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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NA HORA DA NOSSA MORTE (novela, cont.)

(Resumo dos episódios anteriores: O arquitecto Carlos vê erguer-se, finalmente, a ponte que projectou. Marta continua a esforçar-se por fazer o luto pela filha desaparecida, visita a mãe e ganha forças para seguir em frente. Decide visitar o seu antigo professor, o dr. Ramos, que fora de Carlos também.)

DIÁRIO DE CARLOS -12




Há três meses atrás a minha ponte era apenas uma pedra e uma cerimónia, hoje erguem-se os pilares altaneiros cuja brancura pinta de sol a paisagem. Operários e máquinas em constante labor. Se ela demorou a iniciar-se, a nascer, tanto a mim se deve como à burocracia. Que não me culpe somente a mim o meu chefe, esse lambe-botas que mete cunhas por tudo e por nada. Enfim, provavelmente desta vez agiu com eficácia. Julga que lhe estou devedor, mas não estou. Admito que não me apressei a entregar o projecto, que fosse bom é o que importa.

Assisto à construção da ponte como se ela fosse uma ilha num mar encapelado de contestação social. A desordem continua. Outros chamam-lhe sublevação, ou desejariam que fosse, eu chamo-lhe desordem social. O mundo em que fui formado estremece até aos alicerces. Seguros parecem ser os alicerces da minha ponte. Violento contraste entre os seus e os da sociedade, entre o seu levantamento elegante e seguro e o abatimento geral da sociedade, entre um futuro e um presente que já é passado.

Vivo dias de alguma euforia. As revoltas nas ruas não me inquietam, nem me tiram o sono. Entretanto, os novos projectos realizo-os por mera rotina. A crise instalou-se, as encomendas são escassas, excepto as moradias espaventosas, as recuperações principescas de mansões, quanto mais miséria, mais luxo. A minha classe média de outros tempos está a desaparecer, o meu pai não haveria de sentir-se nada bem se fosse vivo. Não tenciono alienar a sua herança, refiro-me à casa porque o resto já o gastei. Tudo voou nesses anos loucos de juventude. Viajei, comi e bebi, frequentei os melhores hotéis, comprei um barco que já não tenho e equipamento para pesca submarina que pouco utilizei, esbanjei dinheiro com mulheres de boa e má sorte, emprestei a amigos que nunca me devolveram. Enfim, estou reduzido a uma moradia que herdei onde raramente vou, a um apartamento e a um ordenado razoável. O suficiente para com isso haver seduzido mulheres cobiçosas. Às vezes pergunto-me se a Clara não foi atrás disso também. Sucede naqueles dias em que a desconfiança ou o pessimismo me atacam logo pela manhã. Talvez não, talvez ela se encantasse com outros dotes meus. Quais serão é que não sei. Foi nos tempos em que trabalhou sob a minha chefia, chamemos-lhe assim, isto é, no gabinete, tudo se modificou quando decidiu terminar o curso superior em exclusividade (ou será que trabalha em part-time nalgum sítio? Ou arranjou uma bolsa de estudos?), novos colegas, novas amigas e amigos, e por lá anda com algum. Se me ajudou a fazer o luto pela esposa falecida, ninguém me ajudou ainda a fazer o luto pela perda dela mesma. Se já não padeço, ainda recordo, o que é uma forma de sofrimento. Nenhuma mulher substitui outra, provavelmente as mulheres dirão o mesmo dos homens. Ninguém é igual a outrem. Nem os acontecimentos, os momentos que se viveram nessa comunhão física que faz o amor apaixonado.

E nestas meditações avulsas acabo de evocar a Marta. Tão perto de mim e não dei ainda um passo para a descobrir! Como é meu hábito, ou defeito, aguardo que me conquistem. A bem dizer sei lá qual é o seu estado: casada, e bem casada, com filhos?

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