Votos a sério, e não sondagens
«As eleições nas ilhas mostram que, ao contrário dos últimos anos, há
muito mais gente a votar. Mais do que nas regionais de 2019 e 2020, mas
mais ainda do que nas legislativas de 2022. Motivo de sobra para tomar
estas eleições como indício fiável das tendências políticas.»
Num
país em que votam 40 a 60% dos eleitores, e onde as empresas de
sondagens veem dois terços dos inquiridos a não lhes responder, vale a
pena ver com atenção como votou meio milhão de pessoas nos Açores e, em
setembro passado, na Madeira. Muito mais fiável que sondagens.
As eleições nas ilhas mostram que, ao contrário dos últimos anos, há
muito mais gente a votar. Mais do que nas regionais de 2019 e 2020, mas
mais ainda do que nas legislativas de 2022. Motivo de sobra para tomar
estas eleições como indício fiável das tendências políticas. E confirmam
o que já sabíamos: que o PS está irremediavelmente em queda. Muito
pronunciada na Madeira: em setembro perdeu 40% dos votos das regionais
de 2019 e um terço dos votos que obteve para a Assembleia da República
(AR) em 2022. Nos Açores, o PS perde menos, compensado em parte pela
descida do BE. Por outro lado, a AD não descola do que já tinha: já
estava em perda (-2%) na Madeira, está estancada nos Açores (+0,1%),
onde, é verdade, reúne muito mais apoio do que nas legislativas. A IL
estancou também, com resultados sempre muito abaixo dos que obtém nas
mesmas regiões para a AR.
Isto é também o que tradicionalmente acontece com o BE, que, ao
contrário dos demais partidos, teve resultados muito diferentes num
arquipélago e no outro: subida na Madeira em setembro, descida muito
pronunciada nos Açores. É já comum que o BE obtenha maus resultados
quando o PS pretende recuperar o poder à direita, como agora acontecia. À
CDU acontece, normalmente, o mesmo, mas desta vez as coisas correram
melhor: contrariou tudo o que as sondagens para a AR têm previsto,
subindo significativamente na Madeira e conservando o que tinha nos
Açores, em ambos os casos acima dos maus resultados das legislativas de
2022. A campanha eleitoral vai ser decisiva para recuperar muitos dos
votos que se perderam para a maioria absoluta do PS – e que, afinal,
serviram só para facilitar o caminho ao Chega.
Os resultados da extrema-direita confirmam que (ainda) está em fase
ascendente, mas nada a ver com o que as sondagens indicam. Recordemos
que há dias o estudo do Iscte/ICS dizia que o Chega poderia triplicar a
sua votação (de 7% para 21%) para a AR, quando os resultados finais,
reais, das eleições regionais dão-no a ficar muito abaixo disso: com
menos abstenção agora que em 2022, o Chega sobe de 6,1% para 8,9% na
Madeira e de 5,9% para 9,2% nos Açores. Ventura fez ambas as campanhas, o
escândalo Albuquerque já se tinha dado quando os açorianos votaram. Não
há bola de neve alguma. O Chega só conta porque sem ele não há maioria
de direita. Mais nada.
Apoiado na cultura política do ressentimento e do ódio que povoa as
redes sociais, levado ao colo por muitos dos media que fazem capas
sucessivas com os seus dirigentes e que sobrerrepresentam Ventura como
se ele já tivesse os resultados que só as sondagens lhe dão, o Chega tem
sido muito beneficiado por um mal-estar difuso, especialmente nas
classes médias baixas e em setores profissionais da administração e dos
serviços públicos que pagam hoje o preço que há muito pagam já os
trabalhadores precários e/ou do salário mínimo, esmagados por salários
baixos, por privatizações que tudo encarecem e pela omissão do Estado em
limitar preços e rendas que a maioria não consegue suportar. Todos os
estudos dizem que não são os trabalhadores pobres que votam Chega;
exatamente como aconteceu nos anos do fascismo clássico (1922-45), é
nestes setores das classes médias e médias altas que há muita gente
disponível para votar neles. A aposta de Ventura é evitar discutir
políticas sociais que corrijam a desigualdade e puxar o debate para o
medo da perda de estatuto, ou para a demonização dos mesmos
trabalhadores imigrantes que asseguram uma grande parte do bem-estar da
classe média.
Como se percebe desde 2019, os governos PS-contas-ditas-certas foram
verdadeiras fábricas de extremistas de direita. Não são os únicos:
Macron é melhor ainda do que eles. Para travar a extrema-direita, qual
PS nem meio PS. Como aconteceu sempre que o fascismo avançou, só uma
frente social construída em torno dos direitos do trabalho, da luta por
todas as formas de igualdade e contra o racismo. É um dever democrático
nos 50 anos do 25 de Abril.
Fonte: Jornal “Público”, 7.02.2024
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