DIÁRIO DE MARTA – 11
Como descobri o prof. Ramos ? foi fácil: bastou-me utilizar o Google. Várias informações sobre a sua vida passada e presente: textos em revistas e jornais, comunicações em colóquios e simpósios, trabalhos fotográficos, intervenções na política. E um blogue. Aí encontrei o endereço electrónico. Milhares de indivíduos têm assim a sua vida postada, como agora se diz, em pedaços, links que se cruzam, que se perdem nos intervalos, que é preciso costurar, inventar. Ao fim de vinte e tal anos ele aí estava ao alcance de um clique. E-mail enviado, resposta em meia dúzia de horas. Lembro-me de um folhetim choramingas na televisão que ajudava a encontrar parentes desaparecidos. A internet faz isso agora, sem lágrimas.
Escrevo estas linhas (escrever um diário é conservar a sanidade mental, mais do que uma gaveta de lembranças. Devia-se destruir imediatamente a seguir: quantos equívocos podem os diários provocar em alguém que nos leia!) uma semana depois de me ter encontrado com o meu antigo professor de filosofia e de psicologia. Foi num café, na Ericeira, num dia de semana e naquelas horas mortas em que ninguém, no inverno, se empanturra de bolos (já quase não se encontram nos cafés fregueses a ler demorada e sossegadamente um jornal, um livro). A conversa fluiu rapidamente do presente para o passado, como se o meu interlocutor calculasse que era no passado que se localizava o motivo do nosso encontro (foi ele que me convidou, eu ainda não aprendi a ser atrevida. Defesas femininas). Aparentava saúde e energia, contudo os seus sessenta e tal anos evidenciavam-se, sem apelo nem agravo, na alva cabeleira que já anunciava a marcha inexorável da calvície, na miríade de finas rugas sob as pálpebras quando sorria, naqueles pequenos sinais escuros na pele que denunciam implacavelmente um sexagenário.
Elogiou-me a maturidade física, com cautela e subtileza, lembrou o romance de Balzac, A Mulher dos Trinta Anos (não tenho a certeza de ser este o título pois que não li o livro), explicando-me que naqueles tempos as mulheres alcançavam a sua plena beleza madura nessa idade, hoje alcançam-na mais tarde. Queria relatar-lhe a tragédia da morte da minha filha, abrir o coração, ainda que acabasse a chorar, mas contive-me, afinal era o primeiro encontro com um homem que eu respeitara como professor (naquele tempo respeitávamos realmente os professores) que eu não via há duas dezenas de anos, que ali estava envelhecido, talvez desconfortável pela mudança física com que se apresentava ao fim de tantos anos decorridos, com muitos sabores e dissabores, com certeza, tal como eu os tive. Não via nos seus olhos aquele brilho de alegria vivaz que me permitisse aborrecê-lo com tragédias. Porém, senti-me tão à vontade, inspirou-me uma tão insólita confiança, que estive quase por desabafar. Ficará para um próximo encontro. Neste falámos quase exclusivamente dos tempos em que eu era aluna dele. Soube trazer-me à memória a personalidade que eu tinha então, rebelde, afirmativa (eu, que era tão insegura!), apaixonada (eu preferiria dizer: apaixonadiça!). Realmente envolvia-me em múltiplas actividades e arranjava tempo para todas elas, políticas, associativas, artísticas. Nos colóquios e exposições na biblioteca sobre temas que ele propunha nas aulas, nos espectáculos teatrais que as turmas organizavam, nos concursos literários, nas mostras de fotografia…Tantos mundos que eu mal conhecia e que ele me abriu evitando sempre impor uma presença tutelar.
- Eras muito dotada – Disse-me – Continuaste?
- Não, ou quase nada. O curso de Medicina é muito exigente e longo, de resto a Faculdade não oferecia nada para além do marranço. Depois casei, mesmo antes de terminar já estava casada. O tempo já não chegava sequer para o internato, deambulações de hospital em hospital, uma filha para criar…
- Compreendo, a tua é uma profissão muito exigente, espero que não sintas essa exclusividade como uma frustração, temos que encarar isso, infelizmente ou não, como uma fase que não volta mais, eu também fui jovem e sei como é improvável, na maioria dos casos, manter essa abertura, essa curiosidade que é tão própria dos jovens. Mas que tinhas dotes, ai isso tinhas! Talvez tivesse permanecido o tal bichinho, não?
- Claro! Está cá dentro…Apesar da minha insegurança de então, da minha busca de algo que não sabia o que era, provavelmente buscava-me a mim mesma…
- Através dos outros, das actividades em que te vias a ti mesma de vários ângulos e facetas…
-…Certamente. Ando a pensar introduzir-me numa associação ou colectividade, fazer teatro amador. Continuo a sentir muita necessidade de voltar à pintura, à fotografia, ainda que não fosse uma artista por aí além…
- Pelo contrário! Eras dotada sim senhora! A técnica, a maturidade, vinha com o exercício continuado. Farias bem em retomar.
Deste modo foi decorrendo a nossa primeira conversa após tantos anos de separação. SE me abstraísse dos sinais evidentes de velhice que ele nem sequer disfarçava, se olhasse apenas para os olhos dele, conseguia imaginar-me a rapariga que eu era então, bem mais indeterminada, bem mais insegura, do que ele julga, ciumenta, porque não dizê-lo: invejosa? Um mistura de sentimentos generosos e elevados, admito sem vaidade já que ele o diz, e de sentimentos superficiais, inconstantes. Uma incontrolável necessidade de ser amada, de me poder inserir nos grupos, ser convidada…Tinha inveja das mamas grandes que outras tinham, escrever isto até me custa…dizia de mim própria que era apenas um «patinho feio»…Exagerava as minhas deficiências (se é que o eram), culpava-me. É provável que ao prof. Ramos não lhe escapasse isso, mas preferia comigo acentuar os bons hábitos que vencem os menos bons, aconselhando-me a agir, pois que é no acto que nos formamos e, sobretudo, nos transformamos. O meu acto foi transformar-me em médica, esposa, mãe…
Durante estas rememorações nunca me perguntou pelo Carlos, o que estranhei bastante. Não se recordava ele do meu namorado que foi seu aluno? O namoro foi suficientemente público, a um olhar atento como o dele não escaparia isso com certeza. Porém, não perguntou.
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