar que a Editorial Caminho também podia editar livros. Desafiaram-me a ir para lá porque eu tinha experiência de trabalho editorial. No princípio de 77 entrei para a Caminho e começaram a sair livros. 

E durante anos tinha uma identidade colada à sua: era um editor comunista.

Não nego. Mas a ideia era criar uma editora independente que não deixasse condicionar a qualidade das suas publicações por questões partidárias. Não vamos deixar de publicar o escritor A porque ele não é comunista e não vamos publicar o autor A porque ele é comunista.

 
  


Tem contado que uma das grandes alegrias da sua vida editorial foi quando Saramago ganhou o Nobel. Como olha esse momento a esta distância? 

Como recordou há bocado, sou editor há quase 50 anos, esta é a minha profissão, e o facto de um autor meu ter ganhado o Prémio Nobel é uma coisa efectivamente relevante. O Saramago começou por ser muito importante aqui, internamente, e eu acompanho esse processo desde o início, desde que o Saramago passou a ser o Saramago que a gente conhece. Trabalhámos sempre muito intimamente, de uma maneira muito próxima, muito conversada. Depois ele começou a expandir-se para o exterior, sobretudo a partir de Itália, quando a Feltrinelli publicou o Memorial do Convento. Nessa altura, o Eduardo Prado Coelho disse uma coisa interessante: com este livro Saramago alargou a sua base social de apoio. É verdade. O Levantado do Chão interessou por razões estilísticas, mas ainda era um livro sobre a Reforma Agrária. O Memorial do Convento não. Do ponto de vista político parece mais inócuo e mais aceitável para pessoas que não estão naquela área; e o público do Saramago alarga-se, o nome foi crescendo nos anos seguintes com outros livros e começou-se a falar do Nobel. Ele era relevante no plano interno e no plano internacional. Quando o Nobel se concretiza é o culminar de uma expectativa. Foi em 1998, o país estava numa fase de euforia, e cheguei a ouvir dizer que a literatura portuguesa era a mais importante da Europa. Finalmente havia um escritor português e de língua portuguesa com o Nobel. Ninguém disse, mas muita gente por aqui pensou: “felizmente que não foi um brasileiro”. 


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