Informação e manipulação
Os trágicos acontecimentos no Haiti suscitam algumas reflexões necessárias. Se nos primeiros dias não pareciam merecer as reflexões seguintes (embora merecessem de facto), hoje impõem-se ao espírito. A overdose de informações vai oprimir-nos ainda mais tempo, é fácil prever, para depois, gradualmente esmorecer (as notícias passam para lugares do noticiário cada vez mais secundários)e, por fim, já não ocupare espaço algum. Aparentemente tudo isto é aceitável, normal, compreensível. Porém, não o é.
1. O enquadramento histórico do sítio da tragédia nunca surgiu até à data: porquê a divisão da ilha em duas repúblicas, em dois povos, duas línguas? Porque é a República Dominicana um roteiro turístico muito rentável para as agências que souberam «impô-lo» aos gostos dos turistas (portugueses incluídos) e não sucedia o mesmo com o Haiti, a outra parte da Ilha? Que andava por lá a fazer a ONU, gastando «pipas» de massa e residindo no melhor hotel (curiosamente um dos melhores hotéis das Caraíbas)? Quem menciona já as dezenas de anos em que o Haiti foi esmagado por ditadores dos mais sanguinários das Américas? E que se importavam com isso os norte-americanos? Qual o papel destes nessas ditaduras? Quem se apropria dos produtos e das monoculturas e quem obrigou o Haiti a escolher essas monoculturas de exportação? Qual a ligação entre essa economia e os interesses dos importadores, e a miséria indescritível dos trabalhadores haitianos? Quem se lembra que a República Dominicana sofreu não há muito tempo uma repressão brutal e o esmagamento de uma experiência revolucionária?
2. O não tratamento das imagens (ou, mais certo ainda, a sua manipulação), a repetição («replicação» como ora se diz), a insistência até à náusea da morte e do sofrimento, os «directos» pelos enviados especiais que se limitam a descrever o que a imagem diz, fornecendo à imagem «bruta» uma pseudo-interpretação, isto é, uma retórica que aumenta a ansiedade do espectador, o desenquadramento das imagens, a fragmentação destas, os ângulos seleccionados pelas filmagens, tudo isto servido à hora das refeições se falarmos apenas nos telejornais, provocam ( e dizemo-lo sem hesitação: propositadamente) uma tristeza sem medida e sem controlo, indefinida, um mal-estar, uma tal compaixão que torna o espectador um boneco insuflado, apto a aceitar a «invasão» pacífica de uma República soberana pelas forças armadas norte-americanas, convertidas em legiões salvadoras, justificando-se indirectamente (habilmente) a ocupação do Iraque e do Afeganistão (como já o haviam feito no Líbano há pouco tempo atrás).
3. Deste modo a horrenda miséria em que vivia aquele povo já antes desta tragédia e que tornou a tragédia ainda maior nos seus efeitos e nas suas sequelas, fica por explicar, ou, em muitos casos, fica na mente do espectador ignorante a suspeita de que a miséria se deve ao próprio povo (o que não surpreende: muita gente culpa os habitantes das favelas do Rio de Janeiro). E deste modo ainda se desvia o nosso povo das «calamidades» políticas de que ele é vítima e pagador (por exemplo, da miséria dos desempregados, da iniquidade da Justiça, dos espúrios acordos do PS com o CDS já cozinhados apesar das retóricas de disfarce, e a cozinhar com o PSD (cujo discurso de «oposição» é mera treta para remendar o Orçamento com um figurino aceitável pelo grande capital). E deste modo se induzem na mente colectiva sentimentos de impotência, medo, morbidez, resignação religiosa perante a inclemência das forças da natureza…Ao frenesim dos saldos que provocam uma espécie de exaltação colectiva, sucedeu depressa a melancolia do fado em que somos contumazes.
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