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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

A importância teórica de O imperialismo de Lenine

– O centésimo aniversário da morte de Lenine, completado a 21 de Janeiro deste ano, foi ocasião para recordar a importância teórica e política do tema Imperialismo. Tanto mais quanto o estado de guerra permanente em que o mundo está envolvido se agrava a olhos vistos – na Ucrânia, na Palestina, no Oriente Próximo ou no Extremo Oriente. Esta análise de O imperialismo, obra publicada em 1916, tem um duplo mérito:  recorda de forma concisa o inovador contributo de Lenine e, do mesmo passo, alerta para as mudanças entretanto ocorridas no mundo – exorta-nos a desbravar terrenos que são cruciais para a afirmação do socialismo no nosso tempo.

Prabhat Patnaik [*]

Lenine, cartoon, autor desconhecido.

A importância de O imperialismo [NT] de Lenine está no facto de ter revolucionado a percepção da revolução. Marx e Engels já haviam admitido a possibilidade de países coloniais e dependentes terem revoluções próprias antes mesmo da revolução proletária nas metrópoles, mas esses dois conjuntos de revoluções eram vistos como desarticulados; e tanto a trajetória da revolução na periferia como a sua relação com a revolução socialista nas metrópoles permaneceram obscuras.

O imperialismo de Lenine não apenas ligou os dois conjuntos de revoluções, mas também considerou a revolução nos países periféricos como parte do processo de transição da humanidade para o socialismo.

Ele via, portanto, o processo revolucionário como um todo integrado. Visualizou um único processo revolucionário mundial que, a partir de uma ruptura no elo mais fraco da cadeia, não importando onde esse elo estivesse localizado, derrubaria todo o sistema.

E afirmava também que chegara o tempo de tal revolução mundial, pois o capitalismo atingira um estágio em que enredara a humanidade em guerras catastróficas:   tinha “coberto” o mundo inteiro sem deixar “espaços vazios”, dividindo-o completamente em esferas de influência de diferentes potências metropolitanas, de modo que só poderia agora ocorrer uma nova repartição; e essa redivisão só poderia ocorrer por meio de guerras interimperialistas, das quais a Primeira Guerra Mundial foi um clássico.

A posição teórica que informa O imperialismo ampliou o marxismo em pelo menos cinco direcções principais.

Primeiro, trouxe as “regiões periféricas” do mundo, países que Hegel havia descartado como não tendo história, para o âmbito da revolução mundial. De facto, com o passar do tempo e com o desaparecimento das esperanças de uma revolução na Europa após a Revolução Bolchevique, esses países passaram para o centro da revolução mundial.

Num dos seus últimos escritos, Lenine não apenas depositou as suas esperanças numa revolução na China e na Índia para suceder à Revolução Russa, mas sublinhou mesmo o facto de a Rússia, a China e a Índia em conjunto representarem quase metade da humanidade, de modo que as revoluções nesses três países mudariam decisivamente a balança em favor do socialismo. Não por acaso, a Internacional Comunista que ele ajudou a criar era diferente de tudo o que o mundo já tinha visto até então, onde delegados da Índia, China, México e Indochina ombreavam com os da França, Alemanha e Estados Unidos.

Em segundo lugar, e paralelamente, ampliou o escopo do marxismo de uma teoria da revolução proletária nos países capitalistas avançados para uma teoria da revolução mundial. É claro que reconhecer o alcance muito mais amplo do marxismo – uma reflexão acerca da dominação mundial do capital que O imperialismo enfatizou – ainda exigia que a tarefa específica de analisar a história das sociedades não europeias com base na teoria marxista tivesse que ser realizada.

Mas a extensão e o florescimento do marxismo no terceiro mundo forneceram a base para tais análises, estimuladas pelo Comintern mesmo quando as leituras políticas específicas deste último se mostravam erradas. O imperialismo deu, assim, ao marxismo uma vitalidade sem precedentes.

Na verdade, Lenine não foi o primeiro a falar de imperialismo. Antes dele, Rosa Luxemburgo havia feito uma análise extremamente aguda e perspicaz explicando por que razão o capitalismo precisava de usurpar os mercados pré-capitalistas. Mas a análise de Luxemburgo sofreu com o facto de considerar que tal usurpação resultaria numa assimilação do segmento pré-capitalista pelo capitalismo. O segmento pré-capitalista não permaneceria como uma entidade devastada:   passaria a fazer parte do segmento capitalista.

O foco da análise de Luxemburgo continuou, portanto, a ser a revolução proletária europeia. Apesar de observações dispersas em contrário, não via um mundo permanentemente segmentado a ser criado pelo capitalismo metropolitano. O imperialismo de Lenine, no entanto, visualizou um mundo permanentemente segmentado e é aí que reside a sua força.

Em terceiro lugar, a teoria de Lenine proporcionou uma interpretação radicalmente nova do conceito de “obsolescência histórica” do capitalismo. Até então, com base nas breves observações de Marx no prefácio de Contribuição para a Crítica da Economia Política, o entendimento era que um modo de produção se tornava historicamente obsoleto e, portanto, maduro para ser derrubado, apenas quando o espaço para qualquer desenvolvimento adicional das forças produtivas dentro dele se esgotasse; e tal esgotamento deveria manifestar-se tipicamente na forma de uma crise.

A ausência de qualquer crise desse tipo, de facto, levou à exigência de Bernstein de “rever” o marxismo, colocando como desiderato do proletariado não o derrube, mas uma reforma do sistema capitalista. Aqueles que aderiram à tradição revolucionária, contra Bernstein, procuraram provar que uma tal crise terminal, que talvez ainda não tivesse surgido, era, no entanto, inevitável.

A teoria do imperialismo de Lenine abriu aqui caminhos completamente novos. A manifestação da obsolescência histórica do capitalismo, a sua maturidade para ser derrubado, não estava em qualquer crise económica, mas no facto de ter entrado numa fase em que envolveu a humanidade em guerras devastadoras, guerras em que os trabalhadores de um país foram obrigados a lutar contra os trabalhadores de outro país, de trincheira para trincheira. Quando isto se verificou, chegou o momento de converter a guerra imperialista em guerras civis, de desviar as armas dos camaradas de trabalho e apontá-las aos capitalistas de cada país.

Quarto, o socialismo seria agora o objectivo de todas as revoluções, independentemente do local onde ocorressem. A ideia de a revolução democrática não ser levada avante pela burguesia (que historicamente desempenhou o papel de seu arauto) nos países que chegaram tarde ao capitalismo tinha já aparecido na obra de Lenine Duas táticas da socialdemocracia. Em tais sociedades, a tarefa de levar adiante a revolução democrática cabia ao proletariado, que entraria em aliança com o campesinato e, tendo liderado a revolução democrática, não pararia por aí, mas continuaria no sentido de construir o socialismo.

Mas agora esta perspectiva de uma revolução numa sociedade periférica – inicialmente contra o imperialismo e baseada numa ampla aliança de classe de operários e camponeses no seu núcleo, e depois passando para a fase socialista – tornou-se generalizada. Em suma, a tarefa de construir o socialismo já não era uma preocupação apenas dos trabalhadores dos países avançados:   era uma tarefa a ser alcançada através de etapas que tinha entrado na agenda de todas as sociedades.

Finalmente, surgiu uma questão fundamental: porque é que houve um tal crescimento do “reformismo” no movimento da classe operária europeia a ponto de tantos líderes da Segunda Internacional adoptarem posições oportunistas ou completamente social-chauvinistas durante a guerra? Lenine forneceu uma resposta a esta questão, com base numa sugestão anterior de Engels, ao desenvolver o conceito de uma “aristocracia operária” que tinha sido “subornada” pelos superlucros imperiais.

O imperialismo foi uma grande conquista teórica. Lenine observou certa vez que a força do marxismo reside em ser verdadeiro. Pode-se fazer uma afirmação semelhante também sobre a teoria do imperialismo de Lenine. Constituindo um notável avanço, forneceu respostas, com extraordinário brilhantismo, a toda uma série de questões que tinham surgido na nova conjuntura e clamavam por respostas. Poder-se-á discordar deste ou daquele detalhe da argumentação de Lenine, mas a sua orientação geral foi quase esmagadoramente correcta. E um indício da sua correcção é a forma quase estranha como antecipou os desenvolvimentos no mundo no período entre 1914 e 1939.

O mundo de hoje, porém, afastou-se daquilo que Lenine tinha escrito em O imperialismo.

Uma característica importante desta diferença é que a centralização do capital avançou muito mais do que no tempo de Lenine, dando origem a um capital financeiro internacional, no lugar dos capitais financeiros nacionais que então dominavam. Consequentemente, as rivalidades inter-imperialistas foram abafadas, uma vez que o capital financeiro internacional não quer que o mundo seja dividido em diferentes esferas de influência. Quer, em vez disso, um mundo não dividido para o seu movimento irrestrito. A questão das guerras causadas pela rivalidade interimperialista já não se coloca.

Isto, porém, não significa o início de uma era de paz. A ofensiva implacável do capital financeiro internacional contra todos os esforços nacionais no terceiro mundo que vão no sentido da independência económica e da auto-suficiência económica (incluindo a alimentação) deu origem a uma onda de conflitos locais, opondo um imperialismo unido a determinados países.

Ao mesmo tempo, a exploração dos trabalhadores do terceiro mundo intensificou-se enormemente, assim como a oligarquia empresarial-financeira dentro dele se integrou com o capital financeiro internacional. O resultado é um crescimento maciço da desigualdade no terceiro mundo, a tal ponto que grandes sectores da população testemunharam um aumento da pobreza absoluta em termos nutricionais.

Ao mesmo tempo, a maior disponibilidade do capital metropolitano para deslocalizar actividades para o sul global enfraqueceu os sindicatos nas metrópoles e levou a um aumento da desigualdade dentro das próprias metrópoles. A hegemonia do capital financeiro internacional, expressa numa ordem neoliberal, implicou, portanto, um agravamento significativo em termos relativos, e mesmo absolutos, nas condições dos trabalhadores do mundo.

Isto deu origem a uma crise de superprodução para a qual não há solução dentro da ordem global neoliberal. E esta crise deu origem a um recrudescimento do fascismo e do neofascismo em todo o mundo, com as oligarquias corporativas-financeiras em vários países a entrarem em alianças com grupos fascistas para manter a sua hegemonia.

A luta pelos direitos democráticos, a luta contra o desemprego e a luta pelas liberdades civis passaram assim para a linha da frente, e esta luta está ligada à luta pelo socialismo. O revolucionamento trazido por Lenine à perspectiva da revolução mundial continua válido, embora o foco imediato da revolução tenha mudado com o tempo.

21/Janeiro/2024

[NT] O título da obra de Lenine em português teve pelo menos duas versões mais divulgadas: “O imperialismo, estádio supremo do capitalismo” e “O imperialismo, fase superior do capitalismo”. Numa tradução literal, o título original russo corresponderia em português a “O imperialismo como estádio mais elevado do capitalismo”.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2024/0121_pd/theoretical-significance-lenin’s-imperialism e a tradução de MV em www.jornalmudardevida.net/2024/02/11/imperialismo-questao-central-do-nosso-tempo/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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