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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte ( novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 16


Rejuvenesço. Os versos de amor dos poetas ganham sentido. Posso dizer que é primavera, embora chova lá fora. Posso dizer que um sol me ilumina, embora seja lua cheia. Há quantos anos não sentia este fervor adolescente, a paixão não conhece a maturidade. Quando ela nos alcança nada se repete, tudo equivale à primeira vez. O Nuno é encantador, no sentido literal da palavra: obriga-me a cantar. Na sua companhia desato a palrar como uma criança. Não me surpreende com presentes caros, oferece-me objectos inúteis regateados na feira da Ladra, que me fazem sorrir e humedecer os olhos. Estes olhos que já choraram tanto. Estes olhos que somente viam negrume e desgosto.

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS -6

O medo da morte é a resposta defensiva do meu corpo, corpo animal, corpo água, a parte dele que é a mente, imagina e converte a emoção do medo num pensamento, obscuro, primitivo, irracional, empenho-me no trabalho, diversifico as actividades, arranco com as mãos nuas as ervas daninhas do meu quintal, arranho a terra, e não paro de pensar que a terra comerá os meus ossos, corpo-terra, a finitude, meu horizonte, as insuportáveis dores que hão-de chegar, num dia, numa noite, que ninguém prevê, o médico ainda não se mostra preocupado, porque é meu amigo? eu sim, a morte dos outros é sempre a morte dos outros, a nossa é infinitamente mais consciente.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Procuram-se responsáveis?

As mais recentes imagens que as televisões transmitem da Ribeira Brava, concelho do Funchal, demonstram com uma clareza que antes não se vira (e não foi por acaso) a localização incrível daquelas povoações. Casas em cima de leito de cheias. Não foram lá parar agora, já lá estavam. Talvez por isso os políticos de lá e de cá sacodem esse assunto com o argumento de que não é o passado que urge discutir mas o presente. Lá têm as suas razões. A mim parece-me que o presente exigiria discutir o passado. Quais foram os responsáveis? É fácil a resposta. Não as populações seguramente. Instaurou-se algum inquérito? Não. É melhor não falar nisso, dizem. Pois claro. Percebe-se porquê. Noutro país, mais civilizado, a tragédia exigia responsáveis. A menos que a culpa seja de quem não a tem: a natureza, essa que tem as costas largas. Faz lembrar aquele filme em que um cidadão cujo barco sofreu um acidente «natural» instaura um processo em tribunal a Deus...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

NOTAS SOBRE OS MATERIALISMOS

Espinosa: Elementos de Ética


Texto de Gilles Deleuze


« III- Desvalorização de todas as «paixões tristes»


(Em proveito da Alegria)


Espinosa O Ateu

Se a Ética e a Moral se contentassem em interpretar os mesmos preceitos, a sua distinção seria somente teórica. Mas isso não acontece. Espinosa, ao longo de toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que explora estas paixões tristes, que delas necessita para estabelecer o seu poder; e, por último, o homem que se entristece com a condição humana e com as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como indignar-se, mas não deixando a própria zombaria de ser um mau riso). Trata-se do escravo, do tirano, e do sacerdote. Jamais, depois de Epicuro e de Lucrécio, se mostrou melhor o vínculo profundo e implícito existente entre os tiranos e os escravos: «O grande segredo do regime monárquico, e o seu interesse profundo, consiste em enganar os homens, disfarçando, sob o nome da religião, o temor a que se quer sujeitá-los; e de tal modo que estes combatem pela sua servidão como se tratasse da sua salvação». É que a paixão triste é um complexo que reúne o infinito dos desejos e a confusão da mente, a concupiscência e a superstição. «Os mais zelosos em abraçar qualquer espécie de superstição são inevitavelmente os que mais imoderadamente desejam os bens exteriores». O tirano necessita da tristeza das almas para triunfar, tal como as almas tristes necessitam de um tirano para se acolherem e propagarem. O que de qualquer modo os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. Em Espinosa há efectivamente uma filosofia da «vida»: ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos separa da vida, todos os valores transcendentes que se orientam contra a vida, unidos às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida está pervertida pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e do perdão. O que perverte a vida é o ódio, inclusivamente o ódio a si mesmo, a culpabilidade. Espinosa segue passo a passo o terrível encadeamento das paixões tristes: em primeiro lugar a própria tristeza, a seguir o ódio, a aversão, o escárnio, o temor, o desespero, o morsus conscientae, a piedade, a indignação, a inveja, a humildade, o arrependimento, a humilhação, a vergonha, o desgosto, a cólera, a vingança, a crueldade…A sua análise vai tão longe que, até na esperança e na segurança, acaba por encontrar esse grãozinho de tristeza que as converte em sentimentos de escravos. A verdadeira cidade deve então propor aos cidadãos o amor da liberdade mais do que a esperança das recompensas ou mesmo a segurança dos bens, uma vez que «é aos escravos e não aos homens livres que se dão recompensas pela sua boa conduta». Espinosa não é, em suma daqueles que pensam que uma paixão triste tem algo de bom. Muito antes de Nietzsche, ele denuncia todas as falsificações da vida, todos os valores em nome dos quais depreciamos a vida: nós, rigorosamente, não vivemos; mantemos apenas uma aparência de vida, apenas pensamos em evitar a morte, e toda a nossa vida é um culto da morte.»


Deleuze, Gilles, ESPINOSA E OS SIGNOS, Rés Editora,

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Os mesmos, ou outros?

No romance de Victor Hugo, "Noventa e três» (1793, auge da Revolução Francesa, e de Robespierre, Danton, Marat), é-nos descrita e demonstrada a colaboração activa da Inglaterra (através de Pitt) na contra-revolução, no apoio aos nobres feudais da Normandia e da Bretanha (guerra civil da Vendeia) - não a todos porque alguns aliaram-se à Revolução -, acirrando estes os camponeses (de resto, quase todos vivendo na miséria e submetidos durante séculos ao jugo feudal) com a ajuda preciosa de muitos clérigos- destes não todos, porque houve bastantes que foram revolucionários e outros tantos que se despadraram. Romance que importava ler ou reler, pois que, por associação de ideias, lembra-nos as milícias populares que perseguiram os exércitos napoleónicos que invadiram por três vezes Portugal. E lembra-nos, salvaguardadas as diferenças, a revolta da Maria da Fonte, mas, sobretudo, a contra-revolução miguelista (a tal «caceteira») que semeou mortes e destruição, e perdeu. Camponeses, padres, Rei, nobreza. É de pensar. E de lembrar o que Marx escreveu sobre os camponeses. E, já agora, a contra-revolução ao 25 de Abril...

OS MEUS LIVROS

SOBRE O FASCISMO

Ferran Gallego é professor de História do Fascismo na Universidade de Barcelona. O seu livro "Os Homens do Führer:A Elite do Nacional-Socialismo 1919-1945" acaba de ser publicado pela Esfera dos Livros. Em entrevista ao Ípsilon, jornal Público, 12 Fev 2010, diz: «o nazismo foi uma derrota patológica da mesma cultura europeia que foi capaz de conceptualizar os direitos humanos.» «continua a ser importante estudar o nazismo, pois ele nasceu da nossa cultura. Há discursos e comportamentos que podem regressar, há pedaços da nossa cultura que fizeram o nazismo e não desapareceram, como as identidades radicais, a obsessão pelo triunfo individual, a indiferença moral. O nazismo foi possível porque se acreditou que o mundo do século XIX tinha sido destruído e se podia fazer o que se quisesse em nome da comunidade e com a força da Vontade.» «O nazismo era único, mas movimentos como o fascismo italiano, o franquismo espanhol, e tantos outros, foram movimentos que se afirmaram como revolucionários, que se sentiram protagonistas num momento de mudança, e que acabaram por ter algumas relações de parentesco mesmo não tendo sido idênticos. Partilhavam uma cultura anti-democrática que queria destruir a herança de 1789, o legado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Há uma passagem nos diários de Goebbels em que ele escreve:«Hoje acabou a História que começou em 1789»

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 15


O Nuno telefonou-me! O amigo da Carla. Gastou com certeza um monte de dinheiro, foi longa a conversa. Encadeava assuntos uns nos outros, tem cá um patuá! Espero que não seja desses casanovas de trazer por casa. Não, não parece. Ou sou eu que fantasio? Estarei já a idealizar? Mau sinal. Sinal de que estou a ficar envolvida. Que importa? Carpe diem. Deixei-o falar, gosto do som e do tom da voz dele, entre o atrevido e o ingénuo. Tão jovem…Que verá em mim? Sinto-me alegre, uma alegria de adolescente. Percebo. A vaidade de ainda atrair um jovem. Bem bonito por sinal. Não me importava nada de lhe acariciar aquela barba negra…Que digo? Nem pareço eu. E censurei eu a minha mãe…

DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS -5

A Marta não tem dito nada, interrompeu subitamente o contacto, estava sendo regular, de repente desapareceu, estará doente? Vou telefonar-lhe, estava a habituar-me a ela, agora mais do nunca precisava da sua companhia, fui fazer as análises de rotina e o médico encontrou qualquer coisa que não estava bem, franziu a testa, procurou tranquilizar-me mas foi avisando que era melhor um exame mais específico. Se for da próstata, como suspeito, tenho de me sujeitar a um exame que dizem que é brutalmente doloroso. Que grande pôrra. Não é justo para um tipo que atravessou tantas coisas más na vida. Agora que me aposentei para poder gozar de um repouso que nunca tive, vem mais este susto.

DIÁRIO DE CARLOS – 17

Uma jornalista pediu-me um entrevista. A minha ponte já começa a dar que falar. É para uma reportagem da RTP sobre novos arquitectos. Eu disse que já não era muito novo, ela riu-se do outro lado da linha, não faz mal, disse ela, novos também porque experimentam coisas diferentes, vanguardistas, a expressão é dela. O Vasconcelos tratou de colocar on-line o meu projecto e acho que falou com uns críticos e outros gajos importantes.

S/título

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Adeus!

O sr. Sócrates, actual PM, está condenado. Não pelos tribunais, mas pela opinião pública. Já não há base social que o apoie. Ninguém vem para a rua manifestar-se a seu favor. Reunem-se os seus apaniguados (bem instalados na vida) apenas. A última sondagem, já não sei quando, dava-lhe a maioria das preferências. No mínimo, tal sondagem é uma treta. Gostaria de dizer pior, mas não digo. Desta feita pode-se fazer um prognóstico antes do jogo acabar: vamos ter eleições. Está encurralado. A sua política foi derrotada. É uma questão de tempo. Sai pela porta-baixa. Bem merecido. Página obscura, nódoa negra. Que vá e não volte.

Hipocrisias

O último candidato à presidência da República, personalidade que respeito enquanto fundador e rosto da AMI, apresenta-se como cidadão «livre» e «independente». Por exclusão tal significa que quem for membro de um partido político não é livre. «Independente» porque não se é membro de um partido, percebe-se, embora se questione a correcção de tal classificativo; que um cidadão deixa de ser livre quando ingressa por convicção filosófica num partido político, tal conclusão é insultuosa, discriminatória e, bem vistas as coisas, anti-democrática. As democracias definiram-se desde as origens como aqueles regimes políticos que permitiam a existência de partidos políticos, expressão e agremiação dos cidadãos, direito e liberdade básica. As ditaduras definem-se precisamente com aqueles regimes que não os permitem, perseguem e reprimem. Desde Rousseau que sabemos que um cidadão é tanto mais livre quanto pertencer a uma associação de homens livres. Se existem partidos políticos onde as «bases» são manipuladas pelas «cúpulas» esse é um problema diferente (nem sequer se dá razão a quem, sem provas, afirmar que esses filiados não são livres por via dessa dependência consentida). No mesmo discurso de apresentação o candidato opõe-se aos «políticos». Eis outra ideia que ecoa nos ouvidos como populismo, o que acentua uma visão autoritária. Tudo isto é feio. Mais feio será se o dito candidato, afinal, for realmente um «catavento» que apoiou no passado todos os partidos, cada um per si, desde o PS ao CDS, ou seja, na minha opinião, do centro-direita. E mais feio ainda se ele servir na verdade os desígnios do político e partidário Mário Soares.
Respeito a AMI. Já não respeito o seu presidente. Uma é humanitária e humanista, o outro dispenso-me de classificar.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

MORALIDADES

O moralismo é uma coisa, a moralidade é outra. Moralismo é pregar a moral aos outros de cima como se a nossa fosse superior, a única que é verdadeira, perfeita. A moralidade ensina-se mas não se impõe. A diferença e a diversidade de valores é uma riqueza que importa preservar e respeitar. Há uma moral convencional e uma moral legal. A primeira é difusa, tradicional, habitual, e exerce-se pela censura social; a segunda estabelece-se atraves de leis e exerce-se juridicamente. A moral muda, mudam-se os costumes, admite-se o que antes não se admitia. Contudo existe uma reserva, um reportório de valores invariáveis, embora possuam uma origem histórica e possam adaptar-se a novas circunstâncias; é o caso dos factores relacionados com a classe social: a honra, por exemplo, já foi uma virtude aristocrática e passou a ser burguesa. Apesar destes factores determinantes um rol de virtudes permanece irrecusável: sabemos o que é um indivíduo honrado, censuramos quem o não seja, sabemos classificar a desonestidade, a mentira, o cinismo. Podemos não saber definir com rigor o que são, mas sabemos distinguir um indivíduo sem honra, desonesto, traiçoeiro, desleal, mentiroso, egoísta manipulador, cruel, farsante, corrupto. Nem sempre é fácil e rápido, contudo os comportamentos manifestos e repetidos dão-nos pistas e provocam a desconfiança e o alerta.
Vem isto a propósito do que se passa no nosso país. Parece que muitos cidadãos conseguem ver talentos e motivos de admiração naqueles que mentem, defraudam, corrompem ou se deixam subornar e corromper. Parece que não dá frutos eleitorais combater-se um partido ou um governante denunciando-se os seus actos imorais. A ser assim algo de mau se passa com a moral colectiva.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 14

Carpe diem. A convite da Carla, para festejar o aniversário dela, encontrei-me com ela e com uma dúzia de desconhecidos. Jantámos no Parque das Nações, no Rei da Cerveja, creio ser este o nome do restaurante, saíamos de lá já bem bebidos. Já a manhã nascia quando saímos de uma discoteca famosa nas Docas. Não me apercebi de qual dos amigos dela era o seu namorado, se calhar porque eu não parava de beber. Um deles, um rapaz de cabelos negros e barba curta caiu-me no goto. Fez-se a mim com um atrevimento que me seduziu. No dia seguinte, quando os vapores do álcool já se tinham evaporado da minha cabeça, fiquei a pensar nele, mas apercebi-me então que ele largava a Carla para se chegar a mim, largava-me para se chegar à Carla. Enfim, a confusão dos corpos era demasiada para se distinguir fosse o que fosse. Ainda por cima ainda lá estávamos quando soubemos que lá fora andavam indivíduos aos tiros uns aos outros. No regresso a casa deparei-me com carros incendiados e polícias a rodos. Dois dias passaram. O rapaz prometeu telefonar-me. Sinto-me infantil com esta ansiedade pueril. Será que me telefona?






DIÁRIO DO PROFESSOR RAMOS – 4


Ando ansioso por um telefonema da Marta, os nossos encontros têm sido uma aragem de ar fresco, é encantadora, aquela tristeza cuja causa ela oculta atrai-me, os seus olhos castanhos quentes e doces onde por vezes ainda faísca a rebeldia que a tornava tão singular nos tempos de estudante liceal, aqueles tiques que denunciavam a sua natureza insubmissa, conserva uns lábios carnudos que deveriam ter sido uma delícia para o Carlos de então, não sei a razão porque se separaram, afinal ela tinha tudo para agradar, ele era mais pragmático, distanciava-se dos choques entre pessoas e ideias, uma outra forma de inteligência, menos sonhadora, mais realista. Marta é agora uma mulher madura que nada parece fazer para se tornar sedutora, menos ainda sexi como agora se diz, e, contudo, a mim pelo menos, talvez a outro género de homens não, da idade dela ou mais novos, a mim, contudo, atrai-me. A minha idade abalou-me o atrevimento, a autoconfiança, mesmo assim vou arranjar à vontade para lhe telefonar mais vezes, não estar à espera que ela o faça, afinal sou o homem, tenho de ser eu a tomar a iniciativa, nisso as coisas ainda não mudaram muito por estas terras.


DIÁRIO DE CARLOS – 16


O Vasconcelos anda muito satisfeito comigo. O negócio da ponte correu bem para o escritório. «Agora é não parar ó Carlos!», disse-me ele com um sorriso de orelha a orelha. Até parece que se esqueceu que estamos numa crise sem fim à vista. O país à deriva e um mercado que anda encolhido e temeroso.


Uma, duas vezes, por semana, visito as obras da ponte, apesar de confiar no engenheiro que é tipo fixe e competente. Gosto de ver as coisas a andarem e ele próprio escuta bem os meus conselhos.


Trabalho duramente, acho que nunca me dediquei tanto como agora. Ando motivado. Cheio de ideias para novos projectos. Trago na cabeça um que me apaixona: o edifício para um Centro de Cultura, o Vasconcelos não me desanimou, «Ó homem, vamos em frente, em frente é que é caminho!». Uma Câmara Municipal propôs-me. O Vasconcelos foi logo lá ao sítio meter uma cunha, contra a minha vontade, mas ele é assim. Vou fazendo esboços. Não quero ver nada de outros para não copiar, copiamos até inconscientemente. Um Centro onde qualquer miúdo possa aprender qualquer que seja a arte: música, dança, teatro, artes plásticas. A Câmara pretendia inicialmente uma finalidade exclusiva: música, criar uma filarmónica juvenil e, claro está, de amadores. Uma boa ideia, porém contrapus que o edifício poderia albergar outras finalidades. Estão a discutir o orçamento. E eu vou sonhando. Tornei-me um sonhador.


À noite contracto prostitutas de luxo, pela internet. Para descarregar o stress. Amantes que me deram cabo da cabeça já tive o suficiente. Estas servem muito bem para as necessidades, sem os custos adicionais de uma amante.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Carnavais

Faleceu a sátira de anemia. Pobre anda a imaginação. O pagode já nem se liberta, nem se evade: a alienação prolonga-se. As indumentárias compram-se nas lojas chinesas. O canaval português, ritual e herético, é agora brasileiro, perdão!, carioca. Cópia de arte popular pelintra. Valia-nos antes o bom tintol, hoje é só cerveja. Que fantasia extraordinária poderia ser o carnaval! Que oportunidade perdida!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O SINTOMA

O caso das «escutas» é um sintoma. Seja ou não prova de crime de corrupção, por um lado e, por outro, de atentado ao Estado Democrático. Provavelmente não serve judicalmente como matéria de prova. Permanece como sintoma (com todo o rol de jogadas jornalísticas e políticas). Como se dizia na Filosofia Antiga, é o fenómeno que oculta e desvenda, ao mesmo tempo, a essência. Ou, como diria Freud, é a manifestação de uma Coisa latente. Ou, como dirá a filosofia pós-heidegeriana e fenomenológica, não há essência por detrás, o fenómeno é a presença. Ou, como se diz em medicina, o sintoma é uma das manifestações da doença.
O sintoma apresenta-se como a luta entre fracções políticas que se degladiam pelo poder, oriundas da mesma família ideológica e económico-financeira. Vale o que vale. Ou seja, aí vale tudo, inclusive arrancar olhos. No quadro da alternância no poder mudam-se as tácticas, mas a estratégia é a mesma, já lá vão três dezenas de anos pelo menos.
Como doença, essência ou presença, o sintoma oculta (dissimula-se como o travesti dos sonhos) a dominação absoluta do grande capital. Não é a grande burguesia que está en crise, isto é, não está em perigo de morte a sua dominação absoluta. Quem está doente é a economia produtiva do país. O manifesto são as consequências de uma orientação política que a grande burguesia prossegue há dezenas de anos. A liberdade de expressão anda tão doente como doentes andam os direitos do Trabalho.
Como se diz em filosofia deixámos de ter sociedades «disciplinadas e burocráticas» para termos sociedades «controladas». É no controlo que se evidencia a novidade ameaçadora  do capital financeiro. Os novos modelos de avaliação dos trabalhadores constituem um exemplo paradigmático. Controlar as forças e as relações de produção, os aparelhos do Estado, as ideologias, é a suprema ambição do grande capital. Sem precisar de recorrer às ditaduras clássicas. Quando estiver realmente em perigo de morte, então recorre a elas.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário do professor Ramos -3


Agora que estou aposentado, nestes anos sem a adrenalina das aulas com miúdos travessos, acabavam por irem-se aquietando com o decorrer dos meses e do conhecimento recíproco, com raras excepções, nem quero recordar e menos registar aqui os casos mais negros que sofri, que um ou outro me fez sofrer, agora que estou retirado penso ainda mais na minha vida passada do que alguma vez pensei, eu, que sempre fui de cogitações, de exames de consciência, de perfeccionismo moral frequentemente inflexível (há muitos, muitos anos, era ainda um professor noviço, recusei receber em casa um senhor que se apresentou como pai de uma aluna – numa breve troca de palavras pelo intercomunicador do prédio – que me trazia um peru (imagine-se: um peru!) pelo natal, e eu recusei, o ano escolar ainda nem a meio estava, não lhe disse mas pensei «Subornos? Nunca!», era assim, quase intolerante, sem às vezes distinguir o bem intencionado do mal intencionado, mas realmente provoquei situações ingratas que poderia ter facilmente evitado, simplesmente gabava-me a mim próprio de ter a consciência limpa, de sempre respeitar os mais velhos e os mais novos, impacientava-me, tornava-me mesmo irascível quando me dirigiam uma insolência, uma ameaça, era raro, mas sucedia, fui aprendendo alguma coisa, mas pouco, que o temperamento não muda, somente com a velhice o corpo já receia os confrontos físicos, tem que ser, o contrário seria uma perfeita estupidez; agora que me retirei longe dessas lides diárias, para esta casa que o meu corpo mal habita, o silêncio que escorre pelos cantos da casa e da memória - as recordações são sempre silenciosas -, as lembranças assaltam-me sem precisarem de estímulo algum, chegam, plantam-se na memória sem cor e sem ruído, tento afastá-las, arrumá-las nas gavetas, no baú, elas hão-de voltar, insidiosas, contumazes, pintadas de negro e sinistras.

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 13


A última conversa com o professor Ramos fez-me despertar muitas recordações de há vinte anos atrás. Neste instante em que escrevo são 11 horas da noite. Esta semana o trabalho tem sido muito no hospital. Ando estafada. Os choros e os gritos dos doentes, o ruído do trânsito caótico nas ruas e das multidões que regularmente as percorrem aos gritos, já não me excitam os nervos. Há uma espécie de letargia no meu corpo que, todavia, não me impede de ser minuciosa no trabalho. Uma parte de mim cerrou a porta e as janelas. Sou uma casa semi- habitada. Sei que é uma estratégia de auto-defesa, por isso deixo-me andar assim. Há vinte anos era agia rapidamente por intuição ou por instinto. Uma palavra estúpida de um colega, um piropo grosseiro (era habitual o «Ó Marta, dá-me a tua rata!»), deixava-me em fúria, voavam livros e às vezes bofetadas. Era um animal feroz. O meu comportamento irreverente, a minha maneira de vestir, o convívio liberal na associação de estudantes, provocavam nos energúmenos a confusão entre o ser liberal e libertina, os estudantes da Direita eram os piores, armavam-se em machos e não me largavam as canelas, umas bestas.

DIÁRIO do professor Ramos-2

Tem sido agradável reencontrar o Carlos e a Marta. Não foram os únicos antigos alunos que me reconhecem e agradecem, de modo nenhum, o que é privilégio, uma gratificação, estes dois, contudo, visitam-me, o que não sucede frequentemente é claro, por vezes alguém me descobre na internet, envia-me um e-mail, ou no facebook, é uma recompensa para mim dos anos duros que também atravessei, encontro-os casualmente aqui ou ali, neste ou naquele emprego, ao balcão de uma loja, numa empresa de informática, ou dizem-me que são professores, advogados, funcionários em Bruxelas…Dá-me um gosto enorme encontrá-los na Festa do Avante! Numa viagem que fiz à Polónia veio cumprimentar-me uma antiga aluna à entrada do campo de concentração de Auschewitz…

O Carlos é um caso à parte. Pertence aquele escasso número dos que me visitam, com quem tomo uma bica e ficamos à conversa e acabamos por consolidar uma amizade agora sem diferenças. Feitas as contas ele deve andar aí pelos quarenta anos de idade, a Marta muito perto disso. A coragem que esta demonstrou ao visitar-me na minha própria casa, depois de um primeiro encontro num centro comercial de Lisboa, deixou-me surpreendido, depois percebi que ela transporta uma insuportável dor, ainda não descortinei a causa, provavelmente não encerrou ainda o luto pelo divórcio – é óbvio que é uma mulher divorciada! -, não sei.

DIÁRIO de Carlos – 15

Já adivinhei que a Marta se encontra com o professor Ramos! Nada perguntarei até ele mesmo mo dizer. Se não mo disse ainda, lá terá as suas razões. Respeito. Quando ele achar que é oportuno um encontro dos três, ele mo dirá.

Ando animado com a construção da minha ponte. Vai-se erguendo como se tratasse do desenho de um Velasquez, de um Goya, fragmento a fragmento, linha após linha, até o objecto a duas dimensões adquirir profundidade e se converter numa coisa viva, que nos contempla.

UMA ENTREVISTA OPORTUNA COM UM PARLAMENTAR DE EXCEPÇÃO

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

OS PONTOS NOS ii

Os pontos nos ii


A propósito da liberdade de expressão

1. A Constituição da República Portuguesa inscreve o direito à expressão livre do pensamento como um direito fundamental, sem reservas nenhumas, e proíbe qualquer forma de censura (falada, escrita, visionada, pressionada, controlada, regulamentada). A liberdade não pode exercer-se sob tutelas de nenhuma espécie.

2. O cidadão que a exerce é responsável pelo que escreve ou diz ou mostra.

3. O Estado é laico e não defende, nem representa, nenhuma ideologia seja ela qual for.

4. O Estado obriga-se a defender e a representar a Liberdade individual e, simultaneamente, a defender a segurança colectiva.

5. O Estado fascista derrubado em 25 de Abril também consignava na sua Constituição a liberdade de expressão, porém, logo a seguir, instituía a censura (em nome da segurança do Estado). Classifica-se a si próprio «Democracia Orgânica», algures entre o «socialismo» e o «liberalismo». Assim nos obrigaram a decorar na disciplina escolar de «formação ideológica e política».

6. Interessa-me pouco o caso pessoal de um senhor jornalista de nome Mário Crespo e, menos ainda, o caso de uma senhora que apresentava os telejornais de sexta feira na TVI. Do trabalho profissional de Mário Crespo na SIC, tanto quanto sigo, tem a minha apreciação positiva, sem que isso signifique que ele pense e diga sempre o que eu penso. Da Senhora jornalista Moura Guedes julgo-a abusiva, grosseira e feia. Nenhuma falta me faz o seu telejornal; porém, digo: faz falta um telejornal independente e tão neutro quanto possível, limpo, objectivo, pedagógico, informativo, sensato, ponderado, plural.

7. As empresas de televisão, pública e privadas, não são independentes dos poderes fácticos, sejam eles o Governo ou os accionistas. Livros, documentos, testemunhos, demonstram-no sem margem para dúvidas. Só não sabe quem é ignorante e gosta de o ser. Só não o admite quem é conivente ou cobarde.

8. Os Governos do PS e do Sr. Sócrates dão provas todos os dias de uma política sistemática e calculada de iniquidade para com os mais fracos e desprotegidos e de subserviência com os mais poderosos; de clientelismo, chantagem e nepotismo; mentem descaradamente ao país e ao parlamento; exercem todas as formas de pressão sobre todas as instituições (Justiça, Assembleia da República, Presidência da República), sobre as organizações sindicais, sobre a comunicação social, sobre os cidadãos e movimentos sociais que os contestem e que não se submetam. Só não vê quem arranca os olhos para ver melhor.

9. Tudo que nas escutas constituir matéria de investigação criminal (conforme estabelecido no Código Penal) tem de ser investigado, seja ele o Presidente ou o PM a lei é igual para todos, com os respectivos agravantes quando se tratam de personalidades ou instituições públicas. Assim já sucedeu com deputados e autarcas.

10. O país inteiro tem o direito de ser informado dos processos criminais na fase que a lei estatui.

11. Aquele que exercer o seu direito de expressão para caluniar, difamar, acusar sem provas, está sujeito a uma queixa-crime do visado.

12. Fora disto e tudo o mais que cada um opine releva apenas do direito à opinião livre e plural, exigindo-se sempre que possível o contraditório. Todo o cidadão tem o direito à estupidez, à palermice, a debitar tretas e a exibir-se.

João Chagas

João Chagas (1863-1925): Jornalista, escritor, diplomata e político destacado da primeira República. Fundou e dirigiu vários jornais e tem publicada vasta obra de ensaios, memórias, etc. A prisão de João Chagas em 1891, no Porto, constituiu uma das razões para o levantamento armado de 31 de Janeiro. Os trechos acima estão contidos no seu livro "As minhas razões", de 1906.




N.R.: Os tempos de João Chagas, em que polícias corriam atrás de ardinas para lhes apreender jornais, já vão longe. No Portugal de hoje as coisas são muito diferentes, mais empresariais. O controle dos media faz-se através de banqueiros, grandes empresas públicas e privadas, grupos estrangeiros, advogados e naturalmente o primeiro-ministro e os inefáveis boys que o cercam. Uma amostra dos negócios actuais da comunicação social pode ser apreciada no trabalho de investigação feito pelo semanário Sol .



Estes excertos encontram-se em http://resistir.info/ .

Pôr os pontos nos ii

As minhas razões


por João Chagas [*]



Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase sempre por se declarar vencidos.

João Chagas



O que se pensará daqui a cem, daqui a duzentos anos da apreensão de um jornal?



Será este facto reputado odioso, ou será simplesmente reputado grotesco?



Eu suponho que será reputado um facto grotesco e que os pósteros apanharão ainda, à nossa custa, bem boas barrigadas de riso.



Com efeito, qual é a ideia da apreensão? É a ideia de impedir que uma verdade circule, e há porventura nada mais grotesco que desatar a correr atrás de uma folha de papel, porque essa folha de papel contém – uma verdade.



Alto! contestam porém os poderes públicos. – Essa folha de papel não contém a verdade: contém uma mentira, e há porventura nada mais burlesco ainda do que desatar a correr atrás de uma mentira?



Verdade, mentira é o pensamento e há nada mais risível do que querer apreender o pensamento?



Eu vi algumas vezes apreender jornais nas ruas de Lisboa e nunca pude deixar de rir a bandeiras despregadas, mesmo quando esses jornais eram meus, porque asseguro-lhes que não há espectáculo mais divertido.



Que faz esse homem de sabre em punho, a correr atrás de um rapazito que foge? Corre atrás do rapaz? Não. Corre atrás de uma verdade que ele leva nas mãos, embrulhada nalgumas folhas de papel.



O homem acerca-se do rapaz, arranca-lhe das mãos as folhas de papel e mete-as no bolso com um sorriso de satisfação.



O que significa o seu sorriso? – Significa que conseguiu esconder no seu bolso uma verdade.



Escondeu-a?



Na realidade denunciou-a.



Enquanto essa verdade circulava tranquilamente nas mãos do rapaz, nas mãos do homem ainda corre mais. Agora não corre: voa.



Toda a gente ri. Ri-se de tudo o que é pueril e vão. Ri-se da omnipotência do rapaz. Ri-se da impotência do homem.



Rapaz! Não fujas. Não te dês ao trabalho de fugir. Deixa-te agarrar por esse homem furibundo que te persegue. Arranca-te das mãos os teus jornais? Deixa-os arrancar. Agora já não és tu já que o apregoas. – É ele. Estão escondidos no seu bolso e irradiam. Nas tuas mãos eram apenas jornais. Agora são um clarão. Nada se perdeu, nada, a não ser as poucas moedas de dez réis de que ele te privou. Mas tranquiliza-te! – Serás indemnizado amanhã do prejuízo que sofreste hoje. A verdade dá sempre dividendo e, em suma fizeste-nos passar um bom bocado.









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Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase sempre por se declarar vencidos. Só os poderes enfraquecidos temem a imprensa porque a imprensa não é para temer. Só a verdade é temível, disse o velho Thiers que um tão belo papel representou no acto de protesto contra as Ordenanças de Julho.



Os juízos da imprensa só são eficazes quando são justos, porque apesar de tudo quando se pensa da influência da imprensa sobre a opinião, nem por isso é menos certo que são afinal os votos desta que ela acaba por formular. Não é geralmente o jornal que faz a opinião: é a opinião que faz o jornal, e o jornal é quase sempre o último a exprimi-la.



Supõem por acaso que os interesses dos jornais não são os interesses da opinião? São os mesmos. Quando a imprensa inteira se levanta não faz, em geral, senão ceder às suas cominações. – Quando não partilha das paixões que a inflamam, obedece ao seu impulso despótico. Perseguindo a imprensa, os poderes parecem receosos de que, ao contrário, seja a imprensa que semeie essas paixões. Erro! Não há paixões. Há verdade, há justiça. Se não formos verdadeiros, se não formos justos, por muito que falemos, por muito que gritemos, mesmo pela voz clamorosa da imprensa, ninguém nos escutará.



Quer-se um exemplo?



Aqui está Rochefort. Rochefort foi ouvido enquanto fez obra de verdade e de justiça. O seu renome não tem mesmo outra origem. Desde, porém, que se deu a combater contra toda a verdade e toda a justiça, a opinião, que ele mais de uma vez levou consigo, voltou-lhe completamente as costas. Rochefort combate a República Francesa com a derradeira violência e os seus chefes com os últimos ultrajes. Loubet nunca foi na sua pena senão «um canalha», e Falliéres outro, o que não impede que a República, Loubet, Falliéres se ressintam tanto dos seus ataques como o sol de pedradas. Ao contrário, crescem na consideração alheia, são respeitados, são amados, são festejados. Contudo Rochefort é a imprensa, e pensam por acaso que a República e os governos republicanos perseguem a imprensa na pessoa de Rochefort? Bem sabem que não. Rochefort diz tudo quanto quer e deste direito usa largamente. E porque não se persegue Rochefort? – Porque Rochefort, embora sendo a imprensa, não é um perigo nem para as instituições, nem para os chefes republicanos, visto que não é essa temível verdade de que fala Thiers, e, segundo a frase de Thiers, a falsidade é impotente e nunca houve poder que por ela sofresse.



O facto é este: Só receiam a imprensa os poderes impopulares. O seu erro consiste em imaginarem que deixam de o ser pelo facto de a perseguir.



IMPRENSA GOVERNAMENTAL



Não sei se, como em Portugal, em toda a parte há uma imprensa ministerial. A mim afigura-se-me a imprensa ministerial a coisa mais frívola do mundo.



O que faz a força da imprensa é a ideia que se lhe associa, de imparcialidade. Bem sei que não é assim. A imprensa não é imparcial e é mesmo tão parcial que, por via de regra, serve os interesses dos princípios, quando não os das facções e os das facções quando não os dos homens. Uma imprensa imparcial, de resto, seria absolutamente vazia de sentido. Visto que os homens estão divididos, é natural que os jornais também o estejam. Um jornal imparcial seria aquele que não representasse opiniões associadas, e as opiniões solitárias não constituem público que legitime a existência de um jornal. Há, porém, um tipo de jornal, de cuja imparcialidade podemos francamente duvidar, e esse jornal é – o jornal ministerial.



É possível defender princípios e mesmo partidos com uma relativa imparcialidade. Defender governos com imparcialidade é absolutamente impossível, porque a defesa dos actos de um governo não dá lugar a que a supúnhamos desinteressada, e o crédito do princípio da imparcialidade está no desinteresse que se lhe atribui. Defender uma opinião que se bate ainda pode ser reputado um acto inegociável. Defender uma opinião que triunfou é procurar garantir o seu triunfo. Quando essa opinião é o governo, tudo leva a crer que não estamos a defender uma opinião, mas simplesmente – o governo.



De como esta defesa é pueril prova-o a nenhuma importância que se atribui aos órgãos dos governos e a zombaria, senão o desdém, de que eles são objecto.



Com efeito, as razões do jornal do governo são sempre as razões do governo. Pode o governo ser execrável, perdulário, dissoluto, liberticida, despótico. Para o seu jornal, para os seus jornais, ele é invariavelmente económico, disciplinador, formalista, tolerante, liberal.



Os partidos atacam o governo? – Segundo os jornais do governo esses partidos estão apenas sequiosos do poder.



A opinião mostra-se descontente com o governo? – Segundo os jornais do governo essa opinião não exprime senão os desígnios funestos de alguns solitários, disseminados díscolos.



Que confiança imputar a semelhantes juízos, se de antemão sabemos que eles serão optimistas? Eu não sei como há ainda jornalistas que se prestem a redigir jornais do governo, tão vã, tão nula, tão vazia é a sua tarefa. Eles não contribuem com uma palavra para o seu engrandecimento. Um charlatão, numa praça pública, afiançando uma pastilha, ainda encontra alguns clientes. Eles nem um só. Toda a gente encolhe os ombros diante do espectáculo da sua solidariedade, porque a essa solidariedade, com efeito, chama-se cumplicidade e nunca as razões de um cúmplice tiveram sequer as aparências de um juízo imparcial.



A CENSURA



De todos os vexames a que a liberdade de pensar ainda está exposta, o mais vexatório é a Censura, porque as leis, os tribunais e as penas são ainda a responsabilidade, enquanto que a Censura é a tutela.



No decurso da minha carreira de jornalista fui muitas vezes submetido a essa tutela, e posso depor em como foram esses os piores quartos de hora da minha vida. Os julgamentos de imprensa e outras incómodas consequências dos meus actos de escritor, nunca feriram o meu orgulho. A Censura humilhou-me.



Nenhum acto de opressão dos poderes é mais vexatório, porque nenhum nos despoja mais directamente da liberdade. A Censura em rigor, não é um acto de opressão. – É a mão no pescoço. Devemos muitas vezes afrontar leis despóticas e juízes parciais. Muitas vezes espera-nos a prisão. Pois bem! Isto não nos desapossa do sentimento da liberdade, porque no momento em que lançamos mão da pena, nada nos detém a mão, nem mesmo o temor da responsabilidade, que só é uma coacção eficaz para as naturezas pusilânimes e essas não manejam uma pena, como não manejam uma espada. Ao contrário, quase sempre se vai ao encontro das responsabilidades que comprometem a dignidade da inteligência e o sentimento do dever. Essas responsabilidades enobrecem-nos e tornam-nos mais corajosos.



Entretanto, somos livres, porque responsabilidade quer dizer liberdade



Sob o peso da Censura temos o sentimento quase físico da coacção. Lançamos mão da pena, se somos forçados a fazê-lo, e a nossa pena não se move, como se alguém, ou alguma coisa, nos retivesse a mão. A Censura vai exercer-se mais tarde, mas exerce-se muito antes, e é isso que profundamente nos humilha, porque actua sobre nós, por efeito da sua coacção moral, antes de materialmente actuar sobre a nossa obra.



O acto material da Censura é o que nos molesta menos. Em que é que pode molestar-nos que um indivíduo, geralmente iletrado, se entretenha a ler os nossos escritos com um olho faccioso? O que nos vexa até ao ponto de nos parecer que tudo se degradou em nós, é que essa censura que um outro vai exercer, começamos nós por a exercer sobre nós próprios. – e não há despotismo mais aviltante do que o que nos entra no sangue.



Já as leis de imprensa não são compatíveis com os regimes livres. As leis de imprensa visam a punir os delitos do pensamento e não há delitos do pensamento, visto que nunca foi um delito exprimir opiniões, sejam de que natureza for. Tudo o que na imprensa não é da jurisdição da imprensa é da jurisdição do direito comum. Uma lei de imprensa, mesmo livre, é um atentado à liberdade, porque põe limites no direito ilimitado de pensar. Mas o pensamento assusta ainda o homem, como nos tempos nebulosos em que se lhe revelava sob a forma do Diabo, e é forçoso que nos inclinemos perante as leis de imprensa que, uma ou outra vez, nos levam ao banco dos réus, sob o pretexto de que formulamos uma opinião.



Perante a Censura, que não é jurisprudência mais ou menos arqueológica, mas francamente despotismo sem máscara, não há meio de nos inclinarmos, a não ser que tenhamos uma alma de escravo.



Só aplicam a Censura – eu sei! – os déspotas em vias de falência e os regimes em vias de dissolução, mas estas razões não nos consolam do vilipêndio.



[*] João Chagas (1863-1925): Jornalista, escritor, diplomata e político destacado da primeira República. Fundou e dirigiu vários jornais e tem publicada vasta obra de ensaios, memórias, etc. A prisão de João Chagas em 1891, no Porto, constituiu uma das razões para o levantamento armado de 31 de Janeiro. Os trechos acima estão contidos no seu livro "As minhas razões", de 1906.



N.R.: Os tempos de João Chagas, em que polícias corriam atrás de ardinas para lhes apreender jornais, já vão longe. No Portugal de hoje as coisas são muito diferentes, mais empresariais. O controle dos media faz-se através de banqueiros, grandes empresas públicas e privadas, grupos estrangeiros, advogados e naturalmente o primeiro-ministro e os inefáveis boys que o cercam. Uma amostra dos negócios actuais da comunicação social pode ser apreciada no trabalho de investigação feito pelo semanário Sol .



Estes excertos encontram-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário de Marta – 12



Sempre que visito a Gisela na sua campa, para substituir as flores, para rezar por nós ambas, por ela para que possa brincar eternamente no lugar onde estará, por mim para que Aquele que nos observa tenha misericórdia da minha miserável condição, sempre que a visito culpo-me por aquilo que não fiz, censuro-me pelo horror que outro cometeu, choro convulsivamente e lamento não estar ali em vez dela. Regresso ao trabalho e ocupo-me desesperadamente.


……As revoltas, a revolução ou lá o que chamar a estas convulsões que abalam a sociedade toda…A greve geral paralisou ontem o país. As manifestações sucedem-se nas ruas, Lisboa é pandemónio, até esta cidade onde resido não foge à regra geral. Protestam os funcionários do Estado, os operários, os professores e os estudantes, os enfermeiros e os médicos, os motoristas e os agricultores…O governo já não tem mão em nada. E até eu sinto a mesma vontade de gritar qualquer coisa contra qualquer coisa, a mesma que sentia quando era estudante, quando era adolescente, quando saía daquelas aulas do professor Ramos que me deixavam a cabeça a escaldar.


Para onde vai este país não o sei, por agora está na bancarrota. A urgência do hospital funciona porque não brincamos com o serviço. Há dias em que os feridos pelas escaramuças entram em filas ininterruptas, sem nos darem tréguas. Se não vou para a rua gritar, cuido dos que gritam. O mundo está cheio de dor. A dor do mundo não diminui a minha.


Diário do professor Ramos -1


Há anos que não pegava no meu diário. Houve um tempo, longo de resto, que escrevinhava furiosamente ao serão, relatando, criticando, analisando, o que sentia, o que observava, a cada dia, um exame de consciência, nem sempre consciente, um julgamento não poucos vezes auto-complacente, raras vezes alegre, frequentemente pessimista e lembro-me que esse hábito, ou vício, começou, se não estou enganado, se a memória não me atraiçoa, durante, ou logo depois, a queda, o desmoronamento do chamado mundo socialista. Se existiam dois mundos, ficou só um, a menos que, afinal, os mundos fossem vários. Não me senti órfão, senti-me desiludido, como se um cansaço indefinível, insidioso, chegasse inexoravelmente após muitos anos de enérgico combate. Não desisti, porém a resistência já não era a mesma, nem no vigor, nem na crença.


Retomo estas páginas do meu diário, desperto o que estava adormecido, provavelmente porque tanto a Marta como o Carlos me confessarem que redigiam os seus diários. Foi aproximadamente com a idade deles que também iniciei o meu, para mais tarde o interromper. A certa altura, creio que foi isso, descobri, ou fizeram-me descobrir, como podem ser comprometedores os diários, sem que necessariamente confessem crimes ou vícios inenarráveis, bastam as confissões, as interrogações, os dilemas do coração ou do espírito, os equívocos que provocam em quem os possa vir a ler. Por isso deixei de escrever e tenciono não repetir. Um diário ou é estritamente confessional, pessoalíssimo portanto, e então deve ser destruído, lançado às chamas no dia seguinte, quando o sol ilumina a consciência, afasta das trevas da noite, ou, então, um diário deveria constituir um verdadeiro exame racional do irracional, um tribunal da razão destemperada, um julgamento das ilusões e das quimeras, a cicatrização das feridas, um triunfo do juízo sobre o desespero.


Esforçar-me-ei para que seja uma arma de combate, mais do que um estado de alma.


O estado em que se encontra o meu país é demasiado grave, o seu destino demasiado imprevisível, para que não me exija uma opinião reflectida.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Os Materialismos em Filosofia e nas Ciências

a) Ou bem que definimos o psiquismo como uma actividade-ou qualquer outro termo análogo- essencialmente distinta da actividade nervosa que lhe corresponde. Neste caso, não há qualquer meio de evitar o dualismo espiritualista da «alma» e do «corpo», ou seja, o idealismo, no sentido marxista do termo. (...)
b) Ou bem que definimos, pelo contrário, o psiquismo como uma actividade que, na verdade, não é outra coisa senão actividade nervosa. Nesse caso, não há nenhuma forma de evitar a volatilização da psicologia em proveito das ciências biológicas. (...) acabará inexoravelmente por chegar a hora do total investimento do estudo do psiquismo humano na verdadeira psicologia materialista, quer dizer na neurofisiologia da actividade «psíquica». Certos intérpretes do pavlovianismo defenderam, no passado, este ponto de vista liquidacionista em relação a toda e qualquer psicologia entendida como ciência claramente autónoma em relação à fisiologia nervosa. Os prejuízos a que este fisiologismo conduziu, a sua esterilidade do ponto de vista psicológico, os danos que, ao fim e ao cabo, causou ao próprio materialismo (...), todos estes inconvenientes são tais que é lícito duvidar de que encontre, hoje em dia, adeptos entre quem anda bem informado, e usa, de facto o cérebro para pensar.
c) Só resta, então, uma solução: a de defender, ao mesmo tempo que se reafirma a unidade entre o aspecto psicológico e o fisiológico, o subjectivo e o objectivo, que a psicologia e a neurofisiologia não deixam, por isso, de ser ciências distintas a título definitivo porque estudam o objecto único que é o psiquismo sob duas ópticas diferentes. (...) a natureza exacta desta propriedade do psiquismo, que o distinguiria qualitativamente da actividade nervosa, se bem que não seja outra coisa senão esta, tem, até aqui, sido impossível de definir.»

Sève, Lucien, marxismo e a teoria da personalidade, vol.1, pp.43 a 6, Ed. Horizonte universitário, 1979

Questões:
1. O trabalho de António Damásio e sua equipa para esclarecer em que bases neirofisiológicas assantam as emoções, inclusivamente os actos morais (ver, por exemplo, o seu estudo do Caso Phineas Gage), tem sido de crucial novidade e importância.
2. A compreensão de que dispomos hoje do papel fundamental do sistema endócrino (glândulas) nas emoções é mais um contributo incontornável.
3. Nada disso, porém, nos pode desviar ou minimizar o papel das interacções entre os indivíduos singulares e concretos (historica e culturalmente concretos e determinados), a influência do meio sobre e com a hereditariedade ( atentos como estamos hoje mais à ontogénese do que à filogénese), a existência de um «capital simbólico» (universal, mas sempre também de classe social), etc.
4. O materialismo, que Marx reinventou em bases científicas, dispõe hoje de um património suficiente para se constituir como linha avançada das teorias científicas, da explicação da humanidade do homem.

Lev Vygotsky On-Line

On-Line:







Archives:


Vygotsky Internet Archive (Marxists.Org)


Selected Individual Works:

Thinking and Speaking (1934)
Play and its Role in the Mental Development of the Child (1933)
On the Problem of the Psychology of the Actor's Creative Work (1932)
Adolescent Pedagogy (1931)
Mind and Society (1930)
Primitive Man and his Behaviour (c.1930)
The Socialist Alteration of Man (1930)
The Fundamental Problems of Defectology (1929)
The Problem of the Cultural Development of the Child (1929)
The Historical Meaning of the Crisis in Psychology (1927)
Educational Psychology (1926)
Consciousness as a Problem of Behaviour (1925)
The Psychology of Art (1925)



LEV VYGOTSKY

Lev Vygotsky







Lev Vygotsky (17 de Novembro de 1896-11 de Junho de 1934)






O psicólogo russo Lev Semionovitch Vygotsky foi descoberto nos meios académicos ocidentais depois da sua morte, causada por tuberculose, aos 37 anos. Pensador importante, foi pioneiro na noção de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interacções sociais.






Era filho de uma próspera família judia. Cursou Direito, Literatura e História. Se I. Pavlov foi o fundador da psicologia soviética e provavelmente de toda a psicologia científica, Lev S. Vygotsky foi o seu mais insigne continuador; é convencionalmente considerado fundador da psicologia construtivista, na qual, muito mais tarde, Jean Piaget viria a desempenhar um papel de renome mundial. Corrigiu a teoria dos Reflexos (Reflexologia) de Pavlov, moderando o seu excesso de fisiologia (fisiologismo na compreensão dos processos psíquicos), excesso de que se encarregou a psicologia soviética oficial; foi acusado de demasiado «subjectivismo», porém, na verdade, a sua obra, o seu pensamento, é um contributo pioneiro para o estudo da actividade dos sujeitos, as suas relações activas e sociais, as etapas de formação do intelecto; o «quantitativo» não mede toda a vida psíquica nem o cérebro (o sistema nervoso) dá conta, sem as interacções e a aprendizagem social (no e do meio), de todos os processos complexos de desenvolvimento do indivíduo.


Teve como colaboradores os eminentes psicólogos soviéticos, de categoria internacional, Alexandre Luria e Alexei Leontiev. No período estalinista a sua obra foi censurada. O seu livro Pensamento e Linguagem apenas em 1962 foi editado nos Estados Unidos.


Os seus interesses eram múltiplos, o genial cineasta Serge Eisenstein (Autor, entre outros, dos filmes «O Couraçado Potenkine, e Outubro) admirou a sua psicologia da arte.


Nos seus livros mais célebres constatamos com clareza a sua intenção de orientar sempre as suas teorias pelas linhas mestras do materialismo e do marxismo; por isso não se entende bem a censura de que foi alvo pelos estalinistas e pelo marxismo dogmático. O materialismo dialéctico -filosofia e psicologia- não reduz os fenómenos à actividade da matéria física (e fisiológica) mas realça e estuda os contextos sociais e ambientais em que os indivíduos desenvolvem a sua acção; os «reflexos» (reacções simples e condicionadas, estímulo-resposta) não explicam todos os processos sociais e psíquicos; o objecto não anula o sujeito. Encontramos em Marx apoio para estas teses. Eliminar o sujeito com a sua subjectividade é eliminar a diversidade, a diferença, a acção criadora humana.


Para Vygotsky, o que nos torna humanos é a capacidade de utilizar instrumentos simbólicos – exprimimos-nos através de mediações simbólicas, de um «capital» simbólico, como escreveu o sociólogo P. Bourdieu, o que, aliás, não fora negado de modo algum por I. Pavlov. Embora a nossa actividade possua bases bio-neurológicas, não seria humana se não fosse esse simbolismo que criamos na história humana (A Linguagem, em primeiro lugar, que I. Pavlov procurou explicar através da sua teoria do «Segundo Sinal»). Os jogos infantis constituem, segundo L. Vygostky, um bom exemplo :a vassoura que é um cavalo no jogo e no imaginário criador infantil. Os chimpanzés não se servem do pau da vassoura senão para derrubar bananas. Com o processo de interiorização, tornamos-nos capazes de transformar marcas externas em processos internos de mediação. O que nos torna humanos, segundo Vygotsky, é nossa imaginação.


Deste modo a aprendizagem da linguagem é uma etapa decisiva para nos exprimirmos e utizarmos em nossa vantagem os nossos próprios símbolos (de origem social).






A aprendizagem constitui, pois, um campo de estudo que se tornou fundamental nas explicações psicológicas; um dos conceitos mais importantes e inovadores forjados por L. Vygotsky é o de Zona de desenvolvimento proximal, que se relaciona com a diferença entre o que a criança consegue aprender sozinha e aquilo que consegue aprender com a ajuda de um adulto. A Zona de desenvolvimento proximal é, portanto, tudo o que a criança pode adquirir em termos intelectuais quando lhe é dado o suporte educacional devido; é hoje vulgarmente designado por etapa de desenvolvimento (Ver Jerome BRUNER). L. Vygotsky soube magistralmente dar um uso verdadeiramente dialéctico e marxista ao conceito de síntese. O autor define a síntese não apenas como a soma ou a justaposição de dois ou mais elementos, e sim como a emergência de um produto totalmente novo gerado a partir da interacção entre elementos anteriores.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Para uma Filosofia Materialista da Ciência

Há uma Psicologia materialista?







Temos vindo a expor neste blogue algumas informações que julgamos relevantes sobre as concepções materialistas na Filosofia. Traçámos um excurso breve do desenvolvimento destas concepções desde o seu aparecimento há milhares de anos na Índia, na China, na Grécia, até ao século XIX; ficou este ainda incompleto pois que tencionamos expor as ideias de Karl Marx e F.Engels com um rigor e concisão que exige algum trabalho.


Neste post queremos colocar a seguinte questão: é o Materialismo uma concepção exclusivamente filosófica, isto é, confina-se a esta disciplina do saber, ou é transversal a todas as ciências? Os cientistas enquanto exercem essa actividade (uma ciência particular) criam noções com efeitos filosóficos? Com mais clareza: existe uma Psicologia, Sociologia, História, etc, materialistas? Uma Física materialista?


Tentaremos responder gradualmente a estas questões. Hoje apenas colocamos algumas contribuições de outros, entre as mais notáveis na nossa opinião. Se não nos for possível tirar conclusões, que outros as tirem.


1. É possível e desejável introduzir-se ou defender-se uma linha materialista na Física? O especialista –epistemólogo- argentino Mario Bunge julga que sim, criticando o idealismo que parece vigorar nos Discípulos da Escola de Copenhague (alguns afirmam que as micropartículas – os quanta – não são senão criações úteis do espírito), assim como o empirismo no modo como se interpreta a experimentação ( o papel da Razão é negligenciado , isto é, das teorias). Aquilo que convencionalmente se designa por «realismo» é nele um realismo crítico que o aproxima claramente de algumas teses centrais do materialismo. O seu livro «Filosofia da Física» (Ed. 70) é um valioso contributo para, a partir de uma visão crítica, se estabelecer uma filosofia materialista da Física.


2. É possível e desejável uma Psicologia materialista? Sem qualquer dúvida para uma plêiade de eminentes psicólogos: I. Pavlov (1850-1936) que, em nossa opinião, lançou as bases de uma Psicologia científica e materialista (Teoria dos reflexos simples e dos reflexos condicionados), com amplo e oficial apoio na ora extinta URSS; o estudo directo dos processos nervosos que constituem o substrato material dos fenómenos psíquicos, não mais se deixou de fazer, embora com altos e baixos, em todo o mundo: a psicologia behaviorista (comportamentalista) iniciada por J. Watson deve a Pavlov muito mais do que aquilo que evitava assumir; a neurologia germânica, francesa (a Escola de P. Changeux), norte-americana (com destaque para o nosso compatriota A. Damásio, o qual fornece sólidas bases para uma psicologia materialista, ainda que ele não seja marxista de modo nenhum; veja-se, no entanto, a sua crítica ao dualismo que remonta a Descartes e a sua «descoberta» entusiástica da filosofia de Espinosa (o qual é, na minha opinião, uma «arma de guerra» do materialismo, independentemente das intenções do próprio). Devemos referir obrigatoriamente os nomes de eminentes psicólogos como: os russos S.L. Rubinstein (o livro «O ser e a consciência» é um monumento), A.R. Luria, A.N. Leontiev; o marxista francês Henry Wallon, pioneiro dos estudos experimentais do desenvolvimento do pensamento nas crianças, e o psicólogo suíço de renome mundial, Jean Piaget que, apesar das suas tergiversações e da sua cerrada crítica à filosofia, é um nome incontornável na Psicologia do Desenvolvimento, a linha mais acertada pela qual a mais recente psicologia enveredou. A Psicologia científica materialista deve muitíssimo ao russo L.S.Vigotsky (1896-1934) que fundou a Psicologia do Desenvolvimento, crítico do excesso de «fisiologia» nas explicações sobre o psiquismo, realçando o papel activo dos seres humanos na criação e na mudança do seu ambiente, actividade essa que dá origem a novas formas de consciência (Luria, Leontiev e Rubinstein, seguiram-lhe os passos, repondo nessas bases a «reflexologia» pavloviana).


3. Na Sociologia é de reter a escola de Frankfurt (T. Adorno em particular)e o imenso contributo de Pierre Bourdieu. Na Psicologia Social novamente a Escola de Frankfurt, os estudos pioneiros sobre a psicologia de massas; o francês Moscovici (Homens Domésticos, Homens Selvagens, e A Sociedade Contranatura); o biólogo ou etólogo K. Lorenz, o qual demonstrou o papel do ambiente e das culturas na estruturação das reacções aprendidas e das inatas. De resto, basta consultar um manual de Psicologia (A ou B) escolar para nos certificarmos como está ausente uma filosofia idealista e mística ( a «alma» há muito que foi jogada no sótão das velharias). Uma psicologia materialista não reduz os fenómenos psíquicos aos processos fisiológicos, nem, pelo contrário, os reduz aos processos sociológicos. As mediações dialécticas constituem um dispositivo fundamental de um pensamento materialista.

O CORRUPTO

Sou de poucas falas
Quando o falar tem nada
Só falo quando o falar
Tem muito.


De boas contas sou
Os meus amigos que o digam
Pago-lhes sempre o que pedem
Recebo sempre o que mereço.
Comigo ou há confiança
Ou confiança nenhuma.


Sou homem de famílias
Vale mais dizer: de famílias
Porque poucas não foram
Aquelas que servi
Ou me serviram.


Escrevo direito
Por linhas tortas
Onde há rato
Temos gato.


Ando de mãos limpas
Uma mão limpa a outra.


Subi tanto
Que outro tanto me falta subir.
Sou homem de grandes apetites.


Ainda me falta um degrau:
Fazerem-me comendador.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Intercâmbios

Deste modo, conhecendo algumas das teses formuladas pelos filósofos indianos e chineses, muitos séculos antes da nossa era, constatamos a antiguidade do materialismo em filosofia e a sua profunda e duradoura influência, tanto nessas vastas regiões do globo como no Médio Oriente Antigo e, sobretudo, na Grécia Antiga. Quanto à influência de umas regiões e escolas sobre outras – entre a China e a índia, e entre estas regiões e as colónias gregas da Ásia Menor (onde viveu Heraclito, por exemplo), não há ainda certezas absolutas, mas é de crer que os intercâmbios mercantis no continente asiático hajam naturalmente transportado não apenas mercadorias mas também ideias e ideologias. Muito antes dos exércitos de Alexandre Magno as haverem trazido para Alexandria.



Certo é que não existiu exclusivamente a crença (dita universal) na existência de deuses e de forças sobrenaturais: escolas materialistas, desde tempos remotos, opuseram-se à religião e ao misticismo idealista. Embora de modos ingénuos defendiam que a primazia cabe à matéria e não ao espírito, e este é o problema fundamental da filosofia.

FILOSOFIAS MATERIALISTAS NA CHINA ANTIGA





A filosofia na China Antiga remonta a muitos séculos antes da nossa era, tal como na Índia. Muito antes de Tales de Mileto (considerado o primeiro filósofo grego), nos séculos X e IX os filósofos chineses haviam formulado os cinco princípios materiais: água, fogo, madeira, metal e terra, como elementos primários do mundo (Tales viria a decidir-se pela Água como primeiro princípio e elemento que compõe todas as coisas, inertes e vivas). O célebre Livro das mudanças (séculos IX e VIII A.C.) expõe a tese de que a substância material tsi (o ar ou o éter?) é o fundamento de todos os elementos (a substância). A mudança é a lei geral do mundo e da vida, mas nela não muda nunca um princípio único e universal: o tai-tsi, composto de dois opostos: o yan-tsi (ou tsi positivo: a força da luz, o sol, ou o princípio masculino); o yin-tsi (ou tsi negativo: a força das trevas,a lua, ou princípio feminino). Todas as coisas observáveis e não observáveis resultam da combinação destes contraditórios que se chocam e interpenetram mutuamente (original intuição da Dialéctica do mundo e da vida). Por aqui vemos como se aproximam as filosofias dos gregos das crenças dos chineses e indianos: os elementos materiais, a mudança ou o movimento perpétuo, a ordem ou harmonia das contradições (que permitem o movimento e a mudança). Teses materialistas. O desdobramento do tai-tsi (o universo) naqueles princípios opostos (yan e yin) originou a divisão do mundo em Céu (yan-tsi) e Terra (yin-tsi). As principais escolas surgem nos séculos VI-IV A.C., o confucionismo, o taoísmo e mohismo, a escola dos legistas, e outras. O taoísmo, escola de enorme importância na China, foi fundada pelo eminente pensador Lao-tsé (séculos VI-V A.C.), os seus discípulos reuniram as ideias do Mestre no famoso livro Tao to king (estão publicadas em português colectâneas de parábolas atribuídas a Lao-tsé), um fonte inesgotável de ensinamentos e de sabedoria. Importa realçar o conteúdo materialista destas ideias e desta notável escola. O tao é o princípio absoluto do universo; é, portanto, uma genuína categoria filosófica e é uma categoria materialista, pois que o tao é, existe, independentemente do pensamento humano, substancia e fundamento temporalmente anterior à existência do homem, é «mãe de todas as coisas», «princípio do Céu e da Terra», de nada mais depende senão dele mesmo (categoria filosófica de substância). Mas sendo, como é, o fundamento profundo de natureza material é, ao mesmo tempo, a lei universal, «uno», «multiforme», «permanente», e «mutável». Há aqui, portanto, um racionalismo inegável, isto é, a razão humana pode e deve interpretar a ordem do mundo. É tentador realizarmos uma aproximação com Heraclito, o grandioso filósofo grego, dito o «Obscuro» …O tao não é acessível aos sentidos, oculta-se (lembra-nos Heraclito!), não se encontra à superfície, somente se conhece através das coisas em que se materializa (descrição que abre uma porta para o misticismo, o que, de resto, viria a suceder), isto é, através da contemplação, um género de contemplação «profunda e pura». Seja como for (Apesar de algum idealismo) não há aqui lugar para Deus ou deuses, princípios espirituais puros que criassem e fizessem mover o mundo, ainda que a Lei (o tao) seja da ordem do racional, lógico, intelectual.


Haveria ainda que falar de Mo-Ti ou Mó-Tsé (479-381) e dos seus discípulos (mohistas) que defenderam ideias materialistas segundo as quais existe uma realidade independente dos sentidos mas que só pode ser percebida por meio destes (empirismo). Referência ainda a Yan-chu (295-335 A.C.), que fecundou o materialismo contido no taoísmo, recusando explicações que recorriam ao sobrenatural e à imortalidade da alma.

Ópio

Dão-nos filmes de catástrofes



Horas de arrepio e de susto


Calamidades previstas


Sessões de tortura e chumbo


Meteoros e calendários


Enigmas e códigos


Degelos e naufrágios


Pipocas e coca-cola


Máquina colossal de distracções


Dão-nos ópio e crucifixos


Dão-nos banqueiros e simulacros


Contos da carochinha


Noites românticas e muito amor






Mas não nos dão


O retrato do ladrão.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Na Hora Da Nossa Morte (novela,cont.)

DIÁRIO DE CARLOS -14



O arquitecto é um artista, não é um industrial mas um artesão no mais genuíno sentido da palavra. O seu traço. O seu desenho, a sua maqueta, são objectos de arte. É um artista plástico, ainda que utilize a máquina do computador. O engenheiro, o engenheiro de pontes, por exemplo, é um técnico, um produtor industrial, raramente é um artista. A racionalidade que utiliza é uma razão instrumental. O seu critério é a eficiência, não é a beleza. Se a ponte que calcula é bela o seu pensamento liberta-se dos tampões da razão instrumental, das limitações que o orçamento e os outros colaboradores lhe impõem, transcende a técnica, é um criador de formas que provocam admiração, surpresa, comoção. É raro. Existem modestas pontes de madeira que são obras de arte, o transeunte sente-se obrigado a parar, a contemplar, como a belíssima ponte que dá o título e é o leit-motiv do inesquecível filme de Clint Eastwood. Tenho visto documentários filmando a construção de grandes pontes, na América do Norte, no Japão, em Portugal, embora não sejam feias de modo nenhum, porém o que admiramos, sobretudo, é a engenharia, a eficácia, a rapidez de construção e a grandiosidade que as tecnologias permitem, a modulação por computadores, o trabalho dos operários. São emblemas da técnica, sofisticados avatares das revoluções industriais. Quantas delas constituem objectos de arte? Para mim a arte distingue-se da técnica, ainda que sem esta não haja arte. A técnica é um saber fazer, a arte é um fazer sentir. A primeira é um objecto de uso, a segunda é um determinado uso de objectos. Normalmente as pontes são sólidas, principal ou mesmo única preocupação, raramente se querem esbeltas, elegantes, provocativas. Eu não sou engenheiro de pontes, sou arquitecto, por isso não me contratam para a construção de pontes, mas para a construção de edifícios. O mérito do Vasconcelos, do chefe do nosso gabinete, foi haver conseguido que o governo regional nos convidasse. O governo central não o teria feito, um consórcio de privados talvez, mas dificilmente, o primeiro quer exclusivamente poupar nos custos, o segundo quer exclusivamente extrair o máximo lucro. A criação de Regiões, de governos regionais eleitos e autónomos foi um grande passo, as comunidades participam, discutem, referendam. O Vasconcelos soube jogar nesse tabuleiro, introduzir-se no jogo, convencer as comunidades. Os engenheiros constroem agora a ponte, nós, os arquitectos, eu especialmente, desenhámo-la. Todos os longos anos em que trabalhei construí casas, não sei se alguma ficará para a história, pontes nunca pensei vir a desenhar. É por essas razões que a minha ponte é minha, o projecto da minha vida. Amo-a como amaria uma mulher, um filho, sem reservas, sem condições. Nunca me tomei como um artista, esta é a minha oportunidade, a primeira e espero que não seja a última.


Quando namorava a Clara pedi-lhe opiniões, sugestões, embora admitisse apenas aquelas que tiveram o meu acordo. A Clara era a espectadora ideal: imaginativa, sensível, intuitiva, sem conhecer escolas e correntes, liberta de preconceitos académicos, quase ingénua na sua inexperiência de vida. E sincera, principalmente sincera. Tenho saudades dela. Daquele olhar limpo, daquelas delicadas mãos que sabiam moldar, construir, corrigir. Sem propensão para teorizar calculo as dificuldades que enfrenta num curso tão teórico como aquele que está a terminar. Quando vejo a ponte a erguer-se dia após dia apetece-me telefonar-lhe, convidá-la, mas não, não me atenderia sequer, cortou toda e qualquer comunicação comigo, eliminou da internet tudo que a comprometesse comigo. Fez-se morrer para mim, matou-me para ela.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.